Migalhas de Responsabilidade Civil

Responsabilidade civil, autocomposição e segurança jurídica: Primeiras impressões a partir do precedente AgInt no REsp n.º 1.833.847/RS

Responsabilidade civil, autocomposição e segurança jurídica: Primeiras impressões a partir do precedente AgInt no REsp n.º 1.833.847/RS.

23/7/2020

Texto de autoria de Felipe Teixeira Neto

Foi noticiado no informativo de jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça n.º 0671, de 05 de junho de 2020, o resultado do julgamento do Agravo Interno no Recurso Especial n.º 1.833.847/RS, proferido pela 4ª Turma, sob a relatoria da Senhora Ministra Maria Isabel Gallotti, figurando como destaque do precedente premissa segundo a qual “[o] curto espaço de tempo entre o acidente e a assinatura do acordo e o desconhecimento da integralidade dos danos podem excepcionar a regra de que a quitação plena e geral desautoriza o ajuizamento de ação para ampliar a verba indenizatória aceita e recebida”1.

Ao que se infere do inteiro teor do acórdão que, por força da Súmula 7 do Colegiado, limita-se a fazer referência às premissas fáticas que serviram de base ao julgamento do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, o caso envolvia acidente de trânsito causado por veículo de transporte coletivo pertencente à demandada. Na sequência disso, foi celebrado acordo entre esta e a vítima para fins de reparação dos danos na via extraprocessual, com ampla e geral quitação acerca do débito indenizatório, ao que, mesmo assim, sobreveio ação judicial desconsiderando a irretratabilidade convencionada e requerendo a complementação dos valores já pagos.

Não se desconsidera não ser novidade na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça a possibilidade de, mesmo que em situações excepcionais, desconsiderarem-se os efeitos da quitação concedida em relação à pretensão de reparação de danos, buscando-se a sua complementação por meio de ação própria. As bases sobre as quais se assentara o precedente, contudo, levam a conclusões inquietantes e suscitam a necessidade de um debate sobre o tema, especialmente considerando o contraponto que se estabelece entre o incentivo à autocomposição e a necessidade de segurança jurídica para que tal se estabeleça no âmbito das relações privadas.

Têm sido riquíssimas, ao menos nas últimas décadas, as discussões envolvendo a necessidade de aprimoramento e de reforço da importância da autocomposição dos litígios privados, sendo assente na doutrina especializada que os meios consensuais de solução de conflitos constituem relevante instrumento de efetivação de uma genuína política de democratização do sistema de justiça2.

Tanto que, ainda no ano de 2004, quando da firmatura do I Pacto Republicano de Estado por um Sistema de Justiça mais Acessível, Ágil e Efetivo, os referidos mecanismos foram identificados como uma das formas de combater a baixa eficácia das decisões judiciais proferidas em processos morosos. Tal foi reafirmado por ocasião da firmatura do II Pacto, no ano de 2009, e ratificado no III Pacto, em 2011, com a indicação expressa da importância do estímulo da resolução de conflitos por meios autocompositivos enquanto ferramenta a promover a maior pacificação social e a menor judicialização das controvérsias3, nos termos, aliás, do que foi acolhido pelo legislador quando da redação do parágrafo 3º do artigo 3º do Código de Processo Civil de 2015, que prevê o estímulo aos métodos de solução de conflitos dentre as diretrizes predispostas aos atores do processo.

Ocorre que, para que a autocomposição torne-se atrativa, é preciso que as partes envolvidas no litígio tenham incentivos para tanto, de modo que se torne mais vantajoso acordar do que litigar. E, além das vantagens já conhecidas, afigura-se essencial que a composição opere-se num ambiente jurídico seguro que implique em um real encerramento da controvérsia, não possibilitando discussões futuras acerca do que fora pactuado, salvo hipóteses verdadeiramente excepcionais.

Do ponto de vista técnico-jurídico, não há dúvidas que o direito civil, no campo da reparação de danos, possui institutos aptos a chancelar o intento autocompositivo, atribuindo estabilidade ao ajuste alcançado pelas partes e, com isso, sepultando a possibilidade de rediscussão a respeito. Neste cenário, a transação apresenta-se como categoria jurídica útil para tal intento, viabilizando que as partes possam por fim à controvérsia indenizatória.

O dispositivo que rege o tema é o artigo 840 do Código Civil que, reproduzindo integralmente a regra do artigo 1.025 do Código de 1916, dispõe que “[é] lícito aos interessados prevenirem ou terminarem o litígio mediante concessões recíprocas”. Sem prejuízo da reestruturação sofrida pela figura em causa por força do diploma vigente, que a realocou no capítulo dos contratos em espécie e não mais dentre as modalidades de pagamento indireto, a sua essência foi mantida na íntegra.

