Texto de autoria de Wagner Mota Alves de Souza
Há uma regra que atravessa os séculos e ainda desperta interesse na atualidade. Trata-se da norma legada às legislações modernas pelo direito romano que disciplina a responsabilidade decorrente de danos provocados pela queda ou lançamento de coisas. Eis a regra: "Aquele que habitar prédio, ou parte dele, responde pelo dano proveniente das coisas que dele caírem ou forem lançadas em lugar indevido (art. 938, CC).
A aparente clareza do texto legal esmaece diante da multiplicidade de situações fáticas que determinam a incidência da norma. E, à medida que as dificuldades se apresentam, os contornos da causalidade e da imputação tornam-se mais nítidos. Veja-se o exemplo da queda ou do lançamento de objetos de unidades autônomas não identificadas integrantes de condomínios horizontais.
Quando a autoria do dano não é identificada, um aspecto relevante do fenômeno causal fica sem resposta e o sistema de responsabilidade civil é desafiado a optar entre assimilação do dano pela vítima ou a escolha de um responsável pela reparação. O exemplo, ao tornar explícito o limite da investigação causal, coloca em evidência a noção de nexo de imputação e o relevante papel que exerce na responsabilidade civil.
Parte-se da premissa que a causalidade é captada de maneira fragmentada por teorias nominalmente causais, mas essencialmente normativas, que dirigem sua atenção ao dano e não apenas deixam de investigar a dinâmica causal em toda sua amplitude como também ocultam no discurso jurídico a noção de imputação.
Causalidade e imputação, contudo, são categorias distintas e complementares. Causalidade é relação; é conexão que envolve evento antecedente (ato ou fato), evento consequente (dano) e a dinâmica dessa interação. De outro lado, nexo de imputação é o fundamento ético-normativo da responsabilidade; erige-se num “fator especial” ou “elemento de qualificação”1 que justifica o dever de reparar. A autoria do dano é desvelada pelo nexo causal; o nexo de imputação tem por escopo identificar o responsável pela reparação. O dano é um termo a se relacionar (relata), um aspecto do fenômeno, mas há outros, cujo nexo causal tem a função de pôr em evidência.
Sabe-se que a regra é atribuir àquele que causa o dano o dever de reparar. Porém variadas exceções legais conjuram o não causador à responsabilidade. Assim o é na responsabilidade indireta (art. 932, CC) e na responsabilidade do transportador por acidente com passageiro provocado por terceiro (art. 735, CC), por exemplo.
Mas voltemos ao ponto de partida. Se a coisa sólida ou líquida foi lançada ou caiu por ação de pessoa diversa do habitante ou se dentre vários habitantes não se identifica quem agiu, temos pela frente um problema mais complexo a exigir resposta. Tal objeto poderá atingir pessoa ou coisa situados em via pública, em prédios vizinhos, na própria área comum de condomínio ou mesmo outra unidade autônoma. O lançamento de água poderia danificar móveis no apartamento inferior, um vaso poderia cair na área de estacionamento, atingindo um veículo e assim multiplicam-se os exemplos.
Cabe à vítima identificar o imóvel de onde partiu o dano e seu habitante. A norma, portanto, não impõe ao lesado o dever de identificar o causador. Estariam na condição de habitante, por exemplo, o proprietário, o locatário, o sublocatário, o usufrutuário, o comodatário, enfim, qualquer possuidor direto que ocupe o prédio. Subsiste, ainda, a responsabilidade do habitante quando um visitante eventual é o autor do dano, cabendo àquele ingressar com ação regressiva contra o ofensor.
Mas o problema crucial que envolve a aplicação do artigo 938 do Código Civil brasileiro diz respeito ao limite do nexo de imputação, especialmente, no caso de queda em condomínios horizontais sem a identificação da unidade na qual foi praticado o ato lesivo.
A lei brasileira não estabelece qualquer critério de limitação de responsabilidade. Diferentemente, outras legislações como os Códigos Civis chileno (art. 2.328, 1ª parte) e argentino (art. 1.760) possuem regra de limitação de natureza subjetiva.2
Diante da insuficiência da regulamentação pátria, respeitáveis doutrinadores sustentaram a exclusão de responsabilidade dos habitantes de unidades autônomas situadas em posição que permite concluir pela inocorrência da queda ou lançamento (ala de apartamentos em posição oposta ao provável local onde foi praticada a ação lesiva, p. ex.). Esta mesma corrente sugere a incidência da regra de solidariedade unindo no polo passivo da ação indenizatória todos aqueles que poderiam ser potenciais causadores, ou seja, os habitantes das unidades de onde a coisa poderia ter caído ou ter sido lançada.3
A solução proposta, há décadas, por expoentes da doutrina nacional coincide, em larga medida, com a disciplina legal argentina e chilena.
O problema da autoria incerta que indetermina o local de onde partiu a ação lesiva passa, então, não propriamente pela procura de um “causador” (obstáculo, por hipótese, intransponível), mas pela definição de um critério legitimador de atribuição de responsabilidade a não causadores. Assim, o problema não se exaure no campo da causalidade estrita ou puramente física, mas avança ao território da imputação.
No entanto, surge uma contradição. Se a investigação causal esbarra na incerteza da autoria, poderia o critério de imputação restringir a responsabilidade aos habitantes causadores potenciais? Esta solução, ao eleger a localização física dos habitantes como critério de imputação, não estaria fixando a responsabilidade de modo aleatório?
Pensamos que sim. Restringir o número de responsáveis pela utilização do critério da proximidade física com a origem do dano significa abandonar o fundamento da atribuição de responsabilidade definido pela norma e eleger um novo fundamento amparado na ideia de causalidade marcada, neste caso, pela indeterminação.
O artigo 938 do CC brasileiro, ao fixar seu critério de responsabilidade, elegeu um fator de imputação: incolumidade da via pública, visando à integridade pessoal e patrimonial dos transeuntes. Ideia que deve abranger os espaços comunitários de natureza privada (áreas comuns de condomínio) e as próprias unidades autônomas prejudicadas.
Qualquer critério de limitação subjetiva deveria orientar-se por este fundamento e apenas se justificaria para evitar uma atribuição arbitrária de responsabilidade. Se as razões que inspiram a limitação dos responsáveis não observarem o fator de imputação, mas um critério estritamente causal, haverá uma incongruência difícil de ser superada. Ademais, a limitação implica agravamento da posição da vítima e de vários habitantes não causadores do dano que tiveram o azar de estar no lugar errado no momento errado.
Nas legislações cuja restrição tem amparo legal, parece haver um déficit de legitimidade quanto ao critério de imputação do resultado. A crítica é de lege ferenda. No Brasil, pensamos que, não identificada a autoria real, devem ser responsabilizados todos os condôminos que habitem o prédio (imóvel sobre o qual se constituiu o condomínio edilício), pois não há uma limitação subjetiva definida em lei.
Tal responsabilidade não deve reger-se pela regra da solidariedade, mas pelo regime da obrigação unitária ou conjunta, desautorizando escolhas aleatórias pela vítima e firmando-se uma unidade indivisível de responsáveis. Responde perante a vítima o condomínio, que detém personalidade judiciária (art. 75, XI, do CPC), rateando-se o valor do prejuízo entre os condôminos, assegurada a ação regressiva contra o habitante da unidade autônoma de onde caiu ou foi lançada a coisa, caso seja identificado. Nesta linha, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e o enunciado nº 557 da VI Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal.4
A fronteira que divisa a causalidade da imputação nem sempre se mostra clara. É preciso realçar seus contornos para conferir maior segurança na resolução de questões controvertidas. Além dessa que abordamos, outra, digna de nota, situa-se no campo da responsabilidade civil por atos omissivos e está submetida ao regime de repercussão geral pelo Supremo Tribunal Federal. Trata-se da responsabilidade por danos provocados por presos foragidos.5 O tema tem provocado oscilações na jurisprudência e aguarda uma resposta que talvez não esteja na predileção por teorias da causalidade, mas na definição dos limites da atribuição de responsabilidade. Mas esse é um assunto cuja reflexão exige mais linhas; deixemo-lo para outra oportunidade.
Vimos que o vetusto effusum et deiectum conecta-se com problemas contemporâneos e põe em evidência os limites da investigação causal e a importância da imputação no âmbito da responsabilidade civil. Ensina-nos que não há sobreposição, mas complementaridade, entre causalidade e a imputação. E mais, sinaliza-nos que temas polêmicos, como o que aguarda deliberação do STF, talvez precisem ir além da análise causal estritamente fisicista.
*Wagner Mota Alves de Souza é mestre em Direito Privado e Econômico pela FDUFBA e doutorando em Direito Civil pela FDUSP. Juiz Federal.
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1 GODOY, Cláudio Luiz Bueno. Responsabilidade Civil pelo Risco da Atividade e Nexo de Imputação da Obrigação de Indenizar: Reflexões para um Colóquio Brasil – Portugal in Cadernos de Pós-Graduação em Direito: estudos e documentos de trabalho / Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 1, 2011-, p. 38-48. Organizadores: José Fernando Simão e Fernando Araújo.
2 Art. 2.328, 1ª parte: “Cosa suspendida o arrojada. Si de una parte de un edificio cae una cosa, o si ésta es arrojada, los dueños y ocupantes de dicha parte responden solidariamente por el daño que cause. Sólo se libera quien demuestre que no participó en su producción”; Art. 1.760. “Cosa suspendida o arrojada. Si de una parte de un edificio cae una cosa, o si ésta es arrojada, los dueños y ocupantes de dicha parte responden solidariamente por el daño que cause. Sólo se libera quien demuestre que no participó en su producción.”
3 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. 3. ed. São Paulo: Ed. RT, 1984. t. LIII, p. 404; AGUIAR DIAS, José de. Da Responsabilidade Civil: 2v. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 87, nota 836.
4 RESPONSABILIDADE CIVIL. OBJETOS LANÇADOS DA JANELA DE EDIFÍCIOS. A REPARAÇÃO DOS DANOS É RESPONSABILIDADE DO CONDOMÍNIO. A impossibilidade de identificação do exato ponto de onde parte a conduta lesiva, impõe ao condomínio arcar com a responsabilidade reparatória por danos causados à terceiros. Inteligência do art. 1.529, do Código Civil Brasileiro. Recurso não conhecido. (REsp 64.682/RJ, Rel. Ministro BUENO DE SOUZA, QUARTA TURMA, julgado em 10/11/1998, DJ 29/03/1999, p. 180); Enunciado nº 557: Nos termos do art. 938 do CC, se a coisa cair ou for lançada de condomínio edilício, não sendo possível identificar de qual unidade, responderá o condomínio, assegurado o direito de regresso.
5 Tema 362: RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO – DANO DECORRENTE DE CRIME PRATICADO POR PRESO FORAGIDO. Possui repercussão geral a controvérsia acerca da responsabilidade civil do Estado em face de dano decorrente de crime praticado por preso foragido, haja vista a omissão no dever de vigilância por parte do ente federativo. (RE 608880 RG, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, julgado em 03/02/2011, DJe-183 DIVULG 17-09-2013 PUBLIC 18-09-2013 EMENT VOL-02702-01 PP-00014).