Migalhas de Responsabilidade Civil

A força maior como excludente de responsabilidade no contexto da pandemia

A força maior como excludente de responsabilidade no contexto da pandemia.

25/6/2020

Texto de autoria de Gabriel de Freitas Melro Magadan

A pandemia que estamos vivendo, e que se alastra desordenadamente em escala global, tem trazido também ao direito questões que devem ser analisadas e debatidas em múltiplas dimensões jurídicas. O tema da incidência da chamada força maior ganha relevância no contexto do debate sobre a reponsabilidade civil e suas excludentes. E traz consigo à discussão se tal evento sanitário, em sua magnitude e impacto sobre a vida e a saúde das pessoas, e de seus inevitáveis desdobramentos sociais e econômicos, constitui-se em fato extraordinário - e necessário - suficiente para afastar por si só a reponsabilidade pelos danos verificados.

A questão comportará diferentes respostas de acordo com a situação específica envolvida, nas variadas esferas das relações humanas, envolvendo o direito público e o privado, o poder estatal e os cidadãos; desde o âmbito das interações pessoais às incontáveis transações comerciais. A hipótese que surge de modo evidente é a que indaga quanto à natureza jurídica de um fato estranho ao ordinário dos acontecimentos. Ao fato que se interpõe constituindo-se obstáculo intransponível aos sujeitos de um vínculo previamente estabelecido (contratual) ou em razão do cometimento de um ilícito civil (extracontratual).

A discussão leva ao enfrentamento do problema que em nosso ordenamento vem expresso de forma conjunta e indistinta nas locuções caso fortuito ou força maior, ficando reservada à doutrina, e, eventualmente, à jurisprudência, a distinção. O entendimento não é uníssono, ora caminha para a discriminação de fatos, entre os que decorrem da ação humana (caso fortuito) ou da ação da natureza (força maior); ora, ainda, na apuração de requisito objetivo (externalidade, inevitabilidade) ou subjetivo (ausência de culpa, cautela e previsibilidade). Na prática, ambas conduzem ao mesmo resultado que é a exoneração a responsabilidade.

Entre nós, Agostinho Alvim, por exemplo, filiando-se à corrente francesa liderada por Colin et Capitant, entendeu que a diferença se daria em face do fundamento da responsabilidade (se baseada na culpa ou no risco)1. No caso fortuito, a impossibilidade de cumprimento de uma obrigação seria relativa (impossível para o sujeito envolvido) e na força maior a impossibilidade é absoluta, ou seja, é impossível para qualquer pessoa. A proposição é admitida na jurisprudência pátria, destacando as hipóteses do fortuito interno e externo. Na responsabilidade fundada na culpa bastaria o caso fortuito para exonerar-se; no risco, não haveria a exoneração. No fortuito interno persiste o nexo de causalidade verificável no risco envolvido na atividade do agente, caso do serviço de transporte, bancário, cujo alargamento do instituto se tem feito por força da jurisprudência, abarcando casos que seriam previsíveis e esperados no interno de suas práticas econômicas. Somente a força maior, também denominado fortuito externo, seria passível de exoneração. Nesses termos, apenas o acontecimento tido por "irresistível", "imprevisível" e "exterior", é que admitiria exclusão da reponsabilidade.

Resta a dúvida se a imprevisibilidade poderia também constituir um requisito para a escusa da obrigação indenizatória. A doutrina não é unânime. Caio Mario, por exemplo, defendia que não o era, afirmando que mesmo o evento previsível adviria com "força indomável e irresistível", e que a imprevisibilidade deveria ser considerada quando determina a inevitabilidade. Apontava a respeito da diversidade de autores para os quais somente haveria exclusão da responsabilidade no "fato absolutamente imprevisível", que se distinguiria do fato "normalmente imprevisível", o que "importaria na apuração em cada caso de saber quando é absoluta e quando é normal", recaindo, na sua visão, ao "requisito da inevitabilidade". Os acontecimentos de caso fortuito ou força maior constituiriam excludentes de responsabilidade quando demonstrado que do fato decorressem consequências que não pudessem ser evitadas pelo agente, de forma necessária2. Os fatos iniciados ou agravados pelo agente, nessa lógica, não se excluem, vindo ele a responder integralmente.

A vis maior ou força maior remonta à sua origem ao direito romano e tem seu posterior desenvolvimento teórico nos sistemas romano-germânicos, especialmente durante o processo de codificação3. A proposição de force majeure associada ao cas fortuit, de forma sinonímia, era já prevista no Code Civil francês de 1804, servindo de referência a diferentes legislações, inclusive a nossa, no artigo 393 do Código Civil. É destacada como fato necessário, que foge ao controle e à vontade das partes, de modo inevitável e irresistível. Os prejuízos verificados decorrem de uma causa estranha (cause étrangère) aos sujeitos envolvidos, dado que por força extrínseca impede o cumprimento de uma obrigação contratual ou rompe o nexo de causalidade na responsabilidade pelo ato ilícito.

O evento denominado por força maior pode decorrer de um fato da natureza, uma catástrofe ambiental, um terremoto, um tsunami, ou uma pandemia, ou mesmo de uma ação humana externa4. É importante ter presente que determinada situação como a de um surto epidêmico pode se revestir de características que venham a afastar responsabilidade, mas haverá também em algum momento que se considerar a existência de um "novo normal", que se dá no curso da pandemia, e no qual as medidas de contingenciamento, cuidado e precaução, tornam-se imprescindíveis. Em tal cenário a simples alegação de inevitabilidade pode não ser mais um argumento suficiente a eximir de responsabilidade.

O governo brasileiro recentemente expediu uma medida provisória (MP 966 de 14 de maio de 2020) tentando proteger o agente público de responsabilidade pelos seus atos. Debate-se acerca da sua eventual inconstitucionalidade. A tentativa de disciplinar regras de inopino, ainda que calcada em boas intenções, pode fortalecer o caos e a insegurança jurídica. Não se pode esquecer que existem mecanismos na própria legislação que permitem ao julgador a avaliação do caso concreto e a eventual exoneração de responsabilidade, diante inclusive de situações extremas como no caso de necessidade. Veja-se o cruel dilema que se teve notícia na Itália onde médicos tiveram que escolher entre seus pacientes os que deveriam sobrevier. Decisão que está entre os males mais perversos das consequências de uma pandemia, que afeta não só o doente, mas o sistema de saúde como um todo.

Os dissensos, ora ideológicos, ora com fundamento científico, sujeito às falsificações, são maiores que os consensos. A ausência de certeza nesse contexto deve também contribuir para uma maior dificuldade na análise dos casos concretos sob a ótica da responsabilidade civil e suas consequências indenizatórias. O surto global da doença que carrega o vírus, em seu potencial de contaminação, é inédita à atual geração. A ocorrência de surtos epidêmicos, no entanto, e o seu fenômeno e transitoriedade são conhecidos da ciência, e desde 1917, na então chamada gripe espanhola, não alcançava os índices de disseminação e impacto social e econômico como agora. E seu prolongamento talvez sequer encontre parâmetros precedentes.

No âmbito da responsabilidade estatal, pode-se até mesmo questionar se a pandemia em si é um evento absolutamente imprevisível, e se nesse caso poderiam ser evitados os seus efeitos. Em obra clássica no direito brasileiro, de 1937, Caso fortuito e teoria da imprevisão, Arnoldo Medeiros já destacava que a noção de caso fortuito e força maior pode variar conforme as condições de fato em que se verifique o acontecimento em consideração ao progresso da ciência e a capacidade de previdência humana5. O que traz a indagação a respeito da situação que se enfrenta com a COVID-19. A possibilidade epidêmica, na gravidade enfrentada não era estranha à ciência, vários são os indicativos apontados por extensa produção de pesquisa ao longo dos anos. A última epidemia em escala global, como se disse, ocorreu há cem anos, e estudos científicos de virologia e infectologia ao longo do tempo apontavam que o fato poderia se repetir. A dúvida era em que momento. O evento estava na ordem dos acontecimentos prováveis, e aparentemente ignorados pelos agentes públicos responsáveis por políticas de prevenção, a fim de evitar ou diminuir o impacto de consequências desastrosas.

A respeito da exoneração da responsabilidade, no que diz respeito à força maior, será fundamental a avaliação concreta das circunstâncias e a observação dos fatores que concorreram de forma preponderante para resultados tidos por lesivos. A existência de uma situação extraordinária, compondo-se de fato necessário, que impede o cumprimento de uma obrigação ou que interrompe o nexo causal e afasta a conduta do sujeito frente ao dano. A mera dificuldade não pode servir ao oportunismo da escusa. Há que se separar também os momentos, anterior e posterior ao início da pandemia, e identificar as condições objetivas de cada caso. Outro fator relevante é a verificação da possibilidade de interação entre múltiplas causas, e do chamado fenômeno concausalidades ou mesmo da concorrência entre causas, nas quais diferentes cadeias causais podem agir, contribuindo ou se interpondo na produção do resultado danoso, tornando a individualização dessas variáveis um aspecto importante na imputação de responsabilidade. São, por certo, algumas indagações que se põem aqui de modo propositivo ao debate que se fará presente e que terá lugar na controvérsia a respeito desse insidioso e relevante tema.

*Gabriel de Freitas Melro Magadan é doutor em Direito Civil pela UFRGS. Mestre em Direito Romano e da Unificação do Direito pela Università di Roma Tor Vergata’. Advogado e professor no curso de pós-graduação em Responsabilidade Civil na PUC/RS.

__________

1 ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências. São Paulo: Saraiva, 1949, p. 315.

2 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil, 12ª ed., atualizador Gustavo Tepedino, Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2018, p. 399.

3 MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsói, 1966. t. 23, § 2793, p. 77

4 AGUIAR DIAS, José de. Da reponsabilidade civil, Rio de Janeiro: Renovar, XI edição, 2016, p. 935 e ss.

5 FONSECA, Arnoldo Medeiros da. Caso fortuito e teoria da imprevisão, Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 2ª ed., 1943, p. 147.

__________

Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunistas

Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.