Migalhas de Responsabilidade Civil

Prescrição e RJET (lei 14.010/2020): surgimento de um problema e perda da chance de sua solução

Prescrição e RJET (lei 14.010/2020): surgimento de um problema e perda da chance de sua solução.

15/6/2020

Texto de autoria de Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho

Eis que foi sancionada, com muitos vetos, pelo presidente da República e publicada na sexta-feira, dia 12 de junho, a lei 14.010/2020, que institui regime jurídico emergencial e transitório (RJET) das relações jurídicas de Direito Privado no período da pandemia, em meio ao feriado de Corpus Christi, e no último dia do prazo assinalado para sanção1.

O projeto era aguardado com notável interesse pela comunidade jurídica e sua tramitação fora acompanhada de perto pelos meios acadêmicos e instituições científicas dedicadas ao direito privado, que não deixaram de apresentar contribuições e sugestões de aperfeiçoamento de seu texto, resultantes de incansáveis debates em meio digital – para os quais certamente contribuiu o ambiente de isolamento social decretado para conter o avanço exponencial da Covid-19.

Seus dispositivos, sob tais circunstâncias, eram já de todos conhecidos e, um por um, vinham sendo citados como embasamento de artigos científicos e, inclusive, como fundamentação de decisões judiciais2.

Causou enorme perplexidade, portanto, o veto de nada menos do que 8 artigos no total de 21 que compõem a normativa transitória, ou seja, quase 40% do novo corpo legal. Certamente, a repercussão da extensão do veto, sua eventual derrubada pelo Congresso Nacional, e bem assim o conteúdo final sancionado, diante da relevância dos assuntos tratados, serão objeto de estudos aprofundados já a partir dos próximos dias.

A coluna de hoje limita-se, no entanto, a apontar um grave problema associado à disciplina da prescrição (art. 3º) e a perda da chance de solucioná-lo ainda no âmbito do processo legislativo do RJET. Pontue-se que preocupação idêntica suscita a disciplina da suspensão dos prazos da usucapião (art. 10), mas seu desenvolvimento escapa aos lindes deste espaço. Diga-se ainda, em breve parêntese preliminar, que o tema da prescrição passou a ocupar posição de destaque no seio da responsabilidade civil contratual e aquiliana, seja pela gigantesca redução dos prazos operada pelo Código Civil, seja pela possiblidade de sua decretação de ofício pelo magistrado, seja pelas cambiantes interpretações do Superior Tribunal de Justiça em torno do prazo da responsabilidade negocial, dentre outras razões.

A suspensão dos prazos nominados no parágrafo anterior em virtude da lastimável pandemia é medida de inegável acerto. Não se duvida disso, tanto assim que, de modo geral, foi muito bem recebida pela doutrina do direito civil em diferentes manifestações por todo o país. E, não à toa, repete o que se praticou em experiências estrangeiras que precederam o Brasil no rumo da evolução da peste (Portugal e Espanha, por exemplo, adotaram política legislativa análoga3).

Mas, retomando, qual o problema com o teor do art. 3º (e do art. 10, também) se suspender prazos se revela, afinal, medida adequada ao quadro de calamidade pública subitamente instaurado? A rigor, nenhum. A suspensão projetaria seus efeitos a partir da data da vigência da lei e o faria até o dia 30 de outubro. Aqui, cumpre enfatizar que o problema não está na redação da lei em si, mas no tempo (longo, longuíssimo nas circunstâncias) de tramitação do processo legislativo.

Sufragou o legislador a percepção de que a lei nova não poderia, por força de ditame pétreo (Constituição, art. 5º, XXXVI, c/c art. 60, §4º, IV), retroagir para alcançar direitos adquiridos representados (i) pela liberação do devedor beneficiado com a consumação do prazo prescricional e (ii) pela aquisição da propriedade em favor do possuidor que completa o tempo legal que lhe permite usucapir. De maneira que, não podendo agasalhar pretensões contra fatos consumados e situações estabilizadas antes de sua entrada em vigor, teria andado bem o legislador, numa primeira análise, em fazer coincidir o termo a quo da suspensão com o início de sua vigência. O problema só nasce – e, pior, se desenvolve para além do esperado – por conta da demora na tramitação do projeto no Congresso, em especial na Câmara dos Deputados, e na presidência da República, como já assinalado4.

Dito fato superveniente afeta sobremaneira a posição jurídica de eventuais credores que, prejudicados com os efeitos da crise sanitária e suas medidas de contenção, não logram interromper o fluxo dos períodos extintivos/aquisitivos em seu desfavor. É de se supor que, de fato, a capacidade defensiva de seus interesses sofra restrições decorrentes da proibição de circulação nas cidades e da própria paralisação da atividade econômica, a influir na coleta de elementos probatórios, contratação de advogados, organização da tese jurídica, dedução de pretensões em juízo etc. Sem falar que, em meio ao surto pandêmico, acabe-se por priorizar, como natural, saúde e segurança em detrimento das relações patrimoniais. Decorre exatamente daí o problema da demora no curso do processo legislativo: é que, apesar de tudo, os prazos materiais continuavam a fluir, solapando direitos, potestades e pretensões.

Escapou, no entanto, ao legislador a ideia de que o projeto pudesse tramitar em ritmo incompatível com a celeridade que seu próprio objeto se dispôs a consagrar, vale dizer, a implantação de regime jurídico emergencial e transitório para as relações privadas. Veja-se: os efeitos fáticos da pandemia e seu marco jurídico inicial, com decretação de calamidade pública, se iniciam a partir do mês de março de 2020. Então, da associação da demora da instituição do regime emergencial com o agravamento do ciclo da patologia poderão resultar (evitáveis) injustiças.

A rigor, para evitar a iniquidade do deslocamento do termo inicial da suspensão para os idos de junho, poderia o Congresso ter lançado mão do expediente descrito a seguir neste artigo a fim de, ao menos, minimizar os danos produzidos pela excessiva demora para aprovação do comando normativo em questão. Até porque a postergação da vigência foi tornando paulatinamente mais tormentosa a questão, dada a quantidade, que se supõe expressiva, de prazos prescricionais que se consumavam no período de tramitação do projeto de lei. Por certo as pretensões já fulminadas pela prescrição nesse interregno não poderiam ser objeto do regime jurídico transitório, vez que se trata de direito adquirido, inalcançável retroativamente pela nova lei5.

De outro giro, há as pretensões que surgiram antes ou durante a pandemia de Covid-19 e cujos prazos prescricionais ainda não se consumaram. Nesses casos, não se está diante de direito adquirido, mas de mera expectativa de direito, razão pela qual não há qualquer óbice à interferência legislativa para aumentar, diminuir ou suspender prazos6.

À vista de tais fatores, o melhor caminho, nos parece, seria separar duas situações, quando do momento da vigência da lei nova:

- prazos prescricionais em curso;

- prazos prescricionais consumados.

A solução que projeta efeitos a partir dessa perspectiva dual decorre das melhores teorias de direito intertemporal, de longa tradição no direito civil brasileiro (Clovis Bevilaqua, Eduardo Espínola, Luiz Carpenter, Reynaldo Porchat7), a sopesar, em lógica ponderativa, entre a segurança jurídica proveniente da lei antiga e a justiça que emana da melhor proposição normativa da lei nova (em sentido semelhante, na experiência europeia clássica, destacam-se as lições de Gabba, Roubier e Windscheid). Como resultado, não há fundamento jurídico que obstaculize se considerassem suspensos desde 20 de março os prazos não consumados na data da entrada em vigor da lei nova.

Veja-se a dicção do texto em análise e compare-se com a proposta de redação:

Art. 3º - Os prazos prescricionais consideram-se impedidos ou suspensos, conforme o caso, a partir da vigência desta Lei até 30 de outubro de 2020.

Art. 3º (em hipotética redação) - Os prazos prescricionais consideram-se impedidos ou suspensos, conforme o caso, entre os dias 20 de março de 2020 e 30 de outubro de 2020, ressalvados os prazos consumados antes da vigência desta Lei.

Como se vê, a elucubração aqui veiculada consiste, em síntese, na alteração do termo inicial dos impedimentos ou suspensões dos prazos prescricionais para o dia 20 de março de 2020, em lugar da contagem do hiato “a partir da vigência desta Lei”. Com essa precaução se teria prevenido o significativo esvaziamento da utilidade prática da disposição em decorrência da morosidade do processo legislativo e maior número de interesses dignos de tutela teria sido preservado, assegurando tempo útil de atuação defensiva ao titular da situação jurídica afetada. Atenderia, assim, aos imperativos de justiça e isonomia substancial, levando em conta a explosão dos números de atingidos pela doença em todo o território nacional e as dificuldades mencionadas em termos de capacidade defensiva de direitos, a prejudicar ou impedir as ações de pessoas momentaneamente prejudicadas em virtude das medidas de enfrentamento da Covid-19. A alternativa sugerida para termo inicial do período suspensivo – 20 de março de 2020 – conferiria, inclusive, melhor sistematicidade às previsões legais, dado que a referida data é definida no artigo 1º, parágrafo único, como o termo inicial dos eventos derivados da pandemia do coronavírus, e, ainda, encontra-se mencionada como marco temporal nos artigos 12, par. único; 14 caput e § 1º. A ressalva ao final, para conferir tratamento diferenciado aos prazos já consumados, é de todo necessária tendo em vista a garantia de direito adquirido do devedor beneficiado com o escoamento completo do prazo.

*Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor Titular e ex-coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ. Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Procurador do Estado do Rio de Janeiro. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da PGE-RJ (ESAP). Vice-presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). Advogado, pareceirista em temas de Direito Privado.

__________

1 Conforme se retira do ofício nº 549 do Senado Federal, do dia 21 de maio de 2020 e disponível aqui, nessa data o projeto de lei foi enviado à sanção presidencial. Desse modo, o prazo de 15 dias úteis para veto da presidência, previsto no artigo 66, § 3º, da Constituição encontraria seu fim em 10 de junho com a consequente sanção tácita do projeto de lei. Exatamente neste dia 10/6, o presidente da República sancionou a lei, vetando vários de seus dispositivos.

2 A título de exemplo, a 36ª Câmara de Direito Privado do TJSP afastou a possibilidade de a administração de condomínio edilício impedir a realização de obras em unidade autônoma, albergando-se, dentre outros fundamentos, no argumento de que o inciso I do artigo 11 do então projeto de lei restringia "a utilização das áreas comuns para evitar a contaminação pelo coronavirus (Covid-19), mas respeitado o acesso à propriedade exclusiva dos condôminos. Mais ainda, o parágrafo único do referido artigo dispõe que a vedação não se aplica às obras ‘de natureza estrutural ou realização de benfeitorias necessárias’, o que compreende as obras no interior das unidades autônomas". (TJSP, 36ª C.Dir.Priv., AI 2098717-18.2020.8.26.0000, Rel. Des. Abrantes Theodoro, julg. 19.05.2020).

3 Em Portugal, os prazos prescricionais e decadenciais suspenderam-se desde a entrada em vigor da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março de 2020, conforme previsão expressa de seu artigo 7º, item 3, que possui a seguinte redação: "A situação excepcional constitui igualmente causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos". Na Espanha, a suspensão dos prazos se deu a partir do dia 14 de março, com a publicação do Real Decreto 463/2020, que, em sua quarta disposição adicional estabelece: "Los plazos de prescripción y caducidad de cualesquiera acciones y derechos quedarán suspendidos durante el plazo de vigencia del estado de alarma y, en su caso, de las prórrogas que se adoptaren".

4 "Como se observa, a norma projetada não pretende ter efeito retroativo – e, (...), ao menos quanto à prescrição e a decadência, nem poderia tê-lo. Esse fato, associado à demora na aprovação do projeto de lei, faz temer que seu escopo acabe por se inviabilizar". (RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Reflexões sobre direitos e pretensões, vistos do berghof: ou, prescrição e decadência na "Montanha Mágica" da covid-19. Disponível aqui).

5 "A proteção do ato jurídico perfeito, do direito adquirido e da coisa julgada tem, no Brasil, status constitucional, na previsão expressa do art. 5°, XXXVI, já transcrito. Mais que isso, por sua condição de direito individual, constitui cláusula pétrea, insuscetível de supressão até mesmo por emenda constitucional (CF, art. 60, § 4º, IV). Como já assinalado, na maioria dos países esta garantia consta de legislação ordinária – o que admite sua derrogação por legislação superveniente – e não da Constituição. Isso significa, portanto, que a importação de doutrina e jurisprudência estrangeiras sobre o assunto deve ter o cuidado de observar essa diferença essencial entre os sistemas jurídicos". (BARROSO, Luís Roberto. Em algum lugar do passado: segurança jurídica, direito intertemporal e o novo Código Civil. Disponível aqui).

6 Esse é o entendimento que se observa tanto na jurisprudência quanto na doutrina pátrias: "A prescrição em curso não origina direito adquirido, podendo seu prazo ser aumentado ou reduzido por norma posterior. No entanto, em prol da segurança jurídica, não se pode fazer com que o termo inicial do prazo prescricional reduzido retroaja para uma data anterior à vigência da nova lei. O quinquênio prescricional deve computar-se desde a vigência da Lei 8.240/92”. (STJ, 3ª T, REsp 1085903/RS, Relª. Minª. Nancy Andrighi, julg. 20.08.2009). “O credor tem, desde o início, uma situação jurídica complexa, que é adquirida quanto à existência do crédito, mas não quanto à duração da pretensão, razão pela qual lei posterior pode introduzir nesta as modificações. Dito de outro modo, o devedor não tem direito adquirido a se tornar inadimplente a termo". (CORREIA, Atala. Prescrição e decadência: entre passado e futuro. Tese (Doutorado – Programa de Pós-Graduação em Direito Civil) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2020, p. 122.

7 De acordo com Reynaldo Porchat, aplica-se à prescrição em curso "A lei nova que abrevia o tempo prescripcional estabelecido pela lei anterior, de modo que a prescripçao se completa uma vez decorrido o menor prazo estabelecido por aquella lei, computado, também por equidade, o tempo decorrido no domínio da lei antiga, salvo se fôr brevíssimo o tempo que faltar depois de publicada a nova lei, ou se, no dia da publicação, já estiver decorrido todo o prazo exigido por esta, pois, nestes casos, a prescripção poderia produzir surprezas que o direito não admittiria, e poderia dar-se mesmo o absurdo de realizar-se uma prescripção em um prazo menor do que o exigido pela lei vigente ao tempo em­ que ella se verificou". (PORCHAT, Reynaldo. Da retroactividade das leis civis. São Paulo: Duprat & Comp, 1909, pp. 51-52).

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Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).

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Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

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Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.