Texto de autoria de Atala Correia
Introdução
Quase duas décadas após a promulgação do Código Civil, é possível desfrutar de certo distanciamento histórico para avaliar suas contribuições, o que, para os fins deste artigo, faremos sucintamente tendo em vista o tema da prescrição.
Em 2002, a comunidade jurídica considerou bem-vinda a redução do prazo prescricional. Dizia-se que a dinâmica própria do século XXI impunha rapidez às relações privadas. Nada era mais apropriado do que deixar de lado o prazo vintenário que marcou a legislação anterior. Poucas vozes se levantavam contra essa tendência. Dentre elas, Silmara J. A. Chinellato destacava que a redução do prazo para as reparações civis "representa retrocesso por restringir o tempo que o lesado teria para pleitear a reparação respectiva"1.
O tempo dá razão a essa crítica, permitindo visualizar três tendências claras para contornar a redução de prazos: (i) as decisões judiciais vêm socorrendo-se na teoria subjetiva da actio nata, para permitir que a pretensão e seu prazo corram desde o momento em que o lesado tomou conhecimento do dano; (ii) as causas de suspensão e impedimento passaram a sofrer alargamento, com autores defendendo o retorno de princípio denominado contra non valetem agere, para que os juízes recuperem uma faculdade perdida em 1916, qual seja, a de impedir o fluxo do prazo prescricional quando consideram injusta a fluência do prazo diante de impossibilidade de ação do lesado; (iii) as imprescritibilidades crescem para além das hipóteses reconhecidas por Agnelo Amorim Filho (i.e., ações meramente declaratórios e direitos potestativos não sujeitos a prazo).
Preocupa-nos a imprescritibilidade ambiental. Vale lembrar, todavia, que a perpetuidade das pretensões vem avançando para alcançar não só os danos ambientais, mas também graves lesões, como tortura e homicídios promovidos pelo Estado, e mesmos questões previdenciárias. E há quem defenda a perpetuidade de qualquer pretensão advinda da lesão a direito fundamental.
Imprescritibilidade de Danos Ambientais
Dado esse cenário, foi sem grande surpresa que, no último dia 20/4/2020, o STF manteve o entendimento que já prevalecia na jurisprudência do STJ e na doutrina, fixando tese segundo a qual "é imprescritível a pretensão de reparação civil de dano ambiental" (STF, RE 654833, Plenário).
É preciso entender melhor o contexto deste caso. Inicialmente, o MPF ajuizou ação civil pública em face de particulares, objetivando a reparação de danos materiais, morais e ambientais, decorrentes de invasões em área indígena ocupada pela comunidade Ashaninka-Kampa, localizada no Acre, ocorridas entre 1981 e 1987. O TRF1 manteve a condenção de primeira instância. Para tanto, afastou a exceção de prescrição, considerando que "na vigência do CC/1916, era vintenário o prazo prescricional relativo à pretensão de obter indenização por danos (materiais, morais e ao meio ambientais) resultantes de invasão de terra indígena". No Recurso Especial, os requeridos postularam fosse reconhecida a prescrição quinquenal da ação civil pública (i.e., o prazo da ação popular que o STJ aplica à ação civil pública). O STJ destacou, na ocasião, que "o direito ao pedido de reparação de danos ambientais, dentro da logicidade hermenêutica, está protegido pelo manto da imprescritibilidade, por se tratar de direito inerente à vida, fundamental e essencial à afirmação dos povos, independentemente de não estar expresso em texto legal", que "em matéria de prescrição cumpre distinguir qual o bem jurídico tutelado: se eminentemente privado seguem-se os prazos normais das ações indenizatórias; se o bem jurídico é indisponível, fundamental, antecedendo a todos os demais direitos, pois sem ele não há vida, nem saúde, nem trabalho, nem lazer , considera-se imprescritível o direito à reparação" e que "o dano ambiental inclui-se dentre os direitos indisponíveis e como tal está dentre os poucos acobertados pelo manto da imprescritibilidade a ação que visa reparar o dano ambiental" (STJ, REsp 1.120.117).
Análise
O que esse caso nos revela? Não há em nossa Constituição Ferderal qualquer norma que estabeleça literalmente a imprescritibilidade dos danos ambientais. A jurisprudência trabalha, portanto, com uma construção valorativa segundo a qual os bens ambientais têm demasiada importância para estarem sujeitos a prazos prescricionais.
Na doutrina, esse argumento é enriquecido. Seria impróprio transplantar à tutela dos direitos coletivos os prazos prescricionais próprios dos direitos individuais. Nelson Nery Jurnior e Rosa Maria Nery afirmam que não se aplicam às pretensões relativas ao dano ambiental as regras de prescrição, porque i) estas foram concebidas para sancionar a inércia do titular; ii) não se trata de direito de propriedade; e iii) não raro, o dano se perpetua no tempo, sem solução de continuidade, quando não se inicia o curso do prazo2.
De fato, é razoável admitir que os interessados na tutela ambiental, Ministério Público e associações, tenham dificuldades de articular, em poucos anos, a verificação do dano. A imprescritibilidade aparece, portanto, como uma resposta dura contra a possibilidade de se aplicar a danos importantes prazos curtos, como o trienal ou quinquenal.
Crítica
A adoção de critério meramente formal que estabeleça, tout court, a imprescritibilidade da lesão a direitos fundamentais poderia levar, no rigor da lógica, à perpetuidade de praticamente todas as pretensões possíveis. O intérprete deve apresentar as razões pelas quais considera que apenas alguns desses direitos devem ser prestigiados com a perpetuidade. A tentativa de estabelecer direitos imprescritíveis tem sido feita sem método e, como resultado, não está em debate público qualquer critério qualquer que possa cumprir tal mister, salvo o puro e simples voluntarismo refratário a controles racionais.
A prescrição funciona a partir da articulação das variáveis de tempo, dificuldades de memorização e de documentação, impondo preclusões. Há relevantes dúvidas sobre nossa capacidade de reconstruir o que se passou, em razão da limitação dos meios e da memória, e, se assim é, o esforço empregado para decidir não é isento de riscos. Quanto mais tempo passa, maior o risco de mal decidir. Existe um ponto para além do qual a tentativa de equidade redundará maior injustiça.
Os direitos de personalidade, o direito de propriedade e todos os demais direitos absolutos, em regra, não estão sujeitos a prazo e vigoram erga omnes. Isso não significa, no entanto, que, havendo uma violação a eles, surja pretensão perpétua. O direito ao meio ambiente é, nesse sentido, absoluto, havendo uma constante pretensão geral de abstenção a nos lembrar que a poluição deve cessar. Ocorre que, em havendo a poluição, a pretensão de reparação ao dano ambiental, coletivo ou individual, deveria estar sujeita a algum prazo prescricional. Se uma pessoa natural perde um braço, tem violada de maneira perpétua a sua integridade física. A cada dia que passa a lesão permanece existindo. A integridade física é indisponível e foi perpetuamente lesada, mas não por isso a pretensão de haver reparação por danos morais é imprescritível. Se o triênio do art. 206, § 3º, V, CC, revela-se curtíssimo, o problema aí é legislativo, razão pela qual o correto seria majorar o prazo.
A prevalecer a interpretação atual, podemos imaginar que, em algumas décadas, haverá um acúmulo de lesões ambientais não reparadas e não investigadas. A imprescritibilidade, ao longo do tempo, apenas escusa a incúria e desídia daqueles que deveriam zelar pela proteção ambiental. Se os titulares de ações coletivas, por força do sistema de representatividade adequada, não podem ser considerados omissos da mesma forma que uma pessoa natural, também é certo que deveriam ser estimulados a agir no menor prazo possível.
No direito comparado não há uma opção clara pela imprescritibilidade. A Lei alemã de Proteção ao Meio Ambiente determina, por exemplo, que a pretensão reparatória dos danos ambientais seja regulada pelos prazos do BGB. O art. 2226-1, do Code Civil, na redação da Lei nº 1087, de 8.10.2014, estabelece que os danos ambientais prescrevem em dez anos desde a data em que se tornaram conhecidos. A Convenção de Lugano, de 21.6.1993, estabeleceu em seu art. 17 a prescrição trienal para a reparação ambiental, contado o prazo da ciência da lesão e de sua autoria. De todo modo, neste último sistema, as ações não podem ser ajuizadas após 30 anos, contados desde o último ato de lesão.
O ministro Gilmar Mendes, em seu voto vencido, bem destacou que "sendo a existência de prazo prescricional a regra, e as hipóteses de imprescritibilidade a exceção, estando todas expressas na Constituição Federal", não é "viável interpretar a omissão da legislação ambiental como nova hipótese de imprescritibilidade. A lacuna deve ser suprida por meio da análise sistemática de nosso arcabouço normativo, ou seja das normas que regulam os casos de prescrição, não sendo possível a admissão de uma imprescritibilidade implícita, tal como sugerido pelo Superior Tribunal de Justiça" e que mitiga outros valores estruturantes do Estado Democrático de Direito (RE 654833).
Conclusão
Deve haver prazos maiores para direitos de maior relevância. Quando se estipulam prazos adequados, enfraquece-se a necessidade de perpetuidades. A imprescritibilidade dos danos ambientais é resposta adequada aos curtos prazos que poderiam ser aplicados. Entretanto, o dano ambiental estaria melhor tratado se sua reparação se sujeitasse a prazo vintenário, trintenário ou a lapso mais curto, desde que contado de termo inicial subjetivo.
O tempo tem sido senhor da razão. Uma redução drástica dos prazos prescricionais revelou descompasso com as necessidades sociais, forçando a jurisprudência a flexibilizá-la. Por outro lado, a história é recheada de exemplos dos inconvenientes que cercam as imprescritibilidades. Justiniano concedeu prescrição centenária em favor da Igreja, facilitando o ambiente político para a invasão do sul da península itálica. Logo, inúmeros litígios surgiram, com falsificação de documentos para favorecer a litigância. Anos após, Justiniano voltou a estabelecer prazos mais curtos. Ao justificar o abandono da prescrição centenária, comparou a situação a cicatrizes que se reabriam, sendo inviável a cura em razão das evidentes dificuldades de produzir-se prova documental íntegra e testemunhal a respeito de disputas tão antigas3. As contingências diversas que levaram os romanos e bizantinos a abandonar a perenidade e abraçar a prescrição em prazos razoáveis servem de exemplo eloquente ao jurista contemporâneo.
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1 Da responsabilidade civil no Código de 2002 – aspectos fundamentais. Tendências do Direito Contemporâneo. In: TEPEDINO, G.; FACHIN, L. E. (Coords.). O Direito e o Tempo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 939-968 (v. em particular, p. 956).
2 Responsabilidade civil, meio ambiente e ação coletiva ambiental. In: BENJAMIN, Antônio Herman (org.) Dano Ambiental, prevenção, reparação e repressão. São Paulo: RT, 1993, p. 278-307, em particular, p. 291-292.
3 Nov. 111.
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Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).