Os contratos, de uma forma geral, originam direitos e deveres para as partes que figuram em determinada relação contratual, ou seja, através dos princípios do pacta sunt servanda e da autonomia privada, obrigam os contratantes àquilo que foi acertado e assinado. Ocorre que, por outro lado, o mundo vem sendo atingido pela pandemia do coronavírus (COVID-19), fato que derivam diversas consequências também no âmbito do Direito Privado. Inclusive, foi sancionada lei que o regule, de forma transitória e emergencial, nos termos da lei 14.010, de 10 de Junho de 2020.
O Ministério da Saúde informa que mais de duzentos países estão enfrentando a pandemia causada pela COVID-19.1 No Brasil, os dados apresentados pelo Google2 revelam 5.567.126 casos, dentre os quais 5.028.216 estão entre os recuperados, e 160.548 óbitos.3 Os números, portanto, revelam uma situação atípica, mas que interfere nas relações jurídicas e, nos termos dos princípios antes mencionados, deve levar o estudioso do Direito a refletir sobre eventual inadimplemento e as possibilidades que têm as partes no sentido de pedir a execução, a resolução ou a manutenção de um contrato, em conjunto com alegações de fato e de direito, buscando contextualizar o fato COVID-19.
Da premissa acima, o foco deste artigo traduz-se na discussão relativa ao exercício de posições jurídicas por parte de contratante e contratado, quando do atraso da entrega de obra, mirando a denominada cláusula de tolerância, ou seja, aquela que prevê que o imóvel pode ser entregue fora do prazo inicialmente estipulado, e desde que não ultrapassado o período de 180 (cento e oitenta) dias. Assim, caracterizaria abuso do exercício do direito um pedido de resolução do contrato ou, por outro lado, a construtora, apegando-se à cláusula, de forma indefinida, no sentido de postergação da entrega, quando considerada a pandemia? Bem, sobre tal indagação é que vamos então desenvolver essas breves linhas, considerando o fato atraso na entrega de obra e o fato COVID-19, a previsão do Código Civil para a hipótese de inadimplemento, em contexto com as consequências geradas pela pandemia, à luz da boa-fé objetiva e do abuso no exercício de direitos.
A conduta das partes, entendemos assim, é decisiva no sentido das contratações e de seus contornos, como a resolução ou a manutenção do vínculo, por exemplo. A conduta, portanto, deve ser analisada à luz do princípio da boa-fé objetiva.
A doutrina nos diz que o interesse na boa-fé vem de longa data, ou seja, desde a época dos romanos já se estudava sobre a conduta das partes, em especial sobre os negócios e contratos, como leciona Flávio Tartuce.4 Neste sentido, também, as lições de Menezes Cordeiro:
A boa-fé surge, com frequência, no espaço civil. Desde as fontes do Direito à sucessão testamentária, com incidência decisiva no negócio jurídico, nas obrigações, na posse e na constituição de direitos reais, a boa-fé informa previsões normativas e nomina vectores importantes da ordem privada. As figuras de ponta da civilística estão-lhe associadas: a culpa na formação dos contratos, o abuso do direito, a modificação das obrigações por alteração das circunstâncias e a complexidade do conteúdo obrigacional.5
Bruno Miragem, a seu turno, explica que o “[...] princípio da boa-fé constitui-se em um dos princípios basilares do direito do consumidor, assim como no direito privado em geral”.6
Em termos legislativos, e em atenção ao Código Civil, apontamos dois artigos de suma importância para este tópico envolvendo a boa-fé objetiva: os arts. 1137 e 422.8 No Código de Defesa do Consumidor, o instituto vem previsto, também, no art. 4º, inciso III. Em relação ao exercício abusivo do direito, a previsão e contra eco na parte geral do Código Civil, nos termos do art. 1879 e, em se caracterizando, a consequência do ato tem previsão de reparação no capítulo especial da Responsabilidade Civil, pela leitura do art. 927.10 Portanto, a conduta antes referida, das partes, em contexto com as consequências geradas pela COVID-19, quando do atraso da entrega de obra, vai gerar discussão acerca da incidência das normas aqui referidas, no sentido de análise do regular exercício ou então do abuso do direito, para os contratos em questão.
Dos ensinamentos doutrinários trazidos, independentemente da relação jurídica que se está a tratar (obrigações, contratos ou Direito de Família, por exemplo), a lealdade, a transparência, a retidão, são condutas mais do esperadas, além de impostas pelo ordenamento jurídico.
Exigir a resolução ou execução de um contrato e, em sede de contestação, alegar a ocorrência de caso fortuito ou de força maior, considerando o atraso na entrega de obra e o fato COVID-19 é questão a ser enfrentada pelo magistrado, à luz da boa-fé objetiva e do abuso do direito.
O Código Civil prevê as hipóteses de pedidos de resolução ou de execução do contrato, para os casos de inadimplemento,11 sendo que, em seu art. 393,12 prevê hipóteses de exclusão da responsabilidade, ou seja, quando presente a inevitabilidade, como elemento comum entre o caso fortuito e a força maior.13 Por outro lado, legislação civil prevê hipóteses que, mesmo diante do caso fortuito ou de força maior, ainda assim o devedor não se verá exonerado da responsabilidade, como nos casos previstos pelo art. 399.14
Da questão trazida neste artigo, que guarda relação direta com a entrega de obra e a cláusula de tolerância, nossa posição acerca de avaliar a conduta do adquirente, em termos de resolução ou cumprimento do contrato, em sede de uso abusivo de posições jurídicas, também passa muito pelas alegações de defesa da outra parte. E explicamos.
Deve ficar clara a condita das partes, nos autos relativos à discussão que ora propusemos, e considerando uma linha de tempo entre a contratação, andamento das obras, eventual paralização e, em seguida a retomada. Ou seja, se ficar claro que o atraso, além do período previsto pela cláusula de tolerância ocorrer justamente por influência única e decisiva dos efeitos da COVID-19, portanto, surgindo o fortuito externo, não há como se exigir penalidades em decorrência da mora, por restar descaracterizada pelo evento que rompe o nexo causal (COVID-19), residindo aí o abuso de certa posição jurídica, eis o autor da ação é sabedor do contexto atual e do andamento da obra (e quem sabe até o dolo, dependendo da insistência, se antes não sabia das consequências, mas analisando as provas trazidas pelo réu, efetivamente vem a saber). Por outro lado, se já vinha ocorrendo o atraso, se o incorporador já estava em mora, o que se conclui é que o atraso (para além dos limites da cláusula de tolerância) não sofreria influência da COVID-19, residindo aí, mas pela outra parte, o abuso de certa posição jurídica, em termos de defesa.
Voltando ás lições de Menezes Cordeiro acerca do exercício abusivo de posições jurídicas, e as aplicando no objeto central deste artigo, devemos analisar se o pedido de resolução ou de extinção do vínculo contatual, quando ultrapassado o prazo de 180 dias e ainda não entregue a unidade habitacional, quando do exercício daquele direito, está ou não em consonância com a boa-fé e os seus limites impostos,15 análise contextualizada ao fato COVID-19.
Como reforço importantíssimo, e também voltando ao Código Civil, vale lembrar os três grandes paradigmas que o formam, seus verdadeiros pilares, ou seja, a socialidade, a eticidade e a operabilidade, como nos ensinam Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald. O contexto atual, quando se fala em obrigações em sentido técnico, estrito, ou seja, aquelas de caráter patrimonial, vem sofrendo mudanças. É que as relações estabelecidas que têm por base prestações continuadas, duradouras, exigem e impõe a observação da confiança.16 O abuso de posições jurídicas em extremo apego ou desconsiderações a COVID-19 pode sim gerar danos a um dos contratantes, justamente pela violação da confiança, como referido pela doutrina.
A Constituição Federal, em sua normatividade, prevê uma série de deveres os quais todos, de alguma forma e em algum momento, estão vinculados no sentido de sua observação. Não por menos que um dos fundamentos da República Federativa do Brasil é o princípio da dignidade pessoa humana, sendo que, ao lado, um dos objetivos da Carta é primar por uma sociedade justa e solidária. Em temos de contrato e COVID-19, acentua-se a necessidade de incidência daquele princípio e fundamento.
Talvez o estudioso do Direito esteja se perguntando como o exercício abusivo de exigir o cumprimento ou a resolução do contrato, pelo lado do adquirente, ou o de um apego ao extremo à extensão do prazo da cláusula de tolerância, poderia ofender a Constituição, em sede de dignidade da pessoa humana, se se trata de uma empresa que tenha vendido a unidade, por exemplo. Bem, imaginemos então uma empresa que sempre cumpriu com suas obrigações, que prima por um atendimento que supra as expectativas de seus clientes. Ao se ver demandada, e considerando a hipótese de abuso do direito, por parte do adquirente, sabedor do atraso com base unicamente nas consequências da COVID-19, pois, em hipótese, foi devidamente informado pela empresa sobre o fato quando do atraso, com certeza a honra objetiva da empesa pode restar comprometida, com reflexos também aos donos e sócios, pois não será difícil se concluir que a angústia daquelas pessoas, em não conseguir cumprir com a prestação por fatores absolutamente externos, mas ainda assim se veem demandados, tendo custos com o processo, tendo que justificar, muitas vezes, o injustificável, extrapola os limites do tolerável, em franca violação à boa-fé objetiva e também à função social dos contratos.
Por outro lado, com certeza, não ver entregue a moradia de uma família, obra que já vinha atrasada antes da entrega, e ver alegações de que o atraso não deve configurar inadimplemento por causa dos efeitos da COVID-19, é sim contrariar a boa-fé objetiva, sob esta ótica, com nítido abuso do exercício de uma cláusula contratual, mas que certamente descontextualizada da realidade. A paz de espírito do consumidor, com certeza, resta abalada, eis que não terá tão cedo sua casa entregue, além de ver seus recursos do FGTS presos ao negócio (se com eles disponibilizou tais recursos), e que se se vê impossibilitado de reutilizá-los para outra aquisição, deparando-se com flagrante afronta à lealdade. Até que venha uma decisão judicial transitada em julgado, no sentido de extinção do vínculo contratual, certamente o sofrimento perdurará.
Com certeza, e voltando ao o que dissemos na introdução do tema, a conduta das partes será decisiva no sentido de eventual dano ocasionado pelo uso abusivo de posições jurídicas. Mais do que nunca, a interpretação do contrato e considerando o fato COVID-19 deve vir em consonância com a interpretação constitucional do direito privado. Mais do que analisar a conduta na qualidade de “bandidos ou mocinhos”, a questão será decidida conforme a análise da boa-fé objetiva. E da técnica jurídica não podemos nos distanciar. As penalidades são previstas e, em havendo danos, surgirá então a Responsabilidade Civil, com sua função reparatória.
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1 Disponível em: clique aqui. Acesso em: 08 out. 2020.
2 Pesquisa realizada na primeira quinzena de novembro de 2020.
3 Disponível em: clique aqui. Acesso em: 08 out. 2020.
4 TARTUCE, Flávio. Direito civil: teoria geral dos contratos e contratos em espécie: volume 3. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 98.
5 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa-fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 2013, p. 17.
6 MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor: fundamentos do direito do consumidor: direito material e processual do consumidor: proteção administrativa do consumidor: direito penal do consumidor. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 109.
7 Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.
8 Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
9 Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
10 Art. 927. Aquele que, por ato ilícito ( arts. 186 e 187 ), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
11 Art. 475. A parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos.
12 Art. 475. A parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos.
13 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte especial: direito das obrigações: autoregramento da vontade e lei: alteração das relações jurídicas obrigacionais: transferência de créditos: assunção de dívida alheia: transferência da posição subjetiva nos negócios jurídicos. 1. ed. ALVES, Vilson Rodrigues (atual). Campinas: Bookseller, 2003, p. 106.
14 Art. 399. O devedor em mora responde pela impossibilidade da prestação, embora essa impossibilidade resulte de caso fortuito ou de força maior, se estes ocorrerem durante o atraso; salvo se provar isenção de culpa, ou que o dano sobreviria ainda quando a obrigação fosse oportunamente desempenhada.
15 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa-fé no direito civil. Coimbra: Almeida, 2013, p. 662.
16 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: volume 2: obrigações. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 99.
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MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa-fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 2013.
MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor: fundamentos do direito do consumidor: direito material e processual do consumidor: proteção administrativa do consumidor: direito penal do consumidor. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte especial: direito das obrigações: autoregramento da vontade e lei: alteração das relações jurídicas obrigacionais: transferência de créditos: assunção de dívida alheia: transferência da posição subjetiva nos negócios jurídicos. 1. ed. ALVES, Vilson Rodrigues (atual). Campinas: Bookseller, 2003.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: volume 2: obrigações. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
TARTUCE, Flávio. Direito civil: teoria geral dos contratos e contratos em espécie: volume 3. Rio de Janeiro: Forense, 2019.