Migalhas de Responsabilidade Civil

A responsabilidade civil, o custo do dinheiro e o tempo do processo

A responsabilidade civil, o custo do dinheiro e o tempo do processo.

8/9/2020

Tudo é precioso para aquele que foi, por muito tempo, privado de tudo.
Friedrich Nietzsche

As demandas indenizatórias, normalmente, fluem a partir de um evento de grande impacto pessoal. Uma cicatriz, uma amputação, uma pessoa que não mais está entre os seus. A responsabilidade civil, até porque pautada em um dano, envolve, de uma forma ou de outra, uma perda.

E, dentre as variadas funções que tocam à responsabilidade civil temos a busca por se reconstruir o que se decompôs (função ressarcitória), seja por meio do poder devolutivo da indenização, seja pela força amenizadora da compensação. Esta busca está diretamente vinculada ao tempo do processo, visto que a solução da questão que se apresentou no mundo dos fatos, nem sempre, virá de um acordo, demandando todo o trâmite perante o Judiciário, por vezes durante anos ou mesmo décadas, até que se tenha o trânsito da final decisão meritória.

Este tempo causa dois graves efeitos sobre as partes: de um lado, mantém acesa a dor do fato danoso e, de outro, desgasta o valor final obtido, quando a resposta não se dá através da reparação específica.

O primeiro efeito apontado, que não se apresenta como objeto destes escritos, é extremamente nocivo e corrosivo, visto que alimenta a dor pontuada pelo fato, nutrindo uma história, no mais das vezes, triste. O processo, todos os dias, rememora, machuca e faz doer, uma dor que para além de aguda, parece não ter fim. Isto poderá ser, um dia, objeto de uma conversa, mais sociológica do que jurídica.

Aqui, cabe-nos analisar o segundo efeito, a corrosão deletéria do quantum indenizatório/compensatório. Este efeito, se não for estancado, estimula fortemente o suposto autor do dano a buscar um sem-número de mecanismos processuais que possuem um fim específico que é ganhar tempo e, com isto, provocar pressão sobre a vítima para que esta, desiludida com a demora e não suportando a dor da lembrança, aceita acordos prejudiciais para se ver “livre” da demanda, que se torna um peso tão difícil de suportar quanto o próprio fato danoso sofrido. É um labirinto que prende ambas as partes, num embate que em muito lembra o discurso do estudante e do soldado, quando Dom Quixote busca descobrir que é o mais pobre e nos lega a fantástica conclusão de que no hay ningum más pobre em la misma pobreza, porque está atenido a la miseria de su paga” (Miguel de Cervantes. Don Quijote de la Mancha, Barcelona: Edimat Libros, Parte Primera, Cap. XXXVIII).

Para minorar este efeito, o sistema jurídico pátrio apresenta dois elementos fundamentais, de conhecido uso popular, os juros e a correção monetária.

De antemão, é importante diferençar ambos em razão de sua natureza jurídica e, com isto, apontar as funções diversas que apresentam em relação ao valor do processo.

Primeiro, em relação aos juros, tem-se uma categoria que se conhece por clássico exemplo de frutos civis. E, qualquer uma de suas manifestações vai resguardar esta mesma natureza. Assim é, porque há juros moratórios e juros compensatórios (se os diferenciarmos quanto à função) e juros contratuais e juros legais (se apartados em razão da causa proximal).

Os juros moratórios possuem como função desestimular a demora no adimplemento, podendo decorrer tanto de um acordo contratual, uma obrigação não contratual oriunda do consenso (como o acordo de alimentos) ou mesmo frente ao ressarcimento do ilícito civil (objeto de nosso atual interesse).

Por seu tempo, os juros compensatórios, também com a mesma natureza de frutos, são o valor que se paga pelo uso do dinheiro de uma pessoa. São a compensação pela indisponibilidade do uso por parte do seu titular e devem ser pagos por aquele que fez uso do dinheiro no apontando interregno. Como se pode observar, em ambos os casos os juros são devidos em razão da apropriação de dinheiro alheio, ou, atualizando lição conhecida, seriam os juros o preço devido pela obtenção do potencial de uso do capital alheio. Enfim, enquanto os juros moratórios decorrem de uma obtenção não consentida, os compensatórios surgem do prévio consentimento no uso do dinheiro.

Em guinada e focando na causa próxima, notamos que os juros convencionais se aplicam a partir da previsão das partes, restando ao legislador, de forma subsidiária, prever juros aplicáveis no silêncio das partes, denominados juros legais.

Os juros são, em derradeira afirmativa, o custo do dinheiro.

Margeando o conceito de juro e lhe antecedendo na aplicação, a correção monetária tem natureza de produto, visto que, objetivando manter o poder aquisitivo do valor, sendo colhida (percebida) implicará na redução do capital. Note a distância de tal conceito para o de juro, que, mesmo retirado, manterá intacto o capital de que adveio. Mesmo os juros compostos, conhecidos como juros sobre juros, não perdem tal natureza, mas não interessam a estas breves linhas, visto que a capitalização somente é reconhecida em nosso sistema nas obrigações contratuais e nos interessa, agora, um diálogo sobre as obrigações decorrentes de ilícitos variados (ou mesmo atos lícitos que envolvam o dever de indenizar).

