O advento da covid-19 trouxe à tona a necessidade de colaboração do poder público e das pessoas em geral para o enfrentamento da crise sanitária. Mais que isso, evidencia-se o sentido solidário da responsabilidade civil, a partir da noção de que a conduta de cada um repercute sobre as demais pessoas e sobre a coletividade como um todo. Neste contexto, a figura do dano social pode ser de utilidade para coibir condutas lesivas que colocam em risco a vida de todos e para promover a reparação de danos causados à coletividade.
1. Noção de dano social
O dano social é conceituado por Antônio Junqueira de Azevedo como aquele que atinge a sociedade como um todo, produzindo rebaixamento em seu nível de vida, em seu patrimônio moral e em sua qualidade de vida, dando azo a uma indenização punitiva ou dissuasória. O autor lembra alguns danos ultrapassam a esfera dos interesses individuais e atingem a coletividade, cabendo ao juiz fixar adicionalmente uma "pena" como indenização por dano social. Como exemplo, Antônio Junqueira cita o caso de uma companhia aérea que atrasa sistematicamente os voos, causando transtornos para os usuários em geral e produzindo rebaixamento no nível de bem-estar de toda a população1.
A tese dos danos sociais alcançou aderência significativa na doutrina nacional, que em geral ressalta a natureza difusa de suas consequências e o aspecto sancionatório da reparação2. Ainda na seara doutrinária, o Enunciado 456 da V Jornada de Direito Civil do CJF/STJ reconhece a autonomia dos danos sociais em relação aos danos individuais e a outras modalidades de danos coletivos3. De seu turno, a jurisprudência tem admitido a tese dos danos sociais, com base na conceituação apresentada por Antônio Junqueira de Azevedo, como categoria distinta dos danos materiais, morais e estéticos4.
Disso se extrai que os danos sociais se distinguem dos danos individuais porque nestes a vítima é uma pessoa ou um grupo de pessoas, ao passo que naqueles a vítima é a coletividade como um todo.
2. Dano social e a função social da responsabilidade civil
Conquanto a Constituição Federal tenha consignado a dignidade humana no cerne da ordem jurídica há quase três décadas e apesar de o Código Civil haver adotado a eticidade e a socialidade em sua principiologia há quase duas décadas, ainda vigora entre nós, no trato das relações jurídicas, o ranço do individualismo que marcava a legislação revogada. Tal fenômeno se passa também – e até com maior evidência – no campo da responsabilidade civil, cujas relações se resolvem, em sua maior parte, no plano interindividual, entre o agente que causa e a vítima que sofre o dano.
No entanto, o advento da pandemia da Covid-19 impõe a necessidade de redimensionar o instituto da responsabilidade civil, irrigando-a com lampejos de solidariedade social, de modo a atribuir-lhe um sentido de responsabilidade social5. Diante do fenômeno pandêmico, é preciso ter em conta que a conduta de cada pessoa afeta não somente as esferas de interesses individuais, de vítimas imediatas, mas atinge a coletividade, colocando em risco a vida e a saúde das outras pessoas de maneira difusa6.
À vista disso, a figura dos danos sociais pode ter aplicação aos casos em que uma pessoa, do alto de sua individualidade e de seu poder de autodeterminação, decide contrariar as medidas ditadas pelas autoridades sanitárias para enfrentamento da pandemia da Covid-19, colocando em risco a incolumidade física das pessoas em geral e produzindo rebaixamento no nível de vida da coletividade, especificamente em seu aspecto de segurança sanitária7.
Neste ponto, alguns fatores jurídicos reforçam a doutrina dos danos sociais, como, por exemplo, a preponderância dos interesses coletivos sobre os individuais e o direito de todos a um meio ambiente saudável.
Quanto ao primeiro aspecto, deve-se ter em conta a principiologia jurídica que orienta o Código Civil brasileiro, particularmente os princípios da eticidade e da socialidade, para dizer que os direitos individuais devem ser exercidos em consonância com os direitos individuais das outras pessoas e com os interesses da coletividade8. Isto significa que não existem direitos absolutos, tanto que os diversos institutos de direito privado, como a propriedade, a empresa e o contrato devem desempenhar uma função social.
Quanto ao segundo aspecto, basta dizer que todas as pessoas têm direito a um meio ambiente saudável, que é um direito fundamental corolário de outros direitos fundamentais como o direito à vida e à saúde. Não será demasiado afirmar que o meio ambiente saudável compreende os mais diversos aspectos que, em seu conjunto, consiste em assegurar o bem-estar das pessoas em seu espaço de vida. Resulta que, diante do arcabouço legal vigente no Brasil, não é dado a nenhuma pessoa arvorar-se no direito de desafiar os direitos individuais das outras pessoas e os interesses da coletividade, a ponto de deteriorar o ambiente de vida das pessoas mediante decréscimo do nível de segurança sanitária a que todos têm direito igualitariamente9.
É bem verdade que o poder público dispõe de instrumentos destinados ao enfrentamento dos problemas de descumprimento das medidas de contenção da pandemia da Covid-19, mediante imposição de sanções criminais e administrativas. No entanto, a responsabilidade civil pode ser um importante aliado no enfrentamento da crise sanitária, mediante a imposição do dever de reparar danos individuais, coletivos e sociais. Trata-se de evidenciar a feição social da responsabilidade civil, que se presta não somente ao tratamento das lides interindividuais, mas também daquelas que atingem o interesse de toda a coletividade10.
3. Dano social por desrespeito às medidas sanitárias
Desde o advento da pandemia da Covid-19, são vários os relatos sobre desrespeito ostensivo às medidas adotadas pelas autoridades sanitárias para contenção da pandemia. Na maior parte dos casos, essas posturas são coibidas por intermédio da força policial e por imposição de medidas administrativas, como a aplicação de multas e fechamento de estabelecimentos.
Há um caso ocorrido nos dias iniciais da pandemia, em que o governador do Estado da Bahia determinou a abertura de processo criminal contra um empresário que foi diagnosticado como portador do novo coronavírus e, deliberadamente, deixou de cumprir as medidas de isolamento social determinadas pelos médicos e pelas autoridades sanitárias, provocando a contaminação de outras pessoas11. Na mesma ocasião e também no Estado da Bahia, um homem contaminado pelo novo coronavírus foi preso pela polícia e conduzido ao local onde deveria cumprir o isolamento que lhe fora determinado pelos médicos12. Em várias partes do Brasil, são constantes as ações policiais de fechamento de bares e restaurantes, com imposição de multas e até cancelamento do alvará de funcionamento, em razão do descumprimento das medidas de prevenção contra o novo coronavírus13.
Um caso recente, porém, ocorrido no Estado do Paraná, destoa dos demais porque o Poder Judiciário reconhece a figura do dano social por descumprimento ostensivo e deliberado às regras de enfrentamento à pandemia da Covid-1914.
Trata-se de ação civil pública intentada pelo Ministério Público estadual contra uma pessoa que testou positivo para o novo coronavírus, mas desprezou as recomendações de isolamento social feitas pelos médicos. Na ação, o Ministério Público pede que o réu seja condenado a cumprir o isolamento social e a pagar indenização por dano social em favor do Fundo Municipal de Saúde, sem prejuízo das medidas criminais cabíveis. A ação foi julgada procedente com reconhecimento da hipótese de dano social e condenação do réu ao pagamento de R$ 15.000,00 em favor do referido fundo15.
Dois aspectos chamam a atenção nesta decisão. O primeiro é que, embora a sentença faça alusão a "prejuízos que atingem abstratamente a toda uma sociedade", o desrespeito às regras enfrentamento à pandemia produz rebaixamento da qualidade do ambiente de vida e insegurança para as pessoas em geral, principalmente para a grande maioria que depende do sistema público de saúde. Este dano não é abstrato, mas real, conquanto sujeito a apreciação equitativa do montante reparatório. O segundo aspecto é que, sem perder de vista que a função primordial da responsabilidade civil seja reparatória, é iniludível que a condenação neste caso representa reproche judicial à conduta adotada pelo agente, o que pode soar como punição para a própria conduta e servir de exemplo para que outras pessoas não se comportem dessa maneira.
É importante ressaltar que a tese defensiva, sobre a falta de comprovação de que o réu teria contaminado alguma vítima específica, não afeta a caracterização do dano social. Conforme ressaltado acima, o dano social não se confunde com o dano individual porque neste a vítima é individual, ao passo que naquele a vítima é a sociedade como um todo16.
Palavras finais
Em síntese, o surgimento da pandemia evidencia o sentido solidário da responsabilidade civil, a partir da noção de que cada conduta repercute sobre as outras pessoas e sobre a coletividade como um todo. Cabe ao Ministério Público, enquanto titular das ações de tutela dos direitos difusos, identificar os casos de descumprimento ostensivo das medidas de enfrentamento à crise sanitária e promover ações civis públicas com vista à reparação dos danos causados à sociedade.
Referências
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LEITE, José Rubens Morato; AYALA, Patrick de Araújo. Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial, teoria e prática. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2010.
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_______________. O dano social no atual estágio da responsabilidade civil. In: Revista de Direito da Responsabilidade. Coimbra/PT. Ano 2 – 2020. p. 676-697.
TARTUCE, Flávio. Direito civil, v. 2: direito das obrigações e responsabilidade civil. 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
*Romualdo Baptista dos Santos é mestre e doutor em Direito Civil pela USP, especialista em Direito Contratual e Direito de Danos (Contratos y Daños) pela Universidade de Salamanca – USAL, autor e coautor de várias obras e artigos jurídicos. Ex-procurador do Estado de SP. Advogado.
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1 AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Por uma nova categoria de dano na responsabilidade civil: o dano social. In: Novos estudos e pareceres de direito privado. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 381-382.
2 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 131-134; FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Curso de direito civil, v. 3: responsabilidade civil. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 314-321; NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 572-577; TARTUCE, Flávio. Direito civil, v. 2: direito das obrigações e responsabilidade civil. 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 504-513.
3 Enunciado 456 CJF/STJ: "A expressão 'dano' no art. 944 abrange não só os danos individuais, materiais ou imateriais, mas também os danos sociais, difusos, coletivos e individuais homogêneos a serem reclamados pelos legitimados para propor ações coletivas".
4 Confira-se, exemplificativamente: STJ – 2ª Seção. Reclamação 12.062/GO. Rel. Min. RAUL ARAÚJO. J. 12/11/2014, v.u.
5 Sobre a transposição do individualismo para o solidarismo no plano da responsabilidade civil, confira-se: DELMAS-MARTY, Mireille. Por um direito comum. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 15-16; MESA, Marcelo J. López. Presupuestos de la responsabilidad civil. Buenos Aires: Astrea, 2012. p. 18-36.
6 Em uma concepção levinassiana, a vítima não se reduz necessariamente a uma pessoa individualizada, mas é dimensão de outridade que compreende grandezas coletivas como a coletividade e a sociedade; e grandezas não humanas, como o meio ambiente (SANTOS, Romualdo Baptista dos. A dimensão do Outro na configuração da responsabilidade civil. In: LLAMAS POMBO, Eugenio. Congreso Internacional de Derecho Civil Octavo Centenário de la Universidad de Salamanca: libro de ponencias. Valência: Tirant lo Blanch, Salamanca: Universidad de Salamanca, 2018. p. 435-448.
7 A face mais visível dessa insegurança sanitária é o estrangulamento do sistema público de saúde, com a insuficiência de recursos humanos e materiais para atender à grande quantidade de pessoas contaminadas pelo novo coronavírus, além de toda a demanda por atendimento de outras enfermidades (disponível aqui, visualizado em 24/9/2020).
8 Sobre a diretriz principiológica que rege o direito privado, confira-se REALE, Miguel. Visão geral do projeto de Código Civil. Disponível aqui. Acesso em: 24/9/2020.
9 Sobre o direito a um meio ambiente saudável, confira-se: LEITE, José Rubens Morato; AYALA, Patrick de Araújo. Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial, teoria e prática. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2010. p. 71-78.
10 BENJAMIN, Antônio Herman. Responsabilidade civil pelo dano ambiental. Revista de Direito Ambiental, n. 9, São Paulo: RT, jan.-mar. 1998, p. 78-82.
11 Empresário que escapou de quarentena e levou covid-19 para sul da BA será processado, visualizado em 24/9/2020.
12 PGE abre processo contra empresário que foi com coronavírus para a Bahia, visualizado em 24/9/2020.
13 Polícia fecha mais de 140 bares e restaurantes no interior por não cumprirem decreto governamental, visualizado em 24/9/2020.
14 Homem com covid-19 pagará danos sociais após descumprir isolamento, visualizado em 24/9/2020.
15 Processo 0004295-27.2020.8.16.0174, 1ª Vara da Fazenda Pública, União da Vitória, PR.
16 SANTOS, Romualdo Baptista dos. O dano social no atual estágio da responsabilidade civil. In: Revista de Direito da Responsabilidade. Coimbra/PT. Ano 2 – 2020. p. 676-697.
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Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil