Texto de autoria de Flaviana Rampazzo Soares e Romualdo Baptista dos Santos
Inegavelmente, o setor do transporte aéreo foi grandemente impactado pela epidemia do coronavírus. Trata-se de um setor que tem grande importância na economia além de ser mercadologicamente estratégico, e que, por isso, tem merecido atenção em diversos países. Cada um deles procura enfrentar o problema ao seu modo.
Portugal optou com adquirir substancial parte da participação societária da TAP. A Alemanha adquiriu participação societária na Lufthansa, além de injetar capital que lhe permite a opção de conversão em participação acionária adicional. Noticiou-se que a Air-France receberá em préstimo e auxílio financeiro por meio de fundos garantidos pelo Estado. Caminho semelhante é trilhado pela KLM e pelo governo holandês, bem como pela Alitalia e o governo italiano.
No Brasil, o tema é candente. Enquanto boa parte dos países optou por auxiliar as companhias aéreas, o Brasil seguiu caminho distinto, ao menos até o momento. De acordo com a política econômica liberal adotada pelo atual governo, endossada pelo Poder Legislativo, foi publicada a Lei n. 14.034, de 05/08/2020, fruto da conversão da Medida Provisória 925/2020,que dispõe sobre medidas emergenciais para a aviação civil brasileira em razão da pandemia da Covid-19.
O texto da referida lei demonstra que a opção brasileira para reduzir ou amenizar os prejuízos das companhias aéreas foi a de impor a sua absorção, ainda que parcial, ao usuário, contrariando toda a lógica da legislação editada nos últimos tempos a respeito da matéria. O consumidor que comprou passagens aéreas, segundo a lei, indiretamente passou a financiar o setor, porque a retenção dos seus recursos nos cofres das companhias tornou-se permitida pela lei (!), as quais contam com um prazo de um ano para devolver parceladamente as quantias recebidas.
Trata-se de um “bom negócio” para as companhias aérea se para o governo brasileiro: para as primeiras porque passam a ter um crédito já recebido e barato, se comparado ao custo do dinheiro no mercado; e para o governo porque reduz as chances de recuperações e falências no setor. Em uma recuperação judicial, todos os credores seriam chamados ao concurso, enquanto que a nova lei imputa apenas ao consumidor o recebimento de seu crédito no prazo de um ano. Ou seja, o “financiamento” ocorre às custas do cliente das companhias.
Não obstante essas observações iniciais de índole extrajurídica, cabe traçar algumas palavras a respeito do conteúdo da lei,embora desde já deva-se esclarecer que aqui não será abordada a sua constitucionalidade, mas apenas o seu teor e os seus impactos imediatos nos contratos de transporte aéreo firmados com consumidores e nas ações judiciais correspondentes, de forma necessariamente superficial, em razão dos limites de espaço desta coluna.
Em síntese, a lei contempla duas possibilidades relativas às situações de cancelamento de voo e desistência de voo.
A primeira, que trata da situação de cancelamento de voo ocorrido entre 19/03/2020 e 31/12/2020, especifica a necessidade de supressão das cobranças de parcelas vincendas de pagamento do preço, e permite três opções: de reembolso, de crédito ou de mobilidade.
1ª. De reembolso do valor da passagem, atualizado pelo INPC, que ocorrerá em doze meses, contados da data do cancelamento do voo.
2ª. De recebimento de um crédito, cujo montante seja igual ou superior ao da passagem aérea, o qual pode ser usufruído pelo cliente ou a quem designar, para adquirir produtos ou serviços oferecidos pela companhia aérea, pelo prazo de até dezoito meses,contados de seu reconhecimento (art. 3º, § 1º da Lei). Essa opção, de acordo com o texto da lei, “poderá ser concedida ao consumidor” (ou seja, aparentemente seria uma faculdade conferida à companhia de oferecer essa opção).
3ª. De mobilidade,mediante o oferecimento de reacomodação em outro voo, próprio ou de outra companhia; de remarcação da passagem aérea, sem ônus, mantidas as condições aplicáveis ao serviço contratado (art. 3º, § 2º da Lei).
A segunda possibilidade (art.3º, § 3º da Lei)é para o caso de desistência do consumidor com voo marcado entre 19/03/2020 e 31/12/2020, situação na qual este pode exercer uma das seguintes opções: de reembolso ou de crédito.
1ª. De reembolso do preço da passagem, atualizado pelo INPC, que se efetivará em até doze meses, contados da data do cancelamento do voo, com a diferença que, nesse caso, terá o desconto de penalidades contratualmente especificadas em seu contrato.
2ª. De recebimento de um crédito, equivalente ao da passagem aérea, a ser utilizado em até dezoito meses, sem a possibilidade de imposição das penalidades contratuais.
O art. 3º, § 6º da lei não permite a segunda possibilidade aos clientes que desistirem de voar antes de sete dias da data de embarque,desde que assim decidam em até 24h do recebimento do comprovante de compra.Para esses clientes, subsistirá o contido nas condições gerais “estabelecidas em ato normativo da autoridade de aviação civil”.