Deixando este primeiro ponto fixado, podemos perceber que o dinheiro tem um custo, que todo valor tem um ônus, e este custo é de relevante papel nas demandas indenizatórias, diante do fático delongar das ações. Sobre isso, passamos a conversar.

A demora processual já é mais conhecida que preço do chuchu na feira. Disto não há quem discorde. Quando o assunto é a razão desta demora, aí há um universo de posições, ideias e justificativas. Não cabe aqui debater esta origem, por isso tomaremos como um dado que o processo demora, muito ou pouco, mas demora. De quem é a culpa? Desnecessário apurar, pois será, para nós, um fato da natureza.

Tendo isso claro, podemos perceber que a demora processual poderia corroer o valor a ser recebido, sacrificando, ainda mais, a vítima. De modo a impedir (ou, ao menos, tentar) esta situação, a lei e as Cortes Judiciais conceberam um sistema de anteparos para que guarnecida ficasse a (ao menos parcial) intangibilidade do crédito indenizatório/compensatório.

Iniciemos a análise pela correção monetária.

Como mecanismo de manutenção do poder aquisitivo de um valor nominal pecuniário, a aplicação da correção precede a incidência dos juros. E é fundamental observarmos que a sua incidência irá variar de acordo com a natureza do dano. Para os danos materiais temos a incidência da correção a partir do efetivo prejuízo, conforme o Enunciado 43 da Súmula do STJ – Incide correção monetária sobre dívida por ato ilícito a partir da data do efetivo prejuízo. Note que não há variação em decorrência de se tratar de responsabilidade contratual ou extracontratual.

Por outro lado, quando a questão posta envolve danos morais, a aplicação da correção monetária se dá a contar do arbitramento do valor, conforme o Enunciado 362 da Súmula do STJ - A correção monetária do valor da indenização do dano moral incide desde a data do arbitramento.

Já quanto aos juros, a sistemática é diferente. Aqui não importa a natureza do dano, mas sim a origem da responsabilidade. Em se tratando de responsabilidade extracontratual, a incidência de juros se dá a partir do evento danoso, como asseveram o art. 398, do Código Civil e o Enunciado 54 da Súmula do STJ.

Art. 398. Nas obrigações provenientes de ato ilícito, considera-se o devedor em mora, desde que o praticou.

Súmula 54 STJ - Os juros moratórios fluem a partir do evento danoso, em caso de responsabilidade extracontratual.

Sendo fato decorrente de responsabilidade contratual, há variação da aplicação conforme se trate de obrigação líquida ou ilíquida. Vale lembrar que líquida é a obrigação certa quanto a sua existência e determinada quanto ao seu objeto, segundo antiga, mas sempre atual, lição. Sendo líquida a obrigação contratual inadimplida, os juros correrão a partir do vencimento da obrigação (como o que detectamos na mora ex re), diante da previsão do art. 397, do Código Civil:

Art. 397. O inadimplemento da obrigação, positiva e líquida, no seu termo, constitui de pleno direito em mora o devedor.

E, sendo ilíquida a obrigação de indenizar decorrente de responsabilidade contratual? Neste caso os juros contam-se a partir citação, nos termos do art. 405, do Código Civil:

Art. 397. O inadimplemento da obrigação, positiva e líquida, no seu termo, constitui de pleno direito em mora o devedor.

Este sistema demonstrado, garante, se não uma completude da função ressarcitória (já que esta depende da própria estipulação do quantum originário) ao menos, que o valor fixado não se dilua, enormemente, ao longo tempo.

Sabemos que toda a estrutura funcional da Responsabilidade Civil é pensada para que não ocorra o ilícito; caso este ocorra, que se faça a reparação específica; e em sendo impossível esta, que se tenha uma justa indenização/compensação. Compreender toda esta densidade aceitando a ocorrência do ilícito como algo normal, é banalizar a própria utilidade do Direito Civil. Para além da punição, interessa ao Jus Civile equilibrar as relações privadas, orientar as decisões particulares e promover a paz social. A sanação do dano é apenas a ponta de um iceberg, vez que a Responsabilidade Civil, em que pese focar-se sobre o amanhã, tem crucial interesse no ontem. E, na caminhada em favor de uma sociedade em que o neminem laedere se conceba como uma cláusula instransponível, ao menos quanto aos atos dolosos, a devida correção e atualização dos valores é fator primordial. Que os desejos, assim, se tornem realidade.

*Wagner Inácio Freitas Dias é mestre em Direito, diretor da Faculdade Presidente Antônio Carlos de Ubá, professor de Direito Civil, advogado.

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Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil 

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Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

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Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.