Texto de autoria de Caroline Vaz
No contexto de Pandemia alguns temas sensíveis relacionados aos Direitos Humanos1 assumem especial relevância. Se o Direito Humano Fundamental à Vida está no epicentro da tutela jurídica prioritária no mundo e no Brasil, também é certo que para assegurá-lo diversos outros Direitos merecem especial atenção do Estado.
A Constituição Federal brasileira trouxe em seu artigo 6º, além do Direito à saúde, o Direito Fundamental Social à alimentação (com a redação dada pela EC 64/10), para que fossem criadas políticas voltadas à implementação do acesso à população vulnerável brasileira. Internacionalmente, o Direito Humano à alimentação adequada está contemplado no artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 19482. Sua definição foi ampliada em outros dispositivos do Direito Internacional, como o artigo 11 do Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Comentário Geral nº 12 da ONU, e sua aplicação ainda é um desafio a ser enfrentado3.
Nesse sentido, no atual momento histórico a pandemia da Covid-19 representa uma ameaça à segurança alimentar, especialmente para as comunidades mais vulneráveis do mundo, segundo relatório da ONU sobre o tema lançado neste mês de junho de 2020. Este ano, cerca de 49 milhões de pessoas podem cair na pobreza extrema devido à crise da Covid-19, segundo o documento, o qual lembra que muitos já vivem numa crise alimentar mesmo antes da pandemia, pois centenas de milhões de pessoas lutavam contra a fome e a desnutrição4. E o Brasil, que saiu do Mapa da Fome em 2014, agora está caminhando a passos largos para voltar", com mais de 5% da população em pobreza extrema, levando em conta anos anteriores5. A estimativa é de que cerca de 5,4 milhões de pessoas passem para a extrema pobreza por conta da pandemia. O total chegaria a quase 14,7 milhões de pessoas até o fim de 2020, ou cerca de 7% da população, segundo estudos do Banco Mundial6.
Como um instrumento de enfrentamento do problema, foi publicada no dia 23 de junho de 2020 a lei Federal 14.016, a qual "dispõe sobre o combate ao desperdício de alimentos e doação de excedentes de alimentos para o consumo humano", concretizando a possibilidade de os estabelecimentos dedicados à produção e ao fornecimento de alimentos, incluídos alimentos in natura, produtos industrializados e refeições prontas para o consumo, doarem os excedentes não comercializados e ainda próprios para o consumo humano desde que atendidos os critérios nela expostos.
Do ponto de vista político, econômico e principalmente social, a novel legislação chega em boa hora, haja vista as discrepantes realidades quanto ao desperdício de alimentos constatado especialmente em estabelecimentos comerciais, em contraposição ao número de pessoas sem acesso à alimentação adequada no que diz respeito à quantidade mínima para subsistência, conforme os dados mencionados acima.
Contudo, sob o aspecto jurídico, o artigo 3º traz à lume o longo debate acerca da responsabilidade civil dos doadores, ao estabelecer: "art. 3º. O doador e o intermediário somente responderão nas esferas civil e administrativa por danos causados pelos alimentos doados se agirem com dolo. § 1º A responsabilidade do doador encerra-se no momento da primeira entrega do alimento ao intermediário ou, no caso de doação direta, ao beneficiário final. § 2º A responsabilidade do intermediário encerra-se no momento da primeira entrega do alimento ao beneficiário final. § 3º Entende-se por primeira entrega o primeiro desfazimento do objeto doado pelo doador ao intermediário ou ao beneficiário final, ou pelo intermediário ao beneficiário final"7.
É cediço que no Brasil, país reconhecido mundialmente por sua nação solidária, não se teria qualquer problema de implementar, independentemente de lei, iniciativas humanitárias como essa agora normatizada. Mas foi a preocupação com a responsabilidade civil, administrativa e até mesmo penal dos doadores, que atravancou diversas intenções nesse sentido. Ou seja, o alimento e sua ingestão é indubitavelmente um fator de risco à saúde e à própria vida, o que gera complexidade quanto à análise do tema. Aliás, Segundo Rafaelli Di Giorgi, "a análise do risco na sociedade contemporânea pode ter a função de racionalizar o medo [...] o tema do risco tornou-se objeto de interesse e preocupação da opinião púbica quando o problema da ameaça ecológica permitiu a compreensão de que a sociedade produziria tecnologias que poderiam acarretar danos incontroláveis"8. Entretanto, existem duas alternativas de tratamento do risco, segundo o autor, consequência da verificação de que a segurança é um artefato em que não se pode confiar. "A primeira seria tratar o risco como uma condição existencial, o resultado de uma condenação à liberdade, que explicava a insegurança como o reflexo de caráter arriscado da existência. [...] a outra trata da hipótese da segunda modernidade, também chamada de contra-modernidade ou sociedade de risco. [...] esta sociedade começa aí onde falham pela sua incapacidade de controlar as ameaças que provêm das decisões. Tais ameaças são de natureza ecológica, tecnológica, política, e as decisões são resultado de relações que derivam da racionalidade universal"9.
Por essa razão, sem aprofundar a análise científica (qualitativa e quantitativa) feita pelos experts em alimentos, compreende-se configurado o risco alimentar quando há a probabilidade de, por meio da ingestão de alimentos, ocorrer dano à vida ou à saúde do ser humano10, situação esta decorrente da insegurança acerca das condições em que o alimento se encontra para ser ingerido e as consequências ao organismo.
Por isso não se pode deixar de considerar que a relação do risco com a segurança alimentar deve ser analisada cum grano salis. Como bem referiu Alves Paz em congresso nacional sobre os alimentos no Brasil, a "segurança alimentar possui diversas dimensões fundamentais, estabelecidas pela própria FAO: quantidade de alimentos suficiente; qualidade e sanidade da alimentação e garantia de acesso digno a esses alimentos"11, e a Agência de Vigilância Sanitária brasileira repercute no seu codex alimentarius referidas dimensões, divulgando como deve ser feita a avaliação do risco no que concerne aos alimentos colocados à disposição dos destinatários no país12, visando a evitar consequências adversas à saúde, respeitando o contexto nacional. Já os demais órgãos relacionados à regulação e fiscalização, Estadual e Municipal, especificam as normas federais de acordo com as peculiaridades locais.
Assim surge a dicotomia: segurança alimentar do ponto de vista da quantidade suficiente (food security), mas também do ponto de vista da qualidade do alimento, (food safety).
A primeira reflexão que o novo texto legal suscita é quanto aos efeitos a quem entrega um alimento que não seja seguro. Se este causa danos à saúde de alguém, ocorrendo a análise do fato sob o prisma das relações de consumo (artigos 12 e 18 da Lei nº 8078/90 (Código de Defesa do Consumidor), teríamos a responsabilidade civil objetiva do fornecedor (definido no artigo 3º). Mas a legislação sobre a doação de alimentos tem outro viés. A proteção do Direito Fundamental à alimentação, excluindo expressamente, embora não o precisasse fazer, a caracterização de relação consumerista (art.2º, parágrafo único).
Sobre a espécie de responsabilidade civil e a sua caracterização e até mesmo eventuais excludentes, reside urgência da reflexão sobre o artigo 3º.
Ao referir que os doadores somente respondem por danos causados pelos alimentos doados quando "agirem com dolo", traz à responsabilidade civil um paradoxo sistêmico, inclusive acerca da preponderância de direitos fundamentais.
Partindo-se da premissa de ser o prejuízo decorrente de ilícito, superando-se a divisão da responsabilidade em contratual e extracontratual, já que decorre do dever geral de não lesar outrem (neminem laedere), bem como considerando a natureza extrapatrimonial dos danos, surgem algumas interpretações possíveis.
Talvez o principal debate se dê em torno da conduta dos doadores e sua censurabilidade, grife-se, “estabelecimentos dedicados à produção e ao fornecimento de alimentos”, nos termos do artigo 1º. Ou seja, quando se entregam alimentos de forma remunerada, como produto, são fornecedores e exercem atividade de risco, daí a responsabilidade civil objetiva. Contudo, quando os entregam como excedentes, de forma gratuita, o risco desaparece, sendo necessária a comprovação da culpa na sua modalidade mais extrema, o dolo, a intenção direta ou indireta de causar prejuízo aos donatários?!
Pelo menos alguns aspectos, como outras espécies de culpa lato senso, poderiam ser também considerados. Por exemplo, para a caracterização da responsabilidade, a culpa grave poderia estar nessa previsão. Afinal, todo aquele que produz e comercializa um alimento assim como os intermediadores até o destinatário final devem adotar as normas técnicas nessa cadeia. Existe uma gama enorme de atos normativos estabelecidos pela ANVISA e pelos órgãos da fiscalização Sanitária e Agropecuária dos Estados e Municípios, além das práticas previstas pelas áreas voltadas à saúde, como nutrição, a química, a biologia, etc que asseguram a integridade do alimento. Se não são observadas tais regras o alimento não pode ser fornecido a consumidores, que também são vulneráveis, nos termos da lei 8.078/90, e nem entregues a donatários vulneráveis, nos termos da lei 14.016/20, pois há o risco de contaminação pela ingestão. E isso, a inobservância das regras vigentes para o setor, não configuraria por si só conduta dolosa, ou seja, intenção direta ou indireta de causar danos a terceiros.
Percebe-se, igualmente, nos parágrafos 1º a 3º, do artigo 3º, a preocupação em estabelecer, ao contrário do que ocorre na maior parte das relações de consumo, uma redação que afaste a solidariedade entre eventuais colaboradores no processo até o o “beneficiário final”. Ou seja, o legislador estabeleceu uma responsabilidade exclusiva e subjetiva do doador e do intermediário, salvaguardando corresponsabilidade nesse processo. Portanto, a vítima do dano, a quem se volta a responsabilidade civil, terá o ônus de, além de demonstrar a culpa do agente, identificar em que momento o alimento deixou de ser idôneo para sua ingestão?!
Por outro lado, poder-se-ia abordar, ainda, o caráter da urgência da alimentação para a manutenção da vida e entender que quem entrega o alimento age sob o "manto" do "estado de necessidade de terceiro", o que afastaria a responsabilização a quem alegasse tal excludente de ilicitude quando adviesse um prejuízo à saúde do donatário?
Não se pode perder de vista que evitar a lesão à saúde e à própria vida das pessoas, nessa esteira de raciocínio, incita um conjunto amplo de políticas públicas pelo Estado, sendo que a segurança alimentar, no que concerne à quantidade, não pode descuidar da qualidade do alimento. Urge, pois, a preocupação com a regulamentação da matéria de acordo com a espécie de estabelecimento ou doador (supermercados, padarias, restaurantes, fruteiras, etc), já que para a manutenção da própria sobrevivência o ser humano tem a necessidade de se alimentar diversas vezes, diariamente, e cada setor tem suas normativas próprias para que esse alimento se mantenha hígido.
A preocupação com o assunto tem despertado considerável interesse por parte da biologia, sociologia, medicina, entre outros ramos do conhecimento, inclusive o Jurídico. Porém, percebe-se por vezes a disparidade das previsões normativas, outras vezes sobreposições. Daí a necessidade de legislações de forma sistematizada.
A normatização por Lei Federal da doação de alimentos excedentes dos estabelecimentos é louvável diante do cenário de Pandemia em que a luta contra a fome no Brasil (e no mundo) passa a ser novamente tema de preocupação do governo e da sociedade em geral. Porém, quanto aos aspectos da responsabilidade civil e até mesmo administrativa merece maior debate e reflexão. Iria além, merece uma conscientização de quem doa e de quem recebe o alimento. Avaliar as condições deste antes de ingerir, se for possível, sobreleva-se para precaução do risco alimentar, pouco importando se o acesso se deu de forma gratuita ou onerosa, para que a cultura da doação não se dê somente em épocas de pandemia e, menos ainda, para que as legislações não gerem a falta da efetividade e eficácia pretendidas, preservando-se, acima de tudo, o direito à saúde e à vida.
*Caroline Vaz é doutora em Direito pela Universidade de Zaragoza, promotora de Justiça, professora de Direito Civil da PUC/RS e da FMP.
__________
1 Para Perez-Luño, Direitos Humanos e Fundamentais não são sinônimos. Os direitos fundamentais são aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados em esfera do direito constitucional positivo de um determinado Estado, enquanto que os direitos humanos se relacionam aos documentos de direito internacional, onde se evidenciam posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, não importando sua vinculação com determinada ordem constitucional, desvinculada de tempo, aspirando validade supranacional. Partindo destes conceitos, pode-se dizer que os direitos humanos que adentram no ordenamento jurídico constitucional de um Estado pelos caminhos estabelecidos internamente, passam a integrar o rol dos direitos fundamentais deste EstadoPÉREZ LUÑO, Antonio-Enrique. Los derechos fundamentales. 9ª. ed. Madrid: Tecnos, 2007.
2 Vide aqui. Último acesso em 25 de junho de 2020.
3 Disponível aqui.
4 Disponível aqui. Último acesso em 25 de junho de 2020.
5 Disponível aqui. Último acesso em 24 de junho de 2020.
6 Disponível aqui. Último acesso em 25 de junho de 2020.
7 DI GIORGI, Raffaele. Direito, democracia e risco: vínculo com o futuro. Porto Alegre: Fabris, 1998.
8 DI GIORGI, Raffaele. Direito, democracia e risco: vínculo com o futuro. Porto Alegre: Fabris, 1998.
9 VAZ, Caroline. Direito do Consumidor à Segurança Alimentar e Responsabilidade Civil. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2015.
10 Sobre o tema, vide: DOUGLAS, Mary. Pureza e perigo. São Paulo: Perspectiva, 1976.
11 Sezifredo, Paulo Alves Paz. Secretário Executivo do Fórum Nacional das Entidades Civis de Defesa do Consumidor. (PAZ, Sezifredo Alves. Palestra. In: ENCONTRO BRASILEIRO DE ALIMENTOS, 2., Porto Alegre 2008. [Texto...] Disponível aqui.
12 ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DE SAÚDE. Higiene dos alimentos: textos básicos. Brasília: OPAS, 2006. p. 56. Disponível aqui. Último acesso em 25 junho de 2020.
__________
Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).