Vale referir que, embora a lei refira às opções sempre como “valor da passagem” (sic), esclarece-se que, como nem sempre o consumidor terá realizado o pagamento integral ao tempo do exercício da opção de desistência ou ao tempo do cancelamento do voo, em nome da boa-fé, deverá ser considerado o montante pago, e não o “valor da passagem”.
Um ponto que ensejará muitos debates é o da eficácia intertemporal da Lei, aos casos nos quais houve desistência do cliente durante a pandemia, mas antes da vigência das regras mencionadas. Tanto o art. 5º, XXXIV,da CF, que resguarda o ato jurídico perfeito, quanto o art. 6º da LINDB, que prevê a vigência das leis com efeito imediato e geral, e reitera a necessidade de respeito ao mencionado ato jurídico perfeito, poderão ser invocados por eventuais prejudicados, para assegurar a possibilidade não incidência da leia os seus casos, com o objetivo de solicitarem o reembolso integral e imediato do que lhes seja devido, tão logo seja solicitado, a considerar as circunstâncias concretas para definir o seu quantum.
No entanto, chamam a atenção as alterações introduzidas no Código Brasileiro de Aeronáutica, Lei 7.565, de 19 de dezembro de 1986, cujo Título VIII trata da responsabilidade civil no âmbito do transporte aéreo. As disposições do CBA sempre foram alvo de críticas pela doutrina porque estabeleceram limites para as indenizações de acordo com a modalidade de dano sofrido pelo passageiro: morte, lesão corporal, atraso do transporte, perda, destruição ou avaria da bagagem ou da carga (CBA, art. 257, 260, 262).1 Além disso, as disposições que excluem a responsabilidade do transportador aéreo nos casos em que a morte ou lesão resultar de caso fortuito (externo) ou de força maior, ou que decorra exclusivamente do estado de saúde ou de conduta imputável ao passageiro (CBA,art. 256, § 1º), soam despiciendas por se enquadrarem na hipótese de exclusão do nexo de causalidade, já abrangidas pela teoria geral da responsabilidade civil.
A nova lei evidencia uma tendência atual do legislador brasileiro no sentido de excluir a responsabilidade do causador do dano, tendência esta já manifestada por ocasião da Medida Provisória 966/2020, que restringe a responsabilidade dos agentes públicos aos casos de “erro grosseiro”.2 Esta é uma propensão que vai de encontro ao princípio de responsabilidade, que permeia todas as áreas do direito e segundo o qual aquele que causa dano a outrem tem o dever de reparar. Toda a ordem jurídica se estrutura no sentido de atribuir responsabilidade e de não desamparar a vítima,ao passo que a nova lei referida, assim como aquela Medida Provisória 966/2020(antevista pela denominada “Reforma trabalhista”), assume contornos voltados ao afastamento ou a mitigação da responsabilidade do causador do dano.
No caso do transportador aéreo, o legislador elimina a sua responsabilidade se restar comprovado que, em virtude de caso fortuito ou de força maior, tornou-se impossível a adoção das medidas necessárias, suficiente se adequadas para evitar o dano (CBA, art. 256, § 1º, II).
Para este fim, a lei passou a contemplar como situações de caso fortuito ou de força maior quadros fáticos que, na jurisprudência,seriam classificados como fortuito interno e que ensejariam o dever de indenizar.
A lei refere a restrições de pouso e decolagem por falta de condições meteorológicas, por indisponibilidade da infraestrutura aeroportuária (!), por determinação e responsabilidade do poder público e por decretação de pandemia (CBA, art. 256, § 3º).
A disposição causa espécie porque trata o que não é como se fosse. O caso fortuito ou de força maior compõem uma cláusula geral de exclusão de responsabilidade, a ser preenchida nos casos concretos sem limitação (CC, art. 393). O legislador, no afã de reduzir a responsabilidade do transportador aéreo, restringiu as causas de exoneração às situações tipificadas no art. 256, § 3º. Diante disso, cabe indagar se haverá responsabilidade para outras hipóteses não tipificadas.
A lei (que acrescentou o art. 251-A ao CBA) exclui a responsabilidade de concessão de indenização por dano extrapatrimonial in reipsa, exigindo a “efetiva ocorrência do prejuízo e de sua extensão pelo passageiro”.
A nova lei, promulgada com a finalidade de adotar“medidas emergenciais para a aviação civil brasileira em razão da pandemia daCovid-19”, especifica normas restritivas de caráter permanente, inclusive a prevista no citado art. 251-A, em conhecido e reprovável estratagema legislativo.
A lei passa a exigir que a pessoa atingida por um dano extrapatrimonial prove a ocorrência tanto do evento lesivo quanto do “prejuízo e sua extensão”, ou seja, para uma situação de dano moral subjetivo, passa-se a exigir prova do quanto um determinado evento lesivo comprovado prejudicou o seu estado de ânimo (além de um “mero aborrecimento”), ou a via crucis que levou o demandante a afirmar ter ocorrido uma situação de desvio produtivo, por exemplo, que também poderia ensejar uma indenização por dano moral. Em última análise, coloca um peso sobre as costas do Poder Judiciário e a própria vítima,a exigir prova sobre questões muitas vezes óbvias para os casos designados comode prejuízo in re ipsa.
Sob o critério dos prejuízos sofridos pela vítima, os danos patrimoniais, produzem consequências mensuráveis, tanto que a lei condiciona a reparação à comprovação de sua existência e extensão (CC, art.944, caput), ao passo que, nos danos extrapatrimoniais, a lesão atinge interesses imateriais relevantes e juridicamente protegidos que, por definição, não comportam representação econômica imediata,de sorte que a reparação é sempre compensatória e equitativa.
De outro lado, a possibilidade de reparação de danos extrapatrimoniais tem a sua gênese na tutela constitucional da dignidade da pessoa humana, que desaguou na denominada despatrimonialização ou repersonalização do direito privado.3
Em que pese a evolução do gênero designado danos extrapatrimoniais e a especificidades das suas espécies, não há homogeneidade no tratamento da matéria, seja na doutrina, seja na jurisprudência. Em muitos casos, tem se admitido que o dano moral seja apreciado objetivamente, mediante apreciação equitativa das situações que evidenciam ofensa evidente a um interesse jurídico extrapatrimonial juridicamente tutelado, considerando-se muitas vezes como dano in re ipsa, e assim o é pela evidência quanto a sua ocorrência (assemelhando-seao tratamento processual dado aos fatos notórios, por exemplo) e a sua extensão,porque é ínsita ao próprio evento lesivo a configuração da violação ao direito da pessoa como, por exemplo, no REsp n. 1.059.663/MS, no qual o STJ reconheceu como in re ipsa o dano moral experimentado pela mulher vítima de violência doméstica.
No que se refere especificamente ao atraso e cancelamento de voos, é farta a jurisprudência do STJ sobre indenização por dano moral por atraso prolongado ou de cancelamento injustificado de voo,independentemente da comprovação específica, por considerá-lo in re ipsa.
Percebe-se, pois, que a nova lei claramente tem o objetivo de reduzir significativamente o número dessas ações de reparação de dano extrapatrimonial.
Em resumo, a novel legislação indica uma tendência atual do legislador de afastar e restringir a responsabilidade das companhias aéreas, notadamente por danos extrapatrimoniais. Levando-se em conta a natureza e a estrutura do dano extrapatrimonial, condicionar a reparação à demonstração de efetivo prejuízo e da extensão do dano pode se aproximar de uma situação de negativa de compensação. Ultrapassar essa situação exigirá do intérprete e do aplicador uma visão ampla e dialógica do direito, e o uso efetivo de normas de natureza material e intertemporal, e, em especial, de instrumentos processuais previstos na legislação, para trazer efetividade ao processo, tais como as regras de divisão e de inversão do ônus da prova; de definição dos pontos controvertidos do processo; de inexigibilidade de prova impossível ou da prova negativa.
Por fim, Tom Jobim, no “Samba do avião”, canta: “Rio de sol, de céu, de mar; água brilhando, olha a pista chegando; e vamos nós pousar”. A lei chegou e é a nossa pista de aplicação prática. Veremos como todos nela pousarão.
Flaviana Rampazzo Soares é Doutora e mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio grande do Sul. Advogada.Professora em cursos de pós-graduação em direito lato sensu
Romualdo Baptista dos Santos é Doutore Mestre em Direito pela Universidade de São Paulo. Especialista em Direito Contratual e Direito de Danos pela Universidade de Salamanca – USal.Ex-Procurador do Estado de São Paulo. Advogado. Professor em cursos de Pós-Graduação em Direito lato sensu.
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1- Tais disposições estariam em desacordo com a Constituição e com o CDC, que não impõem limite para areparação de danos, além de afrontar o princípio da reparação integral ou da justa reparação (GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade civil. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 311-316; CAVALIERI FILHO,Sergio. Programa de responsabilidade civil. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 394-397).
2- A respeito das inconsistências da Medida Provisória 966/2020, confira-se: DIAS, Fernando Barboza. MP 966/20 e (ir)responsabilidade jurídica de agentes públicos. Disponível aqui. DELGADO, Mário Luiz; SANTOS,Romualdo Baptista dos; SILVA, Bruno Casagrande e. Medida provisória 966/20: Inconstitucionalidade e erros sistêmicos em sede de responsabilidade civil. Disponível aqui; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira; SOUZA, Iara Antunes de; SÁ, Maria de Fátima Freire de. Razões técnicas para a inconstitucionalidade da MP 966/2020. Disponível aqui. Em meio a tantas críticas doutrinárias, o Supremo Tribunal Federal concedeu medida cautelar, acolhendo parcialmente as ações diretas de inconstitucionalidades, para atribuir interpretação conforme a Constituição à MP 966/2020.
3- PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução dodireito civil constitucional. Tradução de Maria Cristina de Cicco. 2. ed. Riode Janeiro: Renovar, 2002. p. 33-34;FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica dodireito civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 78 e 216.
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Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil