Texto de autoria de Raphael Carneiro Arnaud Neto
Introdução
Há temas no Direito Privado que são prodigiosos em promover o debate. Há, entretanto, os que façam mais que isso, provocam defesas veementes de posições arraigadas em um conjunto de valores culturais, vivências e traumas pessoais. A conjugalidade é um deles.
Reunido à mesa, experimente você, caro leitor desta coluna, suscitar a hipótese de alguém ser condenando a indenizar o cônjuge pela prática de adultério, e comprove que o silêncio não mais terá lugar entre os presentes.
Note, a partir daí, que todos já possuem, de largada, opinião formada sobre a matéria sem qualquer reflexão sobre ela. Ao jurista, contudo, exige-se o que Durkheim chamou de distanciamento científico.
Estes brevíssimos escritos têm a intenção de questionar se os assim ditos "deveres conjugais", entabulados no artigo 1.566 e incisos do CC/2002, mantêm seu caráter de "deveres jurídicos", de forma a justificar uma reparação civil pelo seu não atendimento.
A pergunta ganha relevo ante a aparente falta de consequência do seu inadimplemento, resultante do advento da EC 66/2010 e da mudança paradigmática evolutiva dela derivada. Saímos do antigo divórcio sanção - baseado na culpa de um dos cônjuges por "grave violação dos deveres do casamento que 'tornassem' insuportável a vida em comum", Conforme preleciona(va) o art. 1.572 - para o que hoje se conhece por divórcio fracasso, no qual não mais necessita haver razão culpável para o fim do enlace matrimonial, sendo suficiente a declaração unilateral, íntima e subjetiva de uma das partes, baseada simplesmente no rompimento do desejo de permanência do projeto de vida comum, que por qualquer motivo fracassou.
Assim, traçado o roteiro entre a responsabilidade civil e o Direito de Família horizontal, pergunta-se se, de fato, existe uma ponte que liga os deveres conjugais à obrigação de indenizar.
Notas curtas sobre a família matrimonial no século XXI
Todo bom artigo de Direito de Família se inicia por uma longa exposição histórica das famílias de ontem e de hoje, geralmente vemos nesse tópico o esforço do autor para nos demonstrar, de maneira quase visual, a mudança do "modelo patriarcal de outrora" para a "família eudemonista do tempos atuais"; ou, a passagem da “família instituição", que desconsiderava o individuo isolado em homenagem do coletivo, para a "família instrumento", isto é, aquela que se propõe a ser o ambiente adequado ao desenvolvimento da personalidade de todos e de cada um de seus membros. Sai o patriarcalismo, entra o solidarismo.
O formato exíguo desses escritos, contudo, não permite que nos alonguemos por aqui, sob pena de não alcançarmos o ponto ao qual nos propusemos, assim, recomenda-se ao neófito no estudo das famílias, a leitura de qualquer manual familiarista para a compreensão histórica dessa mudança de paradigma.
Partimos, portanto, das famílias da pós-modernidade, considerando a inegável posição de igualdade jurídica entre os cônjuges, de mesmo sexo ou não, e a inafastável "liquidez" dos tempos atuais.
Entendemos que a permissão e posterior simplificação procedimental do divórcio - hoje possível sem processo judicial, inclusive - provocou consequências determinantes para o sistema familiar, passando o casamento a representar um instrumento para a realização de projetos individuais através de uma comunhão plena de vida, e, não mais, um assunto pertencente ao amplo universo dos parentescos de origem e acertos patrimoniais.
A nova responsabilidade civil e o conceito de dano moral
Se é indubitável que o Direito de Família mudou, merecendo de alguma doutrina até mesmo nova nomenclatura - Direito "das famílias" -, é igualmente verídico que houve alterações substanciais no estudo do "Direito dos Danos", como também é conhecida a responsabilidade civil.
Passamos, em um curto espaço de tempo, da atenção exclusiva com o ato ilícito para a preocupação com o dano injusto, ou injustificado. Assim, a responsabilidade civil deixou de ser uma forma de punir o "culpado" e assumiu o papel de realizar a transferência das consequências danosas a um sujeito distinto do que as sofreu, se e quando existir uma razão jurídica que justifique esse deslocamento1.
Se antes o lema era "nenhuma responsabilização sem culpa", agora a preocupação maior está voltada para uma possível irresarcibilidade do prejuízo suportado pela vítima. O que trouxe, também para o Direito das Famílias, hipóteses de responsabilidade civil objetiva, como a que se lê no artigo 932, I c/c o art. 933 do CC/2002.
Apesar da constante evolução, não é incomum, de outra banda, que encontremos em diversos julgados a identificação do dano moral baseada na "lição de René Savatier", que, em 1939, afirmou ser dano moral todo sofrimento humano que não é causado por uma perda pecuniária.
É habitual, portanto, que nossos Tribunais qualifiquem como dano moral a "dor", "sofrimento", "constrangimento" e "vergonha" injustamente suportados pela vítima.
Todavia, para os fins aos quais nos comprometemos, aplicamos o conceito de dano moral que nos parece mais adequado, derivado da corrente de pensamento capitaneada pela professora Maria Celina Bodin de Moraes, que, lastreada nos postulados filosóficos de Kant, dá aplicabilidade jurídica à proteção da integridade psicofísica, liberdade de autodeterminação e solidariedade familiar, na qual nos fiamos2.
Reparação civil por quebra dos deveres conjugais
Sabemos que são pressupostos da responsabilidade civil no Direito brasileiro: (a) o ato ilícito ou dano injusto decorrente da conduta humana, (b) o prejuízo suportado pela vítima e (c) o adequado nexo de causalidade entre o primeiro e o segundo elemento.
Ao aplicarmos tais pressupostos ao âmbito das relações familiares horizontais, logo identificamos ao menos duas teorias conflitantes a versarem sobre a possibilidade de indenização entre cônjuges por quebra dos deveres derivados do casamento.
A primeira posição defende que nas relações matrimoniais deve-se ter, por força do descumprimento dos deveres conjugais (art. 1.566 do CC/2002), a deflagração da responsabilidade civil, e, portanto, a consequente indenização pelo inadimplemento de um dever que, para os defensores desse pensamento, é jurídico e dotado de schuld e haftung.
A segunda corrente é formada por aqueles que aceitam a responsabilização entre cônjuges, mas apenas e tão-somente nos casos em que haja ilícito absoluto, como previsto no art. 186 c/c art. 927 do CC/2002. Ou seja, apenas haveria conduta geradora do dever de reparar quando a desatenção aos deveres conjugais se qualificasse também como um ilícito civilm mesmo que inexistente a relação familiar.
Assim considerado, o marido estaria obrigado a indenizar à esposa por "falta de respeito e consideração", não somente porque este é um dever dele para com ela (art. 1.566, V), mas, porque também o é frente a qualquer semelhante que igualmente mereceria ser respeitado e considerado, face ao dever geral a todos nós imposto de não causar dano a outrem - naeminem laedere ou alterun non laedere -.
O olhar lusitano de Pamplona Corte-Real sobre a impossibilidade de indenização entre os cônjuges sustentada exclusivamente na quebra de um dever conjugal, ante a sua aparente falta de injuntividade, face às margens de álea e evolução do espírito de partilha conjugal.
Analisando problema semelhante em sistema jurídico diverso, com o criticismo que lhe é inerente e subtitula sua obra, o professor Pamplona Corte-Real, ao examinar o conteúdo do art. 1792º do Código Civil daquele país, que prevê a possibilidade de indenização por danos não patrimoniais causados pelo cônjuge culpado, quando da aferição de culpa para o posterior divórcio, escreve:
Perante o Código Civil, um sector da doutrina admitia mesmo que o artigo 1792º., que se reporta(va) à reparação de danos não patrimoniais causados pela dissolução do casamento, não seria impeditivo da indemnizabilidade autónoma dos danos causados por cada situação específica de violação dos deveres conjugais, afirmando ainda que tal indemnizabilidade poderia ser solicitada ao tempo da violação, ou em concomitância com o pedido de divórcio.
Argumentava dita doutrina (Duarte Pinheiro, Ângela Cerdeira, Hörster) que os chamados deveres conjugais, verdadeiros deveres jurídicos seriam, não obstante o seu caráter pessoal, e que por isso não seria suficiente o âmbito da reparação prevista no artigo 1792º - limitada aos danos morais conexos com a dissolução do casamento -, antes devendo operar a normal ressarcibilidade civil pela sua violação, a qualquer momento da vivencia conjugal.
(...)
Mas não era aceitável tal ponto de vista, por várias ordens de razões: em primeiro lugar, porque seria de elementar falta de bom-senso entrever a subsistência dum vínculo conjugal entrecortado com esses pedidos de indemnização de um cônjuge relativamente ao outro; em segundo lugar porque o artigo 1792º ., não obstante o cariz predominante da técnica do divórcio-sanção no Código Civil (vd. art. 1787º) era uma preceito (era) em boa medida sensível à ponderação do livre desenvolvimento da personalidade que o casamento sempre implicita, restrigindo, por isso, a carga patrimonialmente sancionatória, em homenagem à consideração de um mais livre exercício do direito ao divórcio e a reconversão da vida3.
O professor português alega que os deveres conjugais se situam numa esfera particularmente autônoma de expressão de livre individualidade dos cônjuges e afirma categoricamente que "por mais que inserida num projecto a dois, não seriam recondutíveis tecnicamente a verdadeiros deveres jurídicos". Defende assim, a inexigibilidade jurídica dos referidos deveres, o que retiraria dos deveres conjugais o caráter de dever jurídico, ainda que assim nominados pela Lei, para qualificá-los apenas como "instrumentos de um projecto de vida em comum" com grandes margens de indeterminação e flexibilidade, por cada casal.
É que para Pamplona Corte-Real, paradoxalmente à toda a solenidade legalmente imposta, "o casamento é o ato mais livre que há". Um projeto afetável por margens de álea imponderáveis que se traduziria em um acordo existencial com espírito de partilha de uma vida a dois.
Parece, portanto, aproximar-se da segunda corrente por nós apresentada parágrafos acima, trazendo, entretanto, ideias ainda mais contundentes sobre a natureza não jurídica dos já tantas vezes aludidos deveres conjugais.
Conclusões
A aplicação das regras da responsabilidade Civil entre os cônjuges depende da ocorrência de um ilícito absoluto, devidamente comprovado. A simples violação de um dever conjugal não justifica a indenização de eventual dano moral, que qualifica-se pelo ferimento de um direito da personalidade, ligado à proteção da integridade psicofísica, liberdade de autodeterminação e solidariedade familiar.
Aliás, como há tempos escreve Stefano Rodotà4, é justamente a solidariedade familiar, a norteadora das responsabilidades entre cônjuges.
Assim, a prática de um adultério, isoladamente, não nos parece suficiente para gerar dano moral indenizável, não obstante o disposto no art. 1.566, I do CC/2002. Também não há que se falar, em nossa opinião, sobre a hipótese de débito conjugal, como qualificada parte da doutrina continua a insistir em pleno século XXI5.
Em verdade, seguimos o pensamento de Pamplona Corte-Real. Também no Brasil, os ditos deveres conjugais perderam sua qualidade de dever jurídico. O próprio legislador abriu possibilidade legal para uma reconsideração, ao editar no Brasil a EC 66/2010, que altera o artigo 226, § 6º, CF, derrogando os artigos 1.572, 1.573 e 1.574, CC, que versam sobre as excepcionais possibilidades nas quais o divórcio podia ser consentido e o vínculo conjugal desfeito. O legislador esvaziou o último resquício de oponibilidade desses ditos deveres, o que também aconteceu em Portugal, por ocasião da Lei 61/2008.
*Raphael Carneiro Arnaud Neto é professor de Direito Civil dos programas de graduação e Pós Graduação no Instituto Brasiliense de Direito Público - IDP - Escola de Direito de Brasília - EDB e da Universidade Católica de Brasília - UCB; Professor de cursos preparatórios da Escola Superior de Advocacia - ESA/DF; Mestre e Doutorando em Direito e Ciências Jurídicas Civis pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
__________
1 MORAES, Maria Celina Bodin de. (2006) Danos morais em família? Conjugalidade, Parentalidade e
Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Revista Forense.
2 Moraes, Maria Celina. (2003). Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais.
3 CORTE-REAL, Carlos Pamplona; PEREIRA, José Silva. (2011) Direito da Família –Tópicos para uma Reflexão Crítica. Lisboa: AAFDL.
4 RODOTÀ, S. (1964). Il problema della responsabilità civile. Milano: Giuffrè.
5 PINHEIRO, Jorge Alberto Caras Altas Duarte. (2004) O Núcleo Intangível Da Comunhão Conjugal – Os Deveres Conjugais Sexuais. Teses. Coimbra: Almedina.
__________
Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).