Porque falamos em inclusão da pessoa com deficiência
O Direito brasileiro conta com um microssistema jurídico de proteção e promoção das Pessoas com Deficiência – PcD, composto, especialmente, pelos ditames da Convenção Internacional sobre os Direitos Humanos das PcD da Organização das Nações Unidas - ONU, aprovada em 2007 em Nova Iorque (por isso conhecida como Carta de Nova Iorque), que foi aprovada nos termos do art. 5º, §3º da Constituição da República de 1988 – CR88, e promulgada pelo decreto 6.949 de 2009, logo direito fundamental das PcD; e pela lei 13.146, Lei Brasileira de Inclusão - LBI, também conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência - EPD.
Quais são esses direitos? Trata-se de uma gama de direitos de cunho existencial e patrimonial: do direito à igualdade e não discriminação; direitos fundamentais como saúde, acessibilidade e educação; direitos sociais como o trabalho, previdência e moradia; por exemplo.
O que justifica todo esse esforço normativo é o histórico tratamento de segregação e exclusão das PcD dos ambientes sociais, familiares e jurídicos. As PcD eram institucionalizadas, eram interditadas de forma absoluta, o que, na prática, chegava a retirar sua própria condição de pessoa de direito1. Tal visão discriminatória justificava-se diante de um modelo médico de deficiência, onde o problema estava na pessoa. Se ela não era passível de cura ou adaptação ao meio social, deveria ser dele excluída, segregada.
O microssistema transformou o conceito de deficiência, que passou a ser o social, de avaliação biopsicossocial e multidisciplinar, nos termos do art. 2º do EPD. A deficiência faz parte da diversidade humana. Assim, a diretriz é que a deficiência não está na pessoa e sim na sociedade, que não é capaz de quebrar as barreiras que impedem a sua plena inclusão.
Nesse passo, EPD criminalizou a discriminação às PcD junto ao seu art. 88, que é representada por qualquer forma de distinção, de restrição ou de exclusão, por ação ou omissão (art. 4º, §1º). Por isso falamos em inclusão. Qualquer conduta contrária é discriminatória.
O grande desafio é implementar a inclusão, afastando os pré-conceitos e as preconcepções que são repetidos socialmente, voltados à segregação e à exclusão.
O que é a educação inclusiva
A educação é um Direito Humano, direito fundamental social da PcD e um dos mecanismos para o livre desenvolvimento da sua personalidade. Por isso, a Carta de Nova Iorque projeta a garantia da educação inclusiva, indicando que os Estados partes devem assegurá-la em todos os níveis (art. 24). O que é repetido no art. 27 do EPD.
A execução da educação inclusiva deve se dar, em regra e preferencialmente, em rede regular de ensino conforme previsto nos arts. 208, III da CR88; 54, III do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA – Lei 8.069/90; e 58 e 59 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – lei 9.394/96; garantindo-se as adaptações necessárias, quebrando as barreiras, de forma que as PcD possam exercer seu direito social à educação em igualdade de condições com as demais pessoas. Por essa razão, recentemente, o Tribunal de Justiça de São Paulo - TJSP obrigou um município daquele Estado a fornecer professor de apoio dentro da sala de aula em ensino regular a criança com Síndrome de Di George2.
A educação especial segrega as PcD em classes ou instituições, de forma que elas convivam apenas com outras PcD. Não é, portanto, uma prática inclusiva. Não se olvida que, na análise da situação concreta, pode ser necessária a atenção especial; contudo, como exceção; tal como decidido pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais – TJ/MG na Apelação Cível 1.0024.14.263952-5/0013.
Além de superar as preconcepções, a educação inclusiva exige que a sociedade afaste ideários de capacitismo e padronização de comportamentos, o que inclui os projetos pedagógicos. Afinal, o problema, de fato, está na sociedade que não é capaz de reconhecer a diversidade humana. No contexto democrático e pluralista da CR88, a igualdade compreende as facetas da isonomia, da igualdade e da própria diversidade4.
Para concretizar a educação inclusiva, o EPD incube ao poder público assegurar, criar, desenvolver, implementar, incentivar, acompanhar e avaliar o sistema educacional inclusivo, composto de um rol de atribuições nos termos do seu art. 28, incluindo o aprimoramento do sistema educacional, o projeto pedagógico que contemple serviços e adaptações razoáveis, o sistema de Libras, práticas pedagógicas inclusivas na formação de professores/as, oferta de profissionais de apoio escolar e políticas públicas.
O §1º do mesmo art. 28 estende as obrigações às instituições de ensino privadas, vedando, a cobrança de valores adicionais. Por essa razão, antes mesmo do EPD entrar em vigor, esse dispositivo foi questionado junto à Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 5357 no Supremo Tribunal Federal - STF, pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino – CONFENEN. O relator da ADI, Ministro Edson Fachin, negou a liminar que pedia a suspensão dos efeitos da legislação em novembro de 2015. No dia 09 de junho de 2016, o pedido foi julgado improcedente, por maioria de votos, seguindo-se a posição do relator, eis que "o estatuto reflete o compromisso ético de acolhimento e pluralidade democrática"5.
Pareceu, então, certa a necessidade de esforço das instituições públicas e privadas para implementação fática da educação inclusiva. Contudo, não foi o que ocorreu em 30 de setembro de 2020, quando foi editado o decreto 10.5026, instituindo a Política Nacional de Educação Especial. Sim, educação especial, com previsão expressa de escolas e classes especializadas, ou seja, exclusivas, excludentes, não inclusivas; contrariando os anseios da Carta de Nova Iorque e do EPD, ferindo, os direitos fundamentais das PcD e regredindo nos avanços pretendidos pelo microssistema jurídico.
A reação foi imediata e, além das inúmeras notas de repúdio das associações e pessoas que lutam pelos direitos e pela inclusão das PcD, houve a propositura da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF n.º 751 no STF buscando a suspensão dos efeitos do Decreto, por violar as normas internacionais, a própria Constituição e o EPD.
Ademais, foram apresentados dois Projeto de Decreto Legislativo - PDL – o de n.º 427 e o de n.º 429, com o objetivo de sustar o Decreto nos termos do art. 49, V da CR88, fundamentados, suscintamente, na compreensão de que a prática segregacionista na educação especial é mais que ultrapassada, é inconstitucional.
É possível que a falta de inclusão gere responsabilidade civil?
Não é despiciendo lembrar que a responsabilidade exigida em geral é a positiva, ou seja, que as obrigações sejam cumpridas. No caso da educação inclusiva, exige-se das instituições de ensino públicas e privadas a admissão das PcD e o fornecimento de todas as adaptações necessárias para quebrar as barreiras que o projeto pedagógico ordinário impõe à diversidade. Logo, exige-se que os métodos e materiais sejam acessíveis; que seja disponibilizado/a professor/a auxiliar ou de apoio, transporte e alimentação acessíveis.
Entretanto, no caso de descumprimento dessas obrigações, incide a responsabilidade civil. Sendo o direito à inclusão um mandamento normativo de cunho constitucional, seu descumprimento configura o ilícito civil. A postura das instituições públicas e privadas em não garantir a plena inclusão das PcD fere seus Direitos Humanos e fundamentais. Logo, sua violação representa dano de cunho extrapatrimonial, na tipologia existencial7. Não se olvida do nexo de causalidade entre a conduta, no caso a omissão ou a comissão do agente público ou privado, que é causa direta e imediata do dano.
No caso das instituições de ensino privadas incide a responsabilidade civil extracontratual dos arts. 186 cumulado com o 927 do Código Civil; e a responsabilidade contratual dos arts. 389 e seguintes; e 395 e seguintes do Código Civil; e, ainda, a responsabilidade objetiva do art. 14 do Código de Defesa do Consumidor – CDC – lei 10.406/2002. Ou seja, a culpa lato sensu (negligência, imprudência ou imperícia; bem como o dolo), pela conduta comissiva ou omissiva que não permite a plena inclusão da PcD, não precisa ser provada.
Doutro lado, quando a instituição de ensino for pública, a responsabilidade está prevista no art. 37, §6º da CR88 e também é objetiva. Quanto à omissão, parece que, quando o Estado não propicia a educação inclusiva e os meios e métodos para sua efetiva implementação, é possível a defesa de uma responsabilidade civil objetiva, a despeito de posições no sentido que, por omissões, o Estado responderia subjetivamente. Afinal, o dever de agir do Estado e sua possibilidade de agir, na medida em que se comprometeu, inclusive internacionalmente, a implementar as políticas públicas necessárias para a garantia da plena inclusão das PcD, é pressuposto.
Assim, presentes os elementos constitutivos da responsabilidade civil, é possível que a falta de inclusão a configure. Significa, portanto, que exigir a implementação da inclusão plena da PcD, além de combater a discriminação do ponto de vista penal, é postura que se exige das instituições de ensino públicas e privadas sob pena de responsabilização civil pelos danos existenciais e eventualmente patrimoniais concretizados. É impositivo que as PcD frequentem, como regra, o ensino regular, que estejam inseridas na sociedade que precisa quebrar suas preconcepções e compreender a diversidade das pessoas.
*Iara Antunes de Souza é doutora e mestre em Direito Privado. Professora da graduação em Direito e do Mestrado "Novos Direitos, Novos Sujeitos" da UFOP. Pesquisadora do Centro de Estudos em Biodireito – CEBID. Associada Titular do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Membro da comissão de Responsabilidade Civil da OAB/MG.
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1 LISBOA, Natália de Souza; SOUZA, Iara Antunes de. AUTONOMIA PRIVADA E COLONIALIDADE DE GÊNERO. In: XXVIII CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI BELÉM - PA, 2019, Belém - PA. Gênero, sexualidades e direito [Recurso eletrônico on-line] organização CONPEDI/CESUPA. Florianópolis - SC: Conpedi, 2019. v. 1. p. 7-22. Disponível aqui.
2 SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Apelação n.º 1006048-28.2019.8.26.0604. Relator: Dimas Rubens Fonseca. Órgão julgador: Câmara Especial. Data do julgamento: 16/10/2020. Disponível aqui.
3 MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Apelação Cível 1.0024.14.263952-5/001. Relator Des. Raimundo Messias Júnior. Órgão Julgador 2ª CÂMARA CÍVEL. Data de Julgamento: 07/8/2018.
4 BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Igualdade: 3 dimensões, 3 desafios. In.: CLÈVE, Clèmerson Merlin; FREIRE, Alexandre (Coord.). Direitos fundamentais e jurisdição constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p.92.
5 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Escolas particulares devem cumprir obrigações do Estatuto da Pessoa com Deficiência, decide STF. Notícias STF. Quinta-feira, 09 de junho de 2016c. Disponível aqui.
6 BRASIL. DECRETO Nº 10.502, DE 30 DE SETEMBRO DE 2020. Institui a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida. Disponível aqui.
7 ROSENVALD, Nelson. Por uma tipologia aberta dos danos extrapatrimoniais. Migalhas, publicado em: 23 abr. 2020. Disponível aqui.
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Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).