Migalhas de Responsabilidade Civil

Direitos autorais na indústria criativa e conteúdo ilícito gerado por terceiros

Direitos autorais na indústria criativa e conteúdo ilícito gerado por terceiros.

30/9/2020

Direitos autorais na indústria criativa 

Da leitura do artigo 7º, da lei 9.610 de 1998 (LDA), observa-se o olhar atento do legislador aos avanços tecnológicos, protegendo as obras intelectuais exteriorizadas em qualquer meio e suporte, inclusive, "conhecido ou que se invente no futuro". A finalidade, à época, já era mitigar o ritmo de obsolescência dos comandos legislativos, em face das TICs (Tecnologias de Informação e Comunicação) até então havidas e do porvir. As questões autorais que, originariamente, se voltavam ao direito à cópia de obras intelectuais (Copyright), em face da circulação física de seus exemplares, estenderam-se à "representação pública de obras", atingindo "outras formas de comunicação", para desaguarem na "disponibilização pública em redes informáticas"1. A Internet gerou o ciberespaço, que promove o crescimento de relações interpessoais pautadas pela instantaneidade e desterritorialização2. Nesse ambiente, as obras permanecem disponíveis a um número indeterminado de pessoas, com acesso "assíncrono e individualizado"3, sob forma de download ou streaming – quando, neste último caso, o conteúdo é acessado online, jorrando diretamente das infovias, sem precisar ser baixado.

O contexto tecnológico promoveu o surgimento e desenvolvimento da Indústria Criativa, "associada à produção de intangíveis que são ou podem ser objeto de propriedade intelectual", "novas tecnologias de produção e exploração da informação digital", como as Artes Visuais (Pintura, Escultura, Fotografia),  Publicações e Mídia, Desenho, Serviços Criativos, Teatro, Dança, Circo, Cinema, Televisão, Rádio, Softwares, Games e conteúdos criativos digitalizados4. O acesso às novas tecnologias fez com que seres humanos de alto impacto criativo, sem necessariamente estarem inseridos em grandes corporações ou dependerem de investimento inicial elevado, passassem a produzir, no ciberespaço, obras intelectuais, através de composições musicais, vozes ou instrumentos, fotografias, vídeos ou clips, produção de games. 

Conteúdo ilícito gerado por terceiros               

Nesta ambiência, estão os chamados terceiros, que publicam conteúdo nas plataformas, no entanto, não representam, nem são colaboradores, tampouco estão vinculados ao provedor que compartilha o conteúdo. O conteúdo de terceiro é diferente do conteúdo de editoria, neste último caso, o provedor manifesta a sua opinião sobre determinado tema ou realiza a publicação. Terceiros podem publicar manifestações que não ofendem direitos. Também podem compartilhar obras intelectuais, de forma ilícita, sem autorização, inclusive, obtendo lucro, em procedimentos de monetização, afrontando direitos autorais. O conteúdo ilícito gerado por terceiros atinge, por exemplo, compositores, de letra e melodia, cineastas, fotógrafos, intérpretes, instrumentistas, enfim, produtores de conteúdo criativo, em geral. O Youtube, por exemplo, como plataforma de compartilhamento, estabelece o denominado "Sistema Content ID". Através dele, o titular de direitos autorais envia a sua obra intelectual à plataforma, que passa a compor um banco de dados. A partir disto, o "proprietário" decide o que irá acontecer, quando houver a identificação de sua obra pelo sistema: "bloquear a visualização de um vídeo inteiro; gerar receita com o vídeo ao veicular anúncios e, em alguns casos, ao compartilhar os lucros com o usuário que fez o envio; rastrear as estatísticas de visualização do vídeo". Observe-se que, em vídeos cuja atividade do provedor de compartilhamento for dirigida para o Brasil, a atividade algorítmica que bloqueia, exclui ou monetiza deve, ou, deveria observar a possibilidade de reprodução de pequenos trechos, por não serem classificados como conteúdo ilícito, a teor do artigo 46 da LDA. 

Diálogos entre Brasil e União Europeia acerca da responsabilidade civil dos provedores de compartilhamento e reflexões sobre sua aplicação 

Diálogos entre Brasil e União Europeia acerca da Responsabilidade Civil dos Provedores de Compartilhamento 

Na União Europeia, a Diretiva 2019/790 encaminhou a temática para a aplicação da responsabilidade objetiva dos provedores de compartilhamento, nos termos do artigo 17º, 4: "são responsáveis por atos não autorizados de comunicação ao público, incluindo a colocação à disposição do público, de obras protegidas por direitos de autor e de outro material protegido". Como excludentes, menciona a Diretiva a conduta dos provedores que: "a) Envidaram todos os esforços para obter uma autorização; e b) Efetuaram, de acordo com elevados padrões de diligência profissional do setor, os melhores esforços para assegurar a indisponibilidade de determinadas obras e outro material protegido relativamente às quais os titulares de direitos forneceram aos prestadores de serviços as informações pertinentes e necessárias e, em todo o caso; c) Agiram com diligência, após recepção de um aviso suficientemente fundamentado pelos titulares dos direitos, no sentido de bloquear o acesso às obras ou outro material protegido objeto de notificação nos seus sítios Internet, ou de os retirar desses sítios e envidaram os melhores esforços para impedir o seu futuro carregamento, nos termos da alínea b).5." O Parlamento Europeu justifica a mudança de rota, pois "ao prever a responsabilidade das plataformas, a diretiva aumentará a pressão para que estas celebrem acordos de concessão de licenças com os titulares de direitos, que deverão receber uma remuneração adequada pela utilização das suas obras ou outro material protegido"5. Tal posicionamento não está livre de críticas.

No Brasil, a lei 12.965 de 2014 (MCI), em seu artigo 19, determina a responsabilidade civil dos provedores de aplicações para "danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário". Dessa forma, trata-se de responsabilidade subjetiva, na medida que depende de prévia intimação e inação de cumprimento pelo provedor do prazo fixado pelo juízo, devendo necessariamente ser indicada a URL (Uniform Research Locator). Todavia, em matéria de direitos autorais, aplica-se o artigo 18, § 2º, que assim preceitua: "§ 2º A aplicação do disposto neste artigo para infrações a direitos de autor ou a direitos conexos depende de previsão legal específica, que deverá respeitar a liberdade de expressão e demais garantias previstas no art. 5º da Constituição Federal". E, mais adiante, o artigo 31, refere que, "até a entrada em vigor", aplica-se a própria Lei de Direitos Autorais (LDA), que não conta com comando específico para os provedores de aplicações.

Segundo a Apelação Cível sob o nº 1000579-34.2014.8.26.0100, do Tribunal de Justiça de São Paulo, que tratou de situação envolvendo o Youtube, a Relatora Márcia Dalla Déa Barone sustentou que o Marco Civil da Internet "excepciona do seu âmbito de incidência a violação de direitos autorais praticada por terceiros, remetendo à disciplina legal específica a regulação sobre eventual responsabilidade civil do provedor de internet por pela violação aos direitos do autor praticados por usuários do serviço". Na casuística, ressaltou não ter havido conduta ilícita do provedor, sobretudo, no fato de, ao ser notificado judicialmente, imediatamente, ter efetuado a remoção do conteúdo. Contudo, observou-se que, em relação à notificação extrajudicial anterior, "não restou comprovada e os documentos juntados com a petição inicial não demonstram que houve a comunicação dos endereços eletrônicos". Sendo assim, foi possível concluir que se a notificação extrajudicial estivesse completa, com a URL, e, a partir dela fosse possível identificar a inércia por parte do provedor de aplicações, já poderia haver responsabilização em caso de direitos autorais, visto não ser aplicada a exigência de notificação judicial, pela não incidência do Marco Civil da Internet. bem como não haver esta determinação na LDA. O Superior Tribunal de Justiça, nos termos do Recurso Especial sob o nº 1512647/MG, em matéria de violação a direitos autorais por provedor na internet, entende que "não é óbvia a inserção de sua conduta regular em algum dos verbos constantes nos arts. 102 a 104 da Lei de Direitos Autorais". E, ainda, apontou os critérios para a apuração da responsabilidade civil: “Há que investigar como e em que medida a estrutura do provedor de internet ou sua conduta culposa ou dolosamente omissiva contribuíram para a violação de direitos autorais.”. Em sendo assim, não foi aplicada a responsabilidade objetiva, voltando-se à responsabilidade subjetiva. Nessa linha, cumpre destacar que, no Brasil, o PL 2.370 de 2019, propõe, em seu artigo 88-B, que poderá o provedor de aplicação ser responsabilizado solidariamente, caso, notificado pelo titular de direitos sobre a obra, não adote as providências para sua indisponibilização. Trilha o caminho da responsabilidade subjetiva, sem exigir a notificação judicial como ponto de partida para se analisar a inércia ou mesmo o descumprimento da remoção pelo provedor de compartilhamento, podendo ser feita a notificação extrajudicialmente. 

Reflexões sobre sua implementação

A partir dos estudos, verifica-se que a aplicação da responsabilidade objetiva, sob a modalidade integral, exigiria um filtro prévio que poderia colocar em xeque a própria liberdade de expressão. Outrossim, ao incidir a responsabilidade objetiva, admitindo-se excludentes, na linha da Diretiva Europeia mencionada, também poderia afetar a experiência do internauta, sua usabilidade, prejudicando suas interações, na medida que os provedores submeteriam os usuários a critérios mais rígidos para publicarem o conteúdo, podendo gerar espera na disponibilização.

Compreende-se que o adequado encaminhamento se dá na linha da responsabilidade subjetiva, buscando dar uma maior proteção aos criadores, bem como preservando a liberdade de expressão, diante da inação ou demora no atendimento a uma notificação extrajudicial feita pelo titular dos direitos autorais, na linha do PL 2.370 de 2019 e jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Quando se poderá avaliar a conduta do provedor, se teve cuidados com a propriedade intelectual, se foram estabelecidos canais, e, se, no caso concreto tomou a medida em tempo razoável desde seu conhecimento. Portanto, o provedor de compartilhamento, que é um provedor de aplicações, na forma do MCI, notificado pelo titular da obra, não necessariamente pelo Poder Judiciário, poderia vir a ser responsabilizado caso não indisponibilizasse o conteúdo, com diligência.

Abre-se maior proteção aos criadores, sem, no entanto, prejudicar a usabilidade das plataformas de compartilhamento. Outro ponto a ser cogitado, seria a adoção da responsabilidade subsidiária, ao invés da solidária, diminuindo as repercussões econômicas, ao menos de forma imediata, sobre os provedores de aplicações, o que implicaria na preservação de um espaço de maior liberdade de expressão, propulsando a indústria criativa. De qualquer sorte, não haveria prejuízo ao criador que não obtendo o crédito em desfavor de quem cometeu a violação - terceiro que gerou o conteúdo ilícito, por inexistência de patrimônio, encontraria sua satisfação junto ao provedor de aplicações.

*Cristiano Colombo é doutor e mestre em Direito. Programa de pós-graduação em Direito da UFRGS. Professor oermanente do mestrado profissional em Direito da Empresa e dos Negócios da UNISINOS. Professor de graduação de Direito e Indústria Criativa da UNISINOS. Professor de graduação em Direito das Faculdades Integradas São Judas Tadeu.

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1 PEREIRA, Alexandre Dias. Direito da Propriedade Intelectual & Novas Tecnologias. Coimbra: Gestal, 2019, vol I., 9.

2 KU, Raymond S. R.; LIPTON, Jacqueline D.. Cyberspace Law. Cases and Materials. New York: Aspen Publishers, 2016, p. 20-21.

3 ASCENSÃO, José de Oliveira. Estudos sobre o Direito da Internet e Sociedade da Informação. Almedina: Coimbra, 2001, p. 151-152.

4 BUAIAN, Antônio; MENDES, Cássia Isabel Costa Mendes, SILVA, Antônio Braz de Oliveira; Carvalho, Sério Medeiros Paulino de. Indústria criativa: direitos de autor e acesso à cultura. Revista Liinc, v. 7, n.2, p. 510-537, 2011.

5 PARLAMENTO EUROPEU. Parlamento Europeu aprova diretiva sobre os direitos de autor. 26 mar. 2019. Disponível aqui. Acesso em: 27 set. 2020.

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Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil 

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Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

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