Migalhas de Responsabilidade Civil

Direito ao esquecimento e a jurisprudência do STJ

Direito ao esquecimento e a jurisprudência do STJ.

28/5/2020

Texto de autoria de Carlos Frederico Barbosa Bentivegna

Introdução

Pretende-se com o presente artigo revisitar a jurisprudência recente do STJ acerca de instituto muito importante para a paz social e para a saúde mental das pessoas: o esquecimento. Trata-se de importante limite da mente humana e, a um só tempo, de uma estratégia de preservação da saúde mental. Recente decisão da Terceira Turma daquele sodalício, sob relatoria do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva1, pôs novamente sob os holofotes da comunidade jurídica este importante direito, embora nem tenha sido a mais recente das decisões atinentes à matéria – ela é de 28 de abril de 2020, enquanto já há outra de 06 de maio transato (há 20 dias aproximadamente) exarada monocraticamente pelo relator Ministro Moura Ribeiro (REsp nº 1.637.397/SP, j. em 6/5/2020).

Tal realidade demostra que o tema vem ganhando maior repercussão social e que a jurisprudência vem sobre ele se manifestando com frequência cada vez maior.

Pode-se conceituar o direito ao esquecimento como a prerrogativa de não ser exposto indefinidamente aos prejuízos que podem advir da reiteração de publicações de uma notícia determinada; trata-se, assim, do direito de não se ver associado a fatos que, embora já tenham se revestido de interesse público, não justificam mais sua divulgação em razão da obsolescência causada pelo transcurso do tempo.

Antonio Carlos Morato e Maria Cristina De Cicco, em artigo intitulado Direito ao esquecimento: luzes e sombras2 conceituam o direito ao esquecimento (diritto all’oblio) da seguinte forma: "de matriz francesa, tal é o direito de uma pessoa a não ver publicadas notícias, já legitimamente veiculadas, concernentes a vicissitudes que lhe dizem respeito, quando entre o fato e a republicação tenha transcorrido um longo tempo".

Atualmente, invoca-se o esquecimento como um direito, para afastar uma lembrança de potencial ofensivo ou gravoso para algum aspecto da personalidade. Até mesmo, inclusive, em detrimento do sério risco envolvido, qual seja: aquele de se "apagar" a si mesmo ou, pior, o de criar um self diferente daquele real e que com ele concorra3.

No entanto, ter seu nome apagado da história foi, no passado, uma pena e não um direito. A abolitio nominis era a grave consequência da damnatio memoriae da Roma antiga. Tratava-se de sanção a determinar a eliminação de qualquer traço de lembrança da pessoa proscrita a partir dessa condenação.

A sanção era muito grave. Isso porque os antigos concediam à memória a imortalidade. Até mesmo Napoleão Bonaparte disse que "a imortalidade é a recordação que se deixa na memória dos homens".

Seguiu-se também na Idade Média a prática de uma espécie de damnatio memoriae. Ao ponto de até mesmo um chefe da Igreja, o papa Formoso, ter sido alvo de uma condenação póstuma ao esquecimento, no ano de 897. Tendo ordenado o Vaticano fossem apagados todos os traços das obras e da biografia do pontífice4.

De forma crescente, a doutrina do direito ao esquecimento vem ganhando força no Direito brasileiro e também no estrangeiro, sendo que, no Brasil, o tema mereceu o Enunciado n. 531 da VI Jornada de Direito Civil promovida pelo Conselho Superior da Justiça Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça, verbis: "A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento".

Os detratores da teoria do direito ao esquecimento tecem contra essa tese — conforme resumo elaborado pelo ministro Luis Felipe Salomão (REsp n. 1.335.153-RJ) —, entre outras assertivas, as seguintes: a) aceitar o direito ao esquecimento seria atentar contra a liberdade de expressão do pensamento e de imprensa; b) fazer com que desapareçam dados acerca de fatos relacionados a uma determinada pessoa significa, também, afronta à história e à memória de toda a sociedade; c) a cogitação acerca do cabimento de um direito ao esquecimento seria um sinal de que a privacidade é a censura dos tempos atuais; d) o direito ao esquecimento faria com que desaparecessem registros de criminosos perversos e crimes de alta reprovabilidade, registros estes de grande interesse para a história social, judicial e policial; e) algo é lícito ou ilícito em face do ordenamento jurídico, não havendo como uma informação que já foi lícita transformar-se em ilícita apenas pelo decurso do tempo; f) quando uma pessoa se imiscui em fato de interesse coletivo, fica automaticamente reduzida a esfera de proteção de seus direitos da personalidade em benefício do interesse público, assim, a nova publicação, nada mais é do que a reafirmação de um fato já de conhecimento público; e g) que são "normais" e já "consagrados" os programas policiais que relatam acontecimentos passados, tanto no jornalismo brasileiro, quanto no estrangeiro.

Uma a uma, as objeções lançadas em face do Direito ao Esquecimento foram sendo rechaçadas pelo STJ na série de decisões examinadas por ocasião desta pesquisa, como se verá adiante.

Eventos do passado carregados de negatividade, com potencial destrutivo de reputações, equilíbrio mental e relações pessoais podem e devem ser relegados ao tempo em que tiveram de ser noticiados e comentados. Contemporaneamente à perda do interesse público por um determinado evento, deve ele ser enterrado para não mais causar efeitos deletérios.

Situações há, no entanto, em que se renova o interesse social – e até mesmo histórico — pelo evento passado de forma reiterada. Esta a razão, precisamente, de ter-se de se proceder à análise casuística dos conflitos entre o interesse público (o direito informação, as liberdades comunicativas) e o direito ao esquecimento do indivíduo envolvido nos fatos, dedicando-se à ponderação entre os valores em presença do caso concreto para, só assim, ser possível definir qual o princípio a prevalecer naquela situação de colidência. Não há preponderâncias apriorísticas entre os interesses aqui discutidos quando colidentes. Haverá apenas aquele que, diante das circunstâncias fáticas específicas, deverá ter uma maior dimensão de peso — para ficarmos na expressão de Ronald Dworkin.

É exatamente a esta ponderação de interesses conflitantes que se dedicou a jurisprudência recente do STJ, conforme se depreende dos casos dela extraídos e aqui noticiados:

Cuidando de pedido de desindexação de dados fundado no direito ao esquecimento, decidiu o acórdão do Recurso Especial nº1660168/RJ (j. 08.05.2018, rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª T.) no sentido de que "há, todavia, circunstâncias excepcionalíssimas em que é necessária a intervenção pontual do Poder Judiciário para fazer cessar o vínculo criado, nos bancos de dados dos provedores de busca, entre dados pessoais e resultados da busca, que não guardam relevância para o interesse público à informação, seja pelo conteúdo eminentemente privado, seja pelo decurso do tempo". E prossegue afirmando que nestas situações excepcionais "o direito à intimidade e ao esquecimento, bem como a proteção aos dados pessoais deverá preponderar, a fim de permitir que as pessoas envolvidas sigam suas vidas com razoável anonimato, não sendo o fato desabonador corriqueiramente rememorado e perenizado por sistemas automatizados de busca".

Em acórdão anterior, num AgIn em REsp nº 1593873/SP (j.10.11.2016, rel. Min. Nancy Andrighi), a mesma 3ª Turma decidiu sobre a exata matéria que há "ausência de fundamento normativo para imputar aos provedores de aplicação de buscas na internet a obrigação de implementar o direito ao esquecimento e, assim, exercer função de censor digital". Depende, portanto, a tutela do direito ao esquecimento, em casos assim, da indicação por parte do interessado da página onde inserida a informação a ele atentatória.

Examinando a questão da necessidade ou não de comprovação da má-fé das publicações jornalísticas que invadam o âmbito do direito ao esquecimento e, consequentemente, da proteção à personalidade, decidiu a 3ª Turma, no REsp nº 1369571/PE (j. 22.09.2016, rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva), no sentido de que o direito ao esquecimento pertence à esfera da proteção da dignidade da pessoa humana e "a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem-se manifestado pela responsabilidade das empresas jornalísticas pelas matérias ofensivas por elas divulgadas, sem exigir a prova inequívoca da má-fé da publicação".

No Brasil, houve dois casos emblemáticos e decisivos para o reconhecimento judicial da doutrina do direito ao esquecimento entre nós. Um deles foi o chamado Caso Aida Curi (STJ, REsp 1.335.153-RJ, cit.), em que a família - únicos irmãos vivos - da vítima (Aida) de homicídio praticado no ano de 1958 tentaram obter da Rede Globo de Televisão uma mitigação pelos alegados danos morais sofridos. Alegavam que a ré "cuidou de reabrir as antigas feridas dos autores, veiculando novamente a vida, a morte e a pós-morte de Aida Curi, inclusive explorando sua imagem, mediante a transmissão do programa chamado Linha Direta – Justiça".

O curioso neste caso é que o Superior Tribunal de Justiça, em que pese ter chegado à mesma conclusão prática para os autores daquele caso concreto — a improcedência de seu pedido —, posicionou-se de forma diametralmente contrária, felizmente, aos argumentos esgrimidos pelas instâncias que lhe antecederam. O relator do caso, ministro Luis Felipe Salomão, rebateu todas as teses que denotavam a resistência à aceitação da teoria do direito ao esquecimento e afirmou que: (i) o fato ser de conhecimento público não importava; (ii) que a existência de cobertura sensacionalista e abusiva à época não seria, agora, autorizativa de novo abuso; (iii) que a família tem sim o direito de ver esquecidos fatos que lhe causem dor e humilhação; e, principalmente, (iv) que os acusados, ou mesmo os condenados por crimes, têm o direito de, a partir de um determinado momento, ver esquecidas as informações quanto aos crimes pretéritos pelos quais já pagaram (principalmente os acusados absolvidos).

O que se viu do voto do relator foi um libelo em defesa da doutrina do direito ao esquecimento. Numa passagem de seu voto, diz o relator que "a assertiva de que uma notícia lícita não se transforma em ilícita com o simples passar do tempo não tem nenhuma base jurídica". Lembra o ministro que o ordenamento é prenhe de situações em que confere ampla significação à passagem do tempo, exatamente para conferir "o esquecimento e a estabilização do passado, mostrando-se ilícito sim reagitar o que a lei pretende sepultar". Dá como exemplos a prescrição no âmbito do Direito Civil; o prazo máximo de cinco anos para constarem em bancos de dados informações negativas a respeito de consumidores inadimplentes, já no âmbito do Direito do Consumidor; e o instituto da reabilitação penal do artigo 93 do Código Penal e do artigo 748 do Código de Processo Penal.

Na mesma ocasião, em julgamento conjunto, examinou-se no STJ, também sob a relatoria do ministro Luis Felipe Salomão — com fundamentação bastante semelhante, ou mesmo quase idêntica para ambos os acórdãos — o Recurso Especial n. 1.334.097-RJ, interposto pela Rede Globo de Televisão em face de condenação por danos morais, fundada no direito ao esquecimento, em ação movida por Jurandir Gomes de França.

Muito resumidamente, já que os fundamentos jurídicos que importaram no reconhecimento do direito ao esquecimento são os mesmos, passa-se aos fatos discutidos neste caso específico, pois aqui o desfecho foi favorável ao autor, "indenizado" pela emissora, porquanto reconhecido como vulnerado seu "direito ao anonimato e ao esquecimento": Jurandir Gomes de França foi indiciado como coautor/partícipe da série de homicídios que passou para a crônica policial e se tornou tristemente célebre no Brasil como a "Chacina da Candelária", ocorrida em 23 de julho de 1993. Levado a júri popular, foi Jurandir absolvido por negativa de autoria pela unanimidade dos membros do conselho de sentença.

Passados treze anos da data dos fatos, o mesmo programa da Rede Globo de Televisão, o Linha Direta – Justiça manifestou ao autor o interesse por uma entrevista, a que este último não aquiesceu, porquanto não pretendia ver seu nome relacionado àqueles fatos, mormente tantos anos depois e após ter sido absolvido da acusação de envolvimento no crime. Queria o autor permanecer anônimo e ser esquecido, mas o programa foi ao ar mencionando-o. Diante dessa conduta da emissora, o autor ajuizou ação indenizatória por danos morais mas o juízo da 3ª Vara Cível da comarca do Rio de Janeiro/RJ julgou improcedente o pedido indenizatório5.