Texto de autoria de Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk
A responsabilidade civil contemporânea não mais se limita ao desempenho da função de compensação pelos danos decorrentes de ato ilícito. As transformações sociais e econômicas ocorridas nos dois últimos séculos demandaram uma redefinição tanto das hipóteses de responsabilização civil (expressa, por exemplo, na consagração e ampliação progressiva das hipóteses de responsabilidade objetiva) quanto de suas funções, o que guarda congruência com as transformações estruturais e funcionais dos próprios sistemas jurídicos, sob o influxo de Constituições que deixam de ser apenas normas definidoras do Estado e de seus limites, passando a ser verdadeiras Constituições da Sociedade.
Nessa linha, a mais refinada doutrina tem demonstrado - com base, inclusive, no que há de mais consistente e atual no Direito Comparado1 -, que as funções da responsabilidade civil não mais se exaurem na expressão compensatória, mas se estendem, ao menos, a uma função restitutiva, a uma função preventiva e a uma função sancionatória.
Esse diagnóstico, que recolhe o avanço da disciplina no (re)delinear de suas fronteiras, aponta para desafios que se impõem aos estudiosos da responsabilidade civil. Entre esses desafios, está o de estabelecer os limites e possibilidades dessas novas fronteiras da disciplina, no influxo dessa inexorável múltipla expressão funcional.
É na seara dessa reflexão que se apresenta a relevância da liberdade individual como critério a balizar os limites de uma renovada responsabilidade civil, que se expande para atender aos ditames de um ordenamento unitário centrado na Constituição, mas que, como destinada primordialmente às relações interprivadas, não pode abdicar da racionalidade que lhe é própria.
Com efeito, a constitucionalização do Direto Privado, com a afirmação de um ordenamento unitário, não significa a supressão da autonomia do Direito Civil nem, tampouco, da supressão da racionalidade própria da disciplina das relações entre particulares, como algo que demanda construção normativa diversa daquela que é levada a efeito sob a ratio própria do Direito Público.
A Constituição não mais se sujeita à qualificação de norma de Direito Público, estando acima e além da distinção clássica. Trata-se de norma, simplesmente, de Direito (ou seja, nem apenas público, nem apenas privado), aplicável, pois, tanto às relações entre particulares, como às relações próprias de Direito Público. Daí porque a constitucionalização do Direito Civil não é uma publicização da disciplina. Em outras palavras: o ordenamento, como conjunto normativo centrado na Constituição, é unitário, mas as relações sociais que demandam a incidência dessas normas são distintas em suas características, de modo que demandam construções normativas também distintas, e que sejam adequadas a um perfil funcional que a elas é próprio.
Se o sistema não mais se estrutura sobre a dicotomia das normas de Direito Público e de Direito Privado, isso não implica afirmar que, sob a perspectiva metodológica – notadamente, de aplicação/interpretação das normas – a distinção estaria superada. O redivivo Direito Privado – e a nova responsabilidade civil - que emerge da constitucionalização conserva autonomia metodológica, o que determina seu perfil estrutural e seus limites funcionais.
O Direito Privado constitucionalizado permanece como dotado de características próprias, haja vista ser ele destinado, essencialmente, às relações entre particulares, ainda que isso não signifique, sob a perspectiva da qualificação das normas integrantes do sistema, a manutenção da vetusta clivagem que exilava as Constituições ao campo do Direito Público, e definia o Código Civil como "constituição do homem comum".
É da compreensão do Direito Privado constitucionalizado que emergem, a um só tempo, a expansão das funções da responsabilidade civil e os limites que a elas se impõem. A liberdade individual, nessa seara, continua a ser o marco distintivo que define os baldrames em que se situa esse renovado Direito Privado, e que, nessa medida, é princípio cardinal para a compreensão dessa também renovada responsabilidade civil.
A liberdade individual, porém, é também aquela que encontra assento na Constituição da República, como garantia jusfundamental. Essa liberdade constitucional não se exaure na autonomia privada clássica, sendo possível afirmar que a liberdade relevante para o Direito Privado, na contemporaneidade, é conceito mais amplo.
A liberdade não é estranha aos fundamentos clássicos da responsabilidade civil. É sobre, ao menos, uma de suas expressões que se assenta, por exemplo, a responsabilidade subjetiva, como resposta jurídica ao agir culposo ou doloso que, no mau uso da liberdade, enseja danos, impondo ao agente o dever de repará-los. Sem a culpa, prevaleceria a liberdade centrada no interesse individual, sem que se materializasse o dever de indenizar.
Ocorre que as transformações da responsabilidade civil (inclusive a expansão de hipóteses de responsabilidade objetiva) não estão, necessariamente, na antítese da liberdade. Se é certo que a ampliação dos danos indenizáveis implica ampliação também da coerção – o mesmo se podendo dizer sobre o reconhecimento de uma função sancionatória da responsabilidade civil -, é necessário reconhecer que esses fenômenos também podem vir em proveito da proteção à liberdade individual, quando se trata, notadamente, da liberdade da vítima de atos lesivos.
Com efeito, a liberdade, como princípio jurídico, pode ser compreendida a partir de ao menos três perfis que integram seu conteúdo normativo (a par da própria expressão formal da liberdade, expressa no texto constitucional). O primeiro, e mais elementar – mas, nem por isso, menos importante, é a liberdade negativa, como espaço para a ação humana no qual há ausência de coerção. A ação humana que não é imposta ou proibida é livre.
O segundo conceito é a liberdade positiva, que constitui verdadeiro poder de definição dos rumos da própria vida. Não se trata, apenas, da faculdade de agir em espaço de não coerção, mas o poder de ser senhor de sua própria existência2. Na esfera existencial, de modo especial, a liberdade positiva se materializa como verdadeira "liberdade vivida".
Um exemplo de expressão relevante dessa liberdade positiva para a responsabilidade civil é o dano ao projeto de vida3. Não se trata de dano que se materializa como coerção indevida, mas, sim, como concreta inviabilização do exercício desse poder definição dos rumos da própria vida, tolhendo radicalmente as escolhas existenciais da vítima. Quando a responsabilidade civil acolhe o dano ao projeto de vida como indenizável, bem como assume uma expressão preventiva de sua violação, está a tutelar essa relevante dimensão da liberdade humana.
A liberdade substancial, a seu turno, também pode ser tutelada pela responsabilidade civil, seja por meio de uma função compensatória, seja por meio das funções preventiva e sancionatória. Liberdade substancial não é simplesmente o poder de definir os rumos da própria vida, abstratamente assegurado. Define-se como possibilidade concreta, efetiva, de se realizar o que se valoriza4. No exemplo do dano ao projeto de vida, não apenas a liberdade positiva pode ser tutelada pela responsabilidade civil, mas, também, a liberdade substancial, haja vista que se trata da supressão, em concreto, da possibilidade de exercício dessa liberdade positiva.
A ofensa à liberdade substancial é relevante para a responsabilidade civil quando as condições objetivas de exercício concreto do agir não proibido ou da definição dos rumos da própria vida são indevidamente solapadas da vítima5.
De outro lado, se a responsabilidade civil pode servir para a proteção da liberdade, prevenindo sua violação ou impondo a compensação no caso de consumação do dano, é certo que a liberdade também pode e deve ser compreendida como limite à expansão da responsabilidade civil.
Tendo seu lugar no Direito Privado, a responsabilidade civil deve ter em sua dimensão funcional a necessária conservação de um espaço de liberdade individual que permita evitar sua conversão em instrumento de controle social.
Os juízos sobre merecimento de tutela que determinam quais são os danos indenizáveis devem sempre levar em consideração que a coerção exercida pelo direito por meio das funções próprias da responsabilidade civil somente se justifica nos limites da função mais ampla, de conservação, exercício e incremento de liberdades.
Isso implica uma necessária cautela no emprego dos instrumentos da responsabilidade civil em matéria do que não raro se denomina de "novos danos", como escudo a evitar uma ampliação da coerção – e consequente redução do espaço de liberdade negativa – que implique um afastamento da responsabilidade civil de seu locus essencial.
O mesmo se diga sobre a necessária cautela na utilização da responsabilidade civil como instrumento regulatório de comportamentos não lesivos, ainda que ilícitos, que, sem embargo, deveriam ser objetos de atuação do Estado-Administração, e não do Estado-Juiz, provocado pelo particular. Estimular o particular à judicialização de demandas que possam lhe trazer benefícios patrimoniais, mesmo sem a caracterização de efetivo dano a expressões da personalidade merecedoras de tutela, significa substituir uma função de preservação e promoção da liberdade individual por uma função de controle do agir, que pode ser de difícil compatibilização com a ratio própria ao Direito Privado.
Por fim, o mesmo cuidado deve ser empregado no âmbito dos chamados danos morais coletivos. A par da objetiva dificuldade de identificação de um dano propriamente dito a um ente abstrato (uma vez que a ofensa à dignidade das pessoas humanas se dá na concretude de suas individualidades), o emprego dessa consagrada figura jurídica não pode se converter em instrumento de coerção à expressão do pensamento, sob pena de ir de encontro a uma condição de possibilidade da própria democracia, que, ao lado da liberdade individual, integra os pilares fundamentais da ordem constitucional.
As tarefas metodológicas são, portanto, relevantes para a definição tanto das possibilidades como dos limites da nova responsabilidade civil, na afirmação do lugar que lhe é próprio, sendo a função como liberdade(s) um critério possível para informar a consecução desses afazeres.
*Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk é professor de Direito Civil da UFPR. Doutor e mestre em Direito pela UFPR. Advogado. Árbitro. Membro do IBERC.
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1 ROSENVALD, Nelson. As Funções da Responsabilidade Civil - A Reparação e A Penal Civil - 3ª Ed. 2017.
2 Adotando o conceito de liberdade como poder, HANDLIN, Oscar; HANDLIN, Mary. As dimensões da liberdade. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1964, p. 22-23.
3 Sobre o tema: SESSAREGO, Carlos Fernandez. Existe un daño al provecto de vida?.
4 Adota-se o conceito de Amartya Sen, para quem "se os funcionamentos realizados constituem o bem-estar de uma pessoa, então a capacidade para realizar funcionamentos (i.e. todas as combinações alternativas de funcionamentos que uma pessoa pode escolher ter) constituirá a liberdade dessa pessoa – as reais oportunidades – de ter bem-estar". SEN, Amarthya. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 32.
5 Exemplo colhido na jurisprudência, que revela dano à liberdade substancial de exercício do trabalho pela pessoa com deficiência, é o julgado assim ementado: RECURSO DE REVISTA EM FACE DE DECISÃO PUBLICADA NA VIGÊNCIA DA LEI Nº 13.015/2014. PROTEÇÃO JURÍDICA E ACESSO AO TRABALHO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA. DIREITO ÀS ADAPTAÇÕES RAZOÁVEIS. OBRIGAÇÕES DO ESTADO BRASILEIRO PERANTE A SOCIEDADE INTERNACIONAL. SISTEMAS DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS E INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS. DECLARAÇÃO SOCIOLABORAL DO MERCOSUL. EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS. APLICAÇÃO ÀS RELAÇÕES PRIVADAS. PERSPECTIVA CONSOLIDADA PELA CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE OS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA, DE 2007, APROVADA NO ÂMBITO INTERNO COM EQUIVALÊNCIA A EMENDA CONSTITUCIONAL E PELA LEI Nº 13.146/2015 - LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA (ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA) . RESPONSABILIDADE E FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA. DISCRIMINAÇÃO POR IMPACTO ADVERSO. (TST - RR - 1076-13.2012.5.02.0049 – Rel. Min. Claudio Mascarenhas Brandão – DJ: 03/05/2019) No caso concreto, a não adaptação do ambiente de trabalho às necessidades do trabalhador com deficiência suprimiu a efetiva possibilidade de exercício da atividade laboral, gerando dano à liberdade substancial.
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Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil