Texto de autoria de Guilherme Magalhães Martins e João Victor Rozatti Longhi
Nestes últimos dias, o tema da regulação do conteúdo na Internet envolvendo desinformação por meio de notícias falsas (popularmente chamada de Fake News) chamou atenção no capo jurídico.
Primeiro, porque o STF determinou uma série de buscas e apreensões para averiguação especialmente de financiamento de ataques pessoais a ministros e à própria Corte realizados por meio de "disparos" massificados de postagens em sites de redes sociais e aplicativos de mensagens1.
Segundo, porque, nos Estados Unidos, o Presidente Donald Trump assinou uma ordem Executiva (Executive Order) visando indicar a necessidade de alteração da Seção 230 do Communications Decency Act que, em linhas gerais, é a base para o sistema de responsabilização dos provedores de aplicação – dentre eles as redes sociais – e se baseia no chamado notice and takedown (notificação e retirada).
Em suma, a legislação norte-americana faz parte do núcleo duro das regras sobre Internet em que se baseiam legislações de outros países e as cláusulas dos contratos em massa com tais sites, determinando, em suma que o provedor somente seria responsável civilmente pela ilicitude do conteúdo se sabe desse caráter ilícito, em meio a ser facilitado pelo próprio fornecedor do serviço – geralmente os populares links "denuncie aqui".
O ideal é promover mecanismos arquitetônicos e normativos da Internet que promovam uma balanceamento entre a liberdade de expressão e de manifestação e o interesse de terceiros, encontrando-se o caminho do meio.
A decisão do mandatário estadunidense ocorre após a rede social, baseada em suas próprias regras de conteúdo, inserir um link dizendo "informe-se melhor" em resposta a uma postagem do presidente insinuando que a votação pelo correio, permitida nos EUA, facilitaria fraudes eleitorais2.
Em terceiro lugar, pela notícia de votação em caráter de urgência pelo Senado Federal brasileiro do PL 2630, de 2020, de autoria do senador Alessandro Vieira (CIDADANIA/SE), que institui a "Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet", igualmente denominada "Lei das Fake News"3.
Cada um dos fatos jurídico-políticos narrados leva a uma série de controvérsias institucionais que ganham corpo na esfera pública. São válidas as provas colhidas pelo Supremo Tribunal Federal em inquérito instaurado pela própria corte em decisão monocrática do Exmo. Min. Alexandre de Moraes? Uma ordem executiva do presidente norte-americano é capaz de alterar a legislação e toda uma gama de precedentes judiciais que reforçam a chamada "imunidade" do provedor por conteúdo inserido por terceiros?
Mas a pergunta de fundo sobre a qual se pretende debater aqui, especialmente ante à iniciativa do Senado Federal brasileiro, é se uma legislação procurando coibir a desinformação não seria uma indevida intervenção na liberdade de expressão: é ou não é censura nas redes sociais?
A questão diz especial respeito ao campo da Responsabilidade Civil por duas razões. Primeiro, pois, por um lado, há quem sempre levante a bandeira da liberdade de expressão independente do conteúdo do que é dito. Qualquer restrição seria censura e ponto. Criticando essa posição, tendo em mente o sistema americano, Mary Anne Franks chama de "fundamentalistas" da Primeira Emenda os que justificam queima de bandeiras, saudações nazistas, pornografia infantil virtual, videogames violentos, doações corporativas a políticos, pornografia de vingança, instruções de fabricação de bombas, vídeos de recrutamento de terroristas, teorias da conspiração, registros médicos hackeados, spam, vírus de computador e até impressoras 3D. Caso de alguma maneira se restrinja o conteúdo ou se responsabilize seu criador: "Censura. Censura em qualquer lugar"4.
Além da compreensão do ilícito, há um outro ponto que diz respeito à responsabilidade civil. Trata-se da extensão do dano. Notícias falsas, especialmente quando sua divulgação massiva e sistemática é perpetrada por robôs mediante perfis falsos nas redes sociais extrapolam a esfera individual das consequências da conduta ilícita. O discurso do ódio, convém lembrar, implica abuso da liberdade de expressão, empregada esta em desvirtuamento da sua finalidade inspiradora.
A situação é agravada quando tais práticas consistem em propaganda política, aprofundada em períodos eleitorais e ganha proporções alarmantes quando há indícios de que tenha sido arquitetado paralelamente aos meios oficiais de manifestação do pensamento legalmente protegidos. Portanto, salutar o dispositivo final do projeto que altera a lei de improbidade administrativa (lei 8.429/92) para prever no art. 11 a disseminação de desinformação. Não há menção, ao menos no texto originalmente apresentado, de menções ao Código Penal.
Nesta esteira, o PLS que será votado pode introduzir novo episódio e redirecionar os rumos do debate na Internet. O texto define, dentre outras situações jurídicas importantes, desinformação, conteúdo, conta inautêntica, disseminadores artificiais, redes de disseminação artificial, rede social, serviços de mensageria privada (Art. 4º, PLS 2630/20).
Ao dispor sobre a responsabilidade do provedor de aplicações de Internet no combate à desinformação, o artigo 5º veda expressamente "contas inautênticas (perfis falsos), disseminadores artificiais não rotulados, aqueles cujo uso não é comunicado ao provedor de aplicação e ao usuário bem como aqueles utilizados para disseminação de desinformação, redes de disseminação artificial que disseminem desinformação; conteúdos patrocinados não rotulados, entendidos como aqueles conteúdos patrocinados cuja comunicação não é realizada ao provedor e tampouco informada ao usuário".
No parágrafo primeiro do mesmo dispositivo, outro ponto alto do texto ao dispor que "as vedações do caput não implicarão restrição ao livre desenvolvimento da personalidade individual, à manifestação artística, intelectual, de conteúdo satírico, religioso, ficcional, literário ou qualquer outra forma de manifestação cultural, nos termos dos arts. 5º, IX e 220 da Constituição Federal".
Isto porque, ao contrário de muitas análises recentes sobre a possível Lei das Fake News, de que seria uma lei que promoveria censura5, esta afirmação não é verdade. Pelo contrário, estabelece vedações em seu art. 5º, em face de condutas como - contas inautênticas, disseminadores artificiais não rotulados redes de disseminação artificial que disseminem desinformação ou conteúdos patrocinados não rotulados(incisos I a IV). As responsabilidades de agir com transparência quanto ao conteúdo que circula nas redes são delineadas pela apresentação de relatórios (art. 7º), compartilhamentos de dados pessoais para fins de estatísticas, respeitada a LGPD (art. 8º), adoção medidas contra a desinformação, como a de informar os consumidores sobre o caráter patrocinado dos conteúdos (arts. 19 e ss.), com regras específicas aos provedores de aplicação que prestam serviços de mensageria privada (arts. 13 e ss.). As sanções, inclusive, não preveem crimes e vão, no máximo, à proibição ao provedor de aplicações de exercer atividades no país (art. 28 e incisos).
Portanto, tampouco derroga nem expressa nem tacitamente o Marco Civil da Internet, também como tem sido dito6. Como traz deveres específicos aos provedores de aplicação de rede social, especialmente as de grande porte, remete os debates aos que dizem respeito ao artigo 19 do MCI, cuja constitucionalidade está sub judice no STF7, com repercussão geral (Tema 987)8.
Rememorando o tema, sabe-se que o Marco Civil é um ponto divisório no regime de Responsabilidade civil por conteúdo inserido por terceiros. Conforme consolidado na jurisprudência do STJ, "anteriormente à publicação do Marco Civil da Internet, basta a ciência inequívoca do conteúdo ofensivo, sem sua retirada em prazo razoável, para que o provedor se tornasse responsável", porém, "a regra a ser utilizada para a resolução de controvérsias deve levar em consideração o momento de ocorrência do ato lesivo" já que "após a entrada em vigor da lei 12.965/2014, o termo inicial da responsabilidade da responsabilidade solidária do provedor de aplicação, por força do art. 19 do Marco Civil da Internet, é o momento da notificação judicial que ordena a retirada de determinado conteúdo da internet"9.
Desta feita, não altera a regra base do sistema adotado pelo Brasil, que repete a arquitetura norte-americana de "notificação para retirada" com a especialidade de que essa notificação deve ser judicial, diferente da Seção 230. Como visto, o sistema americano é alvo de críticas pela doutrina local, já que a imunidade dos provedores criou ao longo de décadas uma situação que incrementa riscos de discursos de ódio, desinformação, cyberbullying às vítimas. O decreto executivo de Trump, inclusive, também é duramente criticado pois declara ser "contra a censura", mas na prática representa uma vingança à rede social que, corretamente do ponto de vista jurídico, age para coibir a desinformação, a violência e busca zelar por um ambiente informacional sadio, mitigando riscos trazidos por conteúdos impróprios10.
A Lei de Fake News brasileira pode ser um grande avanço nesse sentido, pois o Marco Civil, ao imunizar o provedor antes de ordem judicial nos termos do art. 19, deixa as vítima de ataques online em situação de vulnerabilidade agravada, pois põe sob seus ombros o dever de procurar a Justiça, indicar os links e aguardar o cumprimento de decisão judicial pelo provedor para retirar um conteúdo que lhe cause dano. Ao mesmo tempo, enaltece o poder privado dos provedores pois são eles que redigem unilateralmente as cláusulas contratuais de suas políticas de conteúdo, e têm ampla liberdade para retirar ou não determinado conteúdo, taxá-lo de violento, falso ou qualquer outro, mas, acima de tudo, lucrar com a publicidade advinda dos dados dele decorrentes sem se responsabilizar.
Injuriar, humilhar, denegrir, disseminar ódio e mentiras, especialmente por perfis fake que prestigiam o anonimato e cada dia mais parecem agir de modo a induzir um ambiente hostil de ignorância estrutural induzida apenas evidenciam os riscos da atividade dos provedores de aplicação. Algo precisa ser feito e a iniciativa legislativa avança nesse sentido. O avançar dos fatos em câmera lenta, expressão do Ministro da Suprema Corte Argentina Ricardo Lorenzetti, permite demonstrar se houve ou não ou avanço, do ponto de vista valorativo, podendo justificar os limites, quando as inseguranças são muitas, e os riscos, grandes11.
*Guilherme Magalhães Martins é promotor de Justiça titular da 5ª Promotoria de Tutela Coletiva do Consumidor e do Contribuinte da Capital – RJ. Professor associado de Direito Civil da Faculdade Nacional de Direito – UFRJ. Professor permanente do Doutorado em Direito, Instituições e Negocios – UFF. Pós-doutorando em Direito Comercial pela Faculdade de Direito da USP. Doutor e mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da UERJ.
*João Victor Rozatti Longhi é defensor público no Estado do Paraná. Professor visitante do PPGD da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP) e de graduação do Centro de Ensino Superior de Foz do Iguaçu (CESUFOZ). Pós-doutor em Direito na Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Doutor em Direito Público pela Faculdade de Direito da USP. Mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da UERJ.
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Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).
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1 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. INQUÉRITO 4.781 - DISTRITO FEDERAL. Rel. Min. Alexandre de Moraes. Julg. 26/05/2020. Disponível aqui. Acesso 30 mai. 2020.
2 NEW YORK TIMES. Trump’s Order Targeting Social Media Sites, Explained. The president wants to narrow legal protections for companies like Twitter after it began appending fact-check labels to his postings. Charlie Savage. May 28, 2020. Disponível aqui. Acesso em: 30. Mai. 2020.
3 BRASIL. Agência Senado. Senado votará na terça-feira projeto de combate a fake news, diz Davi. Disponível aqui. Acesso em: 30 mai. 2020.
4 Cf. FRANKS, Mary Anne. The Cult of Constitution. Stanford: Stanford University Press, 2019. p. 181-182.
5 INFOMONEY. Senado quer aprovar às pressas uma lei que censura as redes sociais: Apesar de bem intencionado, projeto instituirá mecanismos de censura na internet brasileira. Por Pedro Menezes
29 maio 2020 13h51. Disponível aqui. Acesso em 30 mai. 2020.
6 POMPEU, Ana. Entidades e empresas veem PL anti-fake news como um risco à liberdade de expressão
Para elas, responsabilização de provedores incentivaria censura de conteúdos. PL está pautado no Senado no dia 2 de junho de 2020. In: JOTA. Disponível aqui. Acesso em 30 mai. 2020.
7 EMENTA Direito Constitucional. Proteção aos direitos da personalidade. Liberdade de expressão e de manifestação. Violação dos arts. 5º, incisos IV, IX, XIV; e 220, caput, §§ 1º e 2º, da Constituição Federal. Prática de ato ilícito por terceiro. Dever de fiscalização e de exclusão de conteúdo pelo prestador de serviços. Reserva de jurisdição. Responsabilidade civil de provedor de internet, websites e gestores de aplicativos de redes sociais. Constitucionalidade ou não do art. 19 do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/14) e possibilidade de se condicionar a retirada de perfil falso ou tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente somente após ordem judicial específica. Repercussão geral reconhecida. (RE 1037396 RG, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, julgado em 01/03/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-063 DIVULG 03-04-2018 PUBLIC 04-04-2018)
8 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tema 987 - Discussão sobre a constitucionalidade do art. 19 da Lei n. 12.965/2014 (Marco Civil da Internet) que determina a necessidade de prévia e específica ordem judicial de exclusão de conteúdo para a responsabilização civil de provedor de internet, websites e gestores de aplicativos de redes sociais por danos decorrentes de atos ilícitos praticados por terceiros.
9 REsp 1694405/RJ, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 19/06/2018, DJe 29/06/2018.
10 Sintetiza as críticas da doutrina e pontua a contradição do Decreto Executivo Mary Anne Franks: “And this is perhaps the most profound irony of the executive order: It criticizes the sweeping immunity provided to the tech industry by Section 230 of the Communications Decency Act, the controversial 1996 federal law that prohibits online intermediaries from being treated as the publishers or speakers of content posted by internet users. But the order doesn’t address the core problem with the law that scholars and advocates have highlighted for years—namely, how its immunity provision not only fails to encourage online intermediaries to address harmful content but rewards them for indifference. Trump’s order does not acknowledge the ways that this immunity has allowed online intermediaries to ignore, encourage, and profit from abuses—harassment, privacy invasion, deadly misinformation—directed at vulnerable groups, especially women and people of color. It does not recognize, in other words, the similarities between Twitter and Trump.” THE ATLANTIC. Battle for the Constitution. The Utter Incoherence of Trump’s Battle With Twitter: The president’s executive order is opportunistic and Orwellian—but that was the whole point. FRANKS, Mary Anne. May 30, 2020. Disponível aqui.
11 Fundamentos do direito privado. Tradução de Vera Maria Jacob de Fradera. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998.p. 118.