E, ao que se infere da própria letra do preceito legal, está no cerne da transação, enquanto meio autocompositivo, a realização de concessões mútuas que possibilitem por fim ao litígio, inclusive no âmbito indenizatório. Tanto que, em assim não sendo, se ambos os atores – no caso em discussão, lesante e lesado – não cedem de algum modo, sequer se pode falar em genuína transação, mas apenas em mero acordo4.

Exatamente por isso é que, estando em jogo interesses patrimoniais e disponíveis e tendo por base a autocomposição concessões recíprocas, as possibilidades de revisão posterior do pactuado devem ser limitadas, sob pena de se inverter a lógica da mais valia. Dito de outro modo, se o pactuado pode, no futuro, ser revisto em qualquer hipótese, não há segurança jurídica para a transação e mais vale litigar do que compor.

Parece que esta percepção foi expressamente reconhecida pelo Código Beviláqua, uma vez que o seu artigo 1.030 era categórico em afirmar – mesmo que com alguma atecnicidade – que “[a] transação produz entre as partes o efeito de coisa julgada”. Mesmo sem a reprodução textual desta regra no Diploma de 2002, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça continuou a sinalizar no sentido de que “a quitação ampla, geral e irrevogável efetivada em acordo extrajudicial deve ser presumida válida e eficaz, não se autorizando o ingresso na via judicial para ampliar verbas indenizatórias anteriormente aceitas e recebidas”5.

Tanto é verdade que este mesmo precedente-paradigma é citado no julgamento ora em exame, ainda que para, na sequência, excepcioná-lo. E é neste particular é que reside a crítica.

Não há dúvidas de que, em sendo um negócio jurídico, o ajuste pactuado como forma de for fim a um litígio pode ser anulado por vício de vontade, permitindo-se, a partir disso, a rediscussão da controvérsia subjacente. O artigo 849 do Código Civil, nesta linha, reconhece que a transação “só” se anula – ou seja, apenas nestas situações – se demonstrada a existência de dolo, coação ou erro essencial, sequer admitindo-se a possibilidade de que tal decorra de “erro de direito a respeito das questões que foram objeto de controvérsia entre as partes”, nos termos do parágrafo único do aludido dispositivo.

Ora, ao que se vê, não obstante não mais haja a menção expressa à produção de efeitos análogos à coisa julgada (elidíveis, portanto, apenas por algo próximo à ação rescisória), o intento do regramento predisposto é que a possibilidade de rediscussão da situação que ensejou a transação seja excepcional, não se permitindo análises casuísticas para além daquelas que tenham aptidão para invalidar o negócio jurídico.

Especificamente no campo da responsabilidade civil, pretende-se afirmar com isso que o arcabouço normativo sobre o qual se constitui a transação não permite um juízo de valor subsequente com vistas a verificar se a autocomposição foi um bom ou um mau negócio, mas apenas para verificar se houve ou não defeito ou vício aptos a anular o negócio jurídico. E a base para isso, como já referido, está no próprio artigo 840 do Código Civil, quando estabelece que a transação tem por objetivo findar uma controvérsia por intermédio de concessões recíprocas.

Ou seja, pressupõe que, para implicar em uma reparação imediata do dano sofrido e poupar o lesado de uma longa discussão judicial sobre a extensão do dever de reparar, a parte abra mão de uma parcela daquilo que entende por devido, constituindo-se em juízo de oportunidade de um momento específico que, por isso mesmo, compromete a possibilidade de reavaliação futura. Note-se que é uma faculdade da vítima, que pode ou não transacionar; mas, em o fazendo, deve assumir as consequências da escolha, salvo se cabalmente eivado de nulidade o negócio.

Tendo em conta tais substratos teóricos, o que preocupa no precedente não é propriamente a possibilidade de revisão do acordo celebrado entre lesante e lesado – porquanto esta é uma hipótese textualmente prevista em lei –, mas o fato de se afastar a excepcionalidade da revisão e se considerar como fator determinante para tanto o suposto curto espaço de tempo entre o acidente e a transação, nos termos do consignado em destaque, mesmo que tal venha a ser complementando por um alegado desconhecimento sobre a extensão dos prejuízos.

Primeiro, porque a mensuração do tempo decorrido e a sua qualificação como curto ou longo é critério demasiado subjetivo para permitir a nulificação de um negócio jurídico que, por força de lei, goza de presunção de legitimidade (mesmo que iuris tantum); segundo, porque justamente o fato de a indenização ter sido alcançada à parte logo após a causação do prejuízo pode bem ser um fato deveras importante a incliná-la, naquele momento, a aceitar a transação através de concessões da sua parte, já que poderá implicar em pronta reparação e, por conseguinte, numa contemporaneidade bastante efetiva a garantir a própria reparação integral.

Não se pretende, com isso, chancelar a celebração de pactos abusivos, permitindo com que o lesante valha-se de uma situação absolutamente desfavorável em que se encontra a vítima para fazer um acordo leonino. Ocorre que apenas o curto espaço de tempo entre o dano e o acordo, per se, mesmo que aliado a alegações outras relacionadas a um conhecimento parcial da realidade, não implica em causa suficiente a afastar o efeito pretendido com a transação – qual seja, o de por fim ao litígio –, salvo se estes elementos puderem subsumir-se em alguma das figuras típicas da teoria das invalidades.

Na hipótese em comento, ao que se infere do precedente e considerando as restrições impostas ao conhecimento da matéria fática decorrentes da natureza do recurso especial, talvez se pudesse elucubrar a existência de uma situação que legitimasse a desconstituição do pacto e a complementação da indenização; tal sequer está em exame, uma vez que pressuporia a revisão das premissas sobre as quais se baseou o Tribunal de Apelação para a decisão do caso. Mas, para que tal fosse feito, chancelando-se a pretensão da vítima, seria necessário um esforço de subsunção deste arcabouço fático nas hipóteses de nulidade ou anulabilidade previstas no Código Civil6, mas não em argumentos casuísticos e desprovidos de um lastro normativo que lhe conferisse aptidão para invalidar a transação.

O que está em causa – e aparenta merecer reforço – é que somente será criado um ambiente de segurança jurídica que favoreça a autocomposição se as possibilidades de se superar o pactuado entre as partes sejam bem conhecidas e previamente determinadas. A existência de margem interpretativa para revisões pontuais que se valham de conceitos com pouco conteúdo normativo – dentre eles, mesmo que exemplificativamente, o pequeno ou grande lapso temporal entre a causação do dano e a composição entre as partes – é um desincentivo ao ajuste, o que vem no contrafluxo da primazia que se pretende dar à autocomposição.

Tal qual dito, não se trata de uma crítica ao resultado do julgamento, uma vez que talvez as condições fáticas justificassem alguma das hipóteses de invalidade da transação. O que se defende é que, quando necessário, tal seja feito com estrita observância das categorias jurídicas predispostas a este fim, tolhendo qualquer margem para casuísmos ou interpretações particularizadas que tragam insegurança jurídica e, por conseguinte, desincentivem a autocomposição.

*Felipe Teixeira Neto é Doutor em Direito Privado Comparado pela Università degli Studi di Salerno (Itália) e Doutor e Mestre em Direito Civil pela Universidade de Lisboa (Portugal); é Promotor de Justiça do Ministério Público do Rio Grande do Sul, desempenhando as funções de Coordenador do Núcleo de Resolução de Conflitos Ambientais da referida instituição (NUCAM/MPRS).

____________

1 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no Recurso Especial n.º 1.833.847/RS. 4ª Turma. Rel. Min.ª Maria Isabel Gallotti. Julgado em: 20 abr. 2020. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 20 jul. 2020.

2 ALMEIDA, Gregório Assagra de; OLIVEIRA, Igor Lima Goettenauer. Mecanismos Autocompositivos no Sistema de Justiça. In: AAVV. Manual de Negociação e Mediação para membros do Ministério Público. 2ed. Brasília: CNMP, 2015, pp. 74 e ss.

3 Assim estabelece a alínea (d) dos compromissos para a consecução dos objetivos estabelecidos no referido Pacto. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 20 jul. 2020.

4 SCHREIBER, Anderson et al. Código Civil Comentado. Doutrina e jurisprudência. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 547.

5 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 815.018/RS. 2ª Seção. Rel. Min. Raul Araújo. Julgado em: 27 abr. 2016. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 20 jul. 2020. No mesmo sentido: BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 809.565/RJ. 3ª Turma. Rel. Min. Sidnei Beneti. Red. p/ acórdão Min.ª Nancy Andrighi. Julgado em: 22. mar. 2011; Recurso Especial n.º 1.265.890/SC. 3ª Turma. Rel. Min.ª Nancy Andrighi. Julgado em: 01 dez. 2011. Ambos disponíveis em: clique aqui. Acesso em: 20 jul. 2020

6 Alguma controvérsia na doutrina estabelece-se sobre a possibilidade de se anular a transação com base nas figuras não referidas expressamente pelo artigo 849. O entendimento majoritário, contudo, aponta no sentido de que “à transação deverá ser aplicada a teoria das nulidades tratada na Parte Geral do CC/2002”; neste sentido, TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. Volume único. 10ed. São Paulo: Método, 2020, p. 818.

____________

Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunistas

Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.