Uma das diversas alterações do Código civil de 2002 consistiu na inserção da figura da transação no plano contratual.
No código civil de 1916, a transação foi incluída entre os modos extintivos das obrigações. A opção adotada pelo Código Civil de 1916 possuía sustentação na doutrina oitocentista1: tinha por fundamento a noção de que, na transação, sobressaía o objetivo de extinção das obrigações e não a concepção de instituir deveres e obrigações recíprocas entre as partes.
Ao incluir a transação entre os contratos, o Código Civil atual vincula-se à orientação doutrinária que a qualifica como um contrato, visão predominante na doutrina clássica e contemporânea2. A circunstância de ela conduzir à extinção das obrigações constitui-se em apenas um dos seus efeitos possíveis - não seu traço essencial.
O artigo 840 do Código Civil explicita, ainda, a ideia de que a transação é um contrato sinalagmático: as partes devem realizar concessões mútuas. Sobressai a noção de que a transação possui uma causa: as partes estabelecem relações jurídicas com o propósito de compor um litígio. Nesse contexto, se os particulares ajustam conflitos jurídicos, justifica-se a solução do Código de 2002 que, em relação aos efeitos da transação, suprimiu a disposição existente no código anterior, de que a transação produzia entre as partes o efeito de coisa julgada. A coisa julgada tem fundamento de ordem pública, na medida em que tem por finalidade resguardar a autoridade da sentença, em essência, um ato estatal.
Aqui, a diretriz do Código Civil de 2002 harmoniza-se com a solução de outros países, merecendo destaque o fato de o Código civil francês, em reforma de 2016, haver precisamente alterado o regime da transação. Ao mesmo tempo em que suprimiu a referência à coisa julgada, contida originariamente no artigo 2.052, fez constar, no artigo 2.044, que as concessões recíprocas são elemento de existência do contrato de transação.
Mas o que ocorre se a parte, após à transação, invoca a existência de danos supervenientes ao acordo e pretende nova indenização por prejuízos surgidos posteriormente?
O Superior Tribunal de Justiça teve, recentemente, a oportunidade de apreciar a matéria, em decisão de 20 de abril de 2020, pela 4ª Turma, relatoria da Ministra Maria Isabel Gallotti, Agravo Interno no Recurso especial nº 1833847 – RS.
A questão envolvia acidente sofrido pela parte recorrida. Feito o acordo, sobrevieram danos posteriores: verificou-se que a vítima precisaria realizar um amplo tratamento odontológico, de modo que os seus prejuízos alcançariam valor muito superior à quantia aceita. Ingressou, portanto, com ação pleiteando nova indenização, que foi deferida na esfera estadual (Ap. Civ. nº 70080886732, 11ª C. Civ., TJRS, j. 03.04.2019, Rel. Des. Katia Elenise Oliveira da Silva)
No âmbito do STJ, decidiu-se pela "possibilidade de nova ação para complementação da verba recebida"3. Sobressai como fundamento para o caso “o curto espaço de tempo entre o acidente sofrido pela parte e assinatura do acordo, de um lado, e, de outro, a circunstância de a parte desconhecer a integralidade dos danos”.
A questão é oportuna porque permite, em rápida análise, pontuar a natureza da transação – figura dotada de riqueza dogmática no âmbito contratual e muito presente na praxe forense - e ao mesmo tempo associá-la com questões estruturais da responsabilidade civil.
Em primeiro lugar, se não se invoca a coisa julgada como efeito da transação, a fim de salvaguardar os seus efeitos, pode-se indagar acerca da necessidade de nova regra a respeito ou se é suficiente ter presente o seu caráter contratual, vinculante das partes.
Pode-se perfeitamente ponderar que o efeito preventivo de novos litígios pela transação é imanente ao seu sistema, na medida em que as partes precisam acertar sobre a situação controvertida – tanto assim que expressiva corrente doutrinária sustenta a sua definição como negócio jurídico de acertamento. No direito civil francês, porém, sentiu o legislador a necessidade de explicitar esse efeito, na reforma realizada em 2016. Ao alterar a redação do aludido artigo 2052, suprimindo a referência à coisa julgada, fez constar que "a transação constitui um obstáculo ao ingresso ou prosseguimento de uma ação judicial entre as partes" (La transaction fait obstacle à l’introduction ou à la poursuite entre les parties d’une action en justice ayant le même objet).
Observe-se que a redação dada pelo direito francês é ilustrativa da dificuldade existente para superar a transação realizada. Em harmonia com a Corte estatual, o STJ teve o cuidado de expressar a excepcionalidade de sua decisão, precisamente porque a transação se constitui em um obstáculo para uma nova ação, pois, em princípio, houve a autocomposição da lide – valor reconhecido e preconizado em nosso ordenamento.
Sendo, porém, a transação um contrato, e sobretudo um contrato sinalagmático, pode-se indagar se as concessões recíprocas devem ser equivalentes e se as partes poderiam invocar as situações de vício de vontade.
Quanto à primeira indagação, muito embora a ausência de regra expressa e a existência de precedentes restritivos na jurisprudência do STF, ao tempo do Código civil de 1916 (RE 72.675/GB, rel. Min. Oswaldo Trigueiro, 1ª Turma, j. 23/11/1971), há que se considerar que o extremo desequilíbrio entre as prestações implicaria o esvaziamento da reciprocidade, elemento de existência do contrato.
No que diz respeito ao segundo ponto suscitado, o direito brasileiro possui posicionamento inequívoco sobre a matéria: o artigo 849, do Código civil, dispõe que "a transação só se anula por dolo, coação, ou erro essencial quanto à pessoa ou coisa controversa". Ressaltou, portanto, o caráter restritivo das hipóteses de vício de vontade, tendo, ainda, omitido expressamente a lesão como fundamento para invalidar a transação.
A solução é distinta em outros ordenamentos: na aludida reforma ocorrida no direito francês, afastou-se o regime específico para os vícios de vontade no contrato de transação, ao suprimir-se a redação original do artigo 2.052, de modo que à transação incide o regime geral de invalidade do direito civil francês.
O modelo do Código civil brasileiro não se mostra, em essência, equivocado, na medida em que favorece a segurança jurídica. Admitir a possibilidade de invocação da lesão pela parte conduziria a uma potencial judicialização, precisamente o contrário do que se pretende atualmente.
Observa-se, porém, que a opção pela exclusão da figura da lesão do quadro de causas de anulabilidade da transação não implica dizer que não se possa verificar se o elemento de existência desse negócio jurídico – concessões recíprocas – está efetivamente presente.
Vislumbra-se que a referência à existência de erro essencial quanto à coisa controversa, muito embora seja um tema dificultoso para a parte, permite à ela suscitar que, desconhecendo a existência de danos supervenientes, não se pode reputar válida a transação ou, ao menos, para utilizar-se a redação dada pelo legislador francês, ela não se constitui em obstáculo para a obtenção de indenização quanto a danos supervenientes, e especialmente expressivos, sobre cuja existência a parte não poderia supor.
Com efeito, se a transação envolve a existência de concessões recíprocas, poder-se-ia reputar presente a existência de erro quando a parte, leiga, não tem consciência da extensão das suas lesões4.
Em última análise, há que se ponderar também sobre a possibilidade de invocação do princípio da boa-fé à transação, quando uma parte pretende aferrar-se a acordo realizado, flagrantemente desconforme à extensão dos prejuízos configurados no caso5.
Nesse sentido, o exame da decisão do Superior Tribunal de Justiça revela a preocupação em salientar o caráter excepcional de sua decisão, ao destacar que admitia a possibilidade de uma nova ação, particularmente em face da circunstância de a parte não possuir as condições de ciência sobre o surgimento de danos supervenientes.
A esse respeito, a orientação dada no caso sub judice está em harmonia com decisões existentes na jurisprudência nacional - como serve de exemplo julgado do Tribunal de Justiça do RS (Ap. Civ. nº 70082908427, j. 23.06.2020, 11ª C. Civ. Rel. Des. Aymoré Roque Pottes de Mello).
Em terceiro lugar, atentou a decisão da Corte especial para um tópico relevante à matéria debatida: ao considerar que houve, no caso, "curto espaço de tempo entre a assinatura do acordo e o acidente", pretendeu ressaltar a dificuldade de a parte avaliar, no interregno decorrido entre o fato e a transação, todos os prejuízos que lhe poderiam advir. Aqui, a decisão do Superior Tribunal de Justiça valoriza a necessidade de nexo causal direto e imediato entre os danos supervenientes e o acidente sofrido pela vítima, em atenção ao disposto no artigo 403, do Código civil.
Muito embora a preocupação externada por setores autorizados da doutrina quanto ao critério adotado, tendo em vista o risco decorrente para a segurança jurídica6, é certo que apesar de a decisão do Superior Tribunal de Justiça não contemplar todo o aparato dogmático relativo à matéria, ela não se dissocia da disciplina relativa ao tema.
Em essência, cuida-se de orientação que dialoga com a moldura teórica do contrato de transação, que, dotado de peculiaridades técnicas, autoriza à parte, em casos excepcionais, superar o conteúdo do acordo realizado. Está em consonância, também, com os precedentes presentes nas cortes estaduais. Por fim, mas não menos importante, reconhece o indispensável valor da justiça material e da reparação do dano integral em nosso ordenamento.
*Fábio Siebeneichler de Andrade é professor titular de Direito civil da PUC/RS. Professor do programa de pós-graduação da PUC/RS. Doutor em Direito pela Universidade de Regensburg – Alemanha. Advogado.
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1 Cf. OERTMANN, Paul. Der Vergleich im gemeinen Civilrecht. Berlim: Heymann, 1895, p. 37.
2 FRAGA, Affonso. Da transação ante o Código Civil brasileiro. São Paulo: Livraria Acadêmica, 1928. p. 42; PRATO, Enrico del. La Transazione. Milão: Giuffrè, 1992. p. 28; LOOSCHELDERS, D. Schuldrecht – Besonderer Teil. 13ª ed. Munique: Franz Vahlen, 2018, p. 406.
3 "AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. OMISSÃO NO JULGADO. INEXISTÊNCIA. RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE DE TRÂNSITO. ACORDO EXTRAJUDICIAL. POSSIBILIDADE DE AJUIZAMENTO DE AÇÃO PARA COMPLEMENTAÇÃO DA VERBA RECEBIDA. PARTICULARIDADES DO CASO CONCRETO. AGRAVO NÃO PROVIDO. 1. Se as questões trazidas à discussão foram dirimidas, pelo Tribunal de origem, de forma suficientemente ampla, fundamentada e sem omissões, deve ser afastada a alegada violação ao art. 1.022, I e II, do Código de Processo Civil de 2015. 2. O caso dos autos – curto espaço de tempo entre o acidente e a assinatura do acordo e desconhecimento da integralidade dos danos – constitui exceção à regra de que a quitação plena e geral desautoriza o ajuizamento de ação para ampliar a verba indenizatória aceita e recebida. 3. Agravo interno a que se nega provimento".
4 Exemplo nesse sentido na jurisprudência francesa: FRANÇA. Code Civil. Edition Limitée 2016. 115. ed. Paris: Dalloz, 2016. p. 2613. No original: "est dépourvue de tout effet juridique une transation conclue par la victime d’um accident avant son examen par um médecin-expert, allors qu’elle ne connaissait ni la gravité de ses blessures et s’est ainsi méprise sur la nature et l’entendue de ses droits". (Decisão em Gazette du Palais, 1977, 1.68).
5 A invocação do princípio da boa-fé quanto à transação em casos de desequilíbrio é referida na doutrina alemã. Cf. LOOSCHELDERS, D. Schuldrecht, op. Cit., p. 407; MEDICUS, D. Schuldrecht I, Munique: Beck, 2004, p. 145.
6 Cf. Silva, Felipe Tavares da. Responsabilidade civil, autocomposição e segurança jurídica: primeiras impressões a partir do precedente AgInt no REsp nº 1.833.847/RS, in Migalhas de Responsabilidade Civil, 23/7/2020.
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Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil.