Migalhas de Responsabilidade Civil

As plataformas são intermediárias ou sua matemática é responsável na circulação de conteúdo falso e danoso?

As plataformas são intermediárias ou sua matemática é responsável na circulação de conteúdo falso e danoso?

29/10/2020

A circulação de conteúdo no universo digital decorre, em grande medida, das publicações produzidas e postadas por terceiros nos espaços abertos por inúmeras plataformas digitais como YouTube, TikTok, Twitter, Facebook e Instagram.

Não é raro, contudo, que esses conteúdos atentem contra a lei e acarretem danos a pessoas físicas ou jurídicas, às instituições e à própria democracia.  

A quem atribuir a responsabilidade por tais danos tem sido um debate travado em todo o mundo, sobretudo no que se refere ao papel dessas plataformas que têm sido qualificadas como provedores de aplicação da internet ou intermediárias na veiculação do conteúdo.

A favor de um modelo que imponha menor responsabilidade às plataformas, garantindo prioridade às suas políticas e termos de uso, argumenta-se que a indispensabilidade do crivo judicial seria necessária para a preservação da liberdade de expressão, para redução do risco de ampliação da derrubada de conteúdo e pelo direito de amplo acesso à informação que assegure pluralidade. Afirma-se que não caberia aos provedores de aplicação de internet ou intermediários arrogarem para si o papel de censores, mas ao poder judiciário. Nesse sentido, milita-se pela preservação do modelo de notice and take down, que isenta as plataformas de responsabilidade por conteúdos postados, antes que haja análise da legitimidade dos pedidos de remoção pelo poder judiciário.

De outro lado, em defesa de um arranjo regulatório que imponha maior responsabilidade às plataformas, não apenas após a prolação de uma decisão judicial, aponta-se a ampliação do risco ao sistema democrático e o progressivo esfacelamento de direitos como privacidade, honra e imagem. Nessa linha, contudo, há uma grande dificuldade na estruturação de um novo modelo. Trabalha-se em uma proposta que, ao mesmo tempo, garanta que as plataformas implementem políticas mais responsáveis, sem incentivar a derrubada de conteúdo para mitigar o risco de condenação ao pagamento de indenizações. Um dos pressupostos fundamentais seria a necessidade de maior transparência na atuação dessas plataformas.

Em 2014, após destacar que seu intuito seria "assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura", o marco civil da internet escolheu o primeiro modelo e, em seu art. 19, dispôs que "o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário". Afastou o critério apenas para a solução de casos envolvendo direito autoral (art. 19, §2º) e para casos que digam respeito à divulgação não consensual de imagens íntimas (art. 21) – caso em que o provedor torna-se responsável quando for notificado pelo(a) usuário(a) e não agir para removê-los.

A partir dessa orientação normativa, alguns consideraram que a aprovação do marco civil da internet teria colocado fim a insegurança jurídica sobre o regime de responsabilidade de intermediários, resolvendo questões de responsabilidade civil e trazendo consequências diretas para a liberdade de expressão e o acesso à informação1. A matéria, contudo, foi submetida ao Supremo Tribunal Federal para análise da possibilidade de se atribuir responsabilidade civil ao provedor de aplicações de internet por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros, a partir do quanto disposto nos arts. 5º, incisos IV, IX, XIV; e 220, caput, §§ 1º e 2º, da Constituição Federal (RE 1.037.396).

Não se coloca em questão a importância de proteger a dimensão coletiva da liberdade de expressão, de informação e de comunicação que atuam como pilar democrático. Também há consenso quanto ao fato de que atribuir às intermediárias o amplo dever de moderar conteúdo, sob pena de responsabilidade, incentiva à sua derrubada com riscos desproporcionais à liberdade de expressão. Embora divirja-se sobre a quem atribuir o dever de agir, em quais hipóteses, em que medida e por meio de qual procedimento, é inquestionável que cada ponto dessa divergência impacta na responsabilidade a ser atribuída aos provedores de aplicação ou intermediárias.

Enquanto a repercussão geral aguarda julgamento no STF, o aprofundamento dos problemas trazidos por esse novo contexto de circulação da informação levou à ampliação dos debates no Congresso Nacional.  O projeto de lei intitulado das Fake News apresenta algumas alternativas, entre elas, a exigência de que plataformas com mais de dois milhões de usuários apresentem relatórios de moderação de conteúdo, além de notificação do usuário e autorregulação regulada. Também cria o conceito de conta inautêntica com requisição de documentos e pretende admitir a rastreabilidade.

Em todo esse complexo debate, proponho reflexão sobre um ponto: o pressuposto de que os provedores de aplicação não seriam mais que intermediários, veiculadores de um conteúdo, falso, desinformativo ou ofensivo produzido por um terceiro. Essa reflexão pode impactar na disputa pela definição do responsável pela derrubada do conteúdo – e seus inevitáveis reflexos na liberdade de expressão – e certamente impacta na responsabilidade civil das plataformas e no nexo de causalidade que estabelecem com eventual dano.

Indaga-se: em que medida os provedores de aplicação contribuem para a ampliação do alcance de um perfil ou conteúdo falso, desinformativo ou ofensivo? Em que medida poderiam ser considerados apenas intermediários e o produtor de conteúdo apenas e tão somente como um terceiro?

Em que pese boa parte da operação desses provedores de aplicação seja considerada modelo de negócio e protegida pela propriedade intelectual, as informações fornecidas pelas plataformas dão conta de que são elas próprias as responsáveis pela elaboração do modelo que define o alcance e a circulação de cada conteúdo postado. Esse mecanismo é definido por diversas análises matemáticas que levam à programação de um algorítimo. No caso do Facebook os fatores de alcance do conteúdo são classificados como orgânicos e pagos e esclarecidos ao público da seguinte forma:

"Há muitos fatores que afetam o alcance, incluindo como as pessoas estão se envolvendo com o conteúdo da Página, como as pessoas se envolveram com tipos semelhantes de conteúdo anteriormente, a qualidade do conteúdo e outros fatores, como período do dia e se as pessoas estão acessando o Facebook pelo celular ou computador. É normal que o alcance mude dependendo desses fatores"2.

Mecanismo semelhante é utilizado pelos mais diversos provedores de aplicação ou plataformas intermediárias. Esse modelo de negócio contribui para que encontremos os melhores pacotes de viagens e voos promocionais e ajuda, até mesmo, a encontrar o par perfeito. Contudo, também interfere diretamente na forma como a informação e a desinformação circulam e, portanto, podem impactar diretamente no dano causado por perfis falsos, conteúdos desinformativos e caluniosos.

Parece claro que não é apenas o conteúdo publicado por um terceiro (seja o perfil identificado, identificável ou não) que contribuem diretamente para eventuais resultados danosos. Seja a publicação qualificada como orgânica ou paga. É, também, a matemática do provedor que atua para ampliar ou reduzir o alcance do que foi publicado a partir de um modelo de negócio que se propõe lucrativo. São os algoritmos protegidos pela propriedade intelectual, usando os dados fornecidos e colhidos a respeito de tudo e de cada um, que fazem a curadoria da imagem projetada sobre esse novo mundo digital.

Esse elemento, portanto, é fundamental para definir o papel e a responsabilidade dos provedores de aplicação. Diante de um dano provocado pela publicação de determinado conteúdo, não se pode qualificar, de antemão, nem o autor como terceiro e muito menos a plataforma como simples intermediária. Ambos podem ser responsáveis e a definição de seus papeis na circulação desse conteúdo é indispensável.   

Como identificar o papel desempenhado pela plataforma, se os critérios de definição do alcance da publicação são protegidos pelo modelo de negócio e, portanto, não são transparentes? Não é, de fato, nada fácil. Mas, reconhecer que não há neutralidade no suposto papel de intermediação, mas escolhas deliberadas para definição de alcance é fator necessário. A partir disso, cabe definir o regime aplicável ao nexo de causalidade e os parâmetros de distribuição dos ônus da prova. O que não é novidade em matéria de responsabilidade civil.  

Buscando responder à intrincada trama de questões que a realidade impõe ao nexo de causalidade, a doutrina majoritária tem compreendido que o legislador pátrio consagrou, por meio do art. 403, do CC (reproduzindo a redação do artigo 1.060, do Código Civil de 1916), a teoria da causalidade direta e imediata. Seu objetivo seria delimitar, de maneira razoável, o que deve ser imposto àquele considerado responsável pelo dano e o que deve ser suportado pela vítima ou por terceiros3. Avalia-se, portanto, a relevância do que impacta nos acontecimentos mais próximos do prejuízo.

No caso dos provedores de aplicação, a única forma de considera-los simples intermediários alheios ao dano é ignorar a matemática e desprezar a causalidade. Não se trata de adotar a responsabilidade pelo risco integral – muito, muito longe disso – ou mesmo a responsabilidade objetiva. Nem mesmo de se esforçar para elastecer o alcance da causalidade. Trata-se de aferir a melhor forma de avaliar o nexo de causal e como questões de justiça impõe a distribuição do ônus da prova.

Diante de todo esse cenário extremamente complexo, não se tem a pretensão de propor um modelo fechado que traduza uma solução definitiva. Propõe-se como conclusão uma reflexão sobre o papel dos provedores ou plataformas enquanto responsáveis pela circulação do conteúdo. Diante da restrição à derrubada indiscriminada de conteúdo – protegido pelo regime constitucional de liberdades – e da responsabilidade atribuída a quem, ao mesmo tempo, gerencia a circulação do conteúdo e é detentor de conhecimento exclusivo sobre as regras e dados envolvidos nesse gerenciamento, os incentivos para a transparência tendem a mudar. Soluções tendem a se apresentar de forma mais clara sob luz do sol.

*Marilda de Paula Silveira é mestre e doutora em Direto Público pela UFMG. Coordenadora Regional da Transparência Eleitoral. Professora de Direito Administrativo e Eleitoral. Pesquisadora CEDAU e do LiderA - Observatório Eleitoral. Membro do IBRADE e ABRADEP. Advogada.

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1 Oliva, Thiago.

2 Qual é a diferença entre alcance orgânico, pago e da publicação?

3 CAPUCHO, Fabio Jun. O nexo de causalidade na responsabilidade do Estado por omissão.

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Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).

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Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

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Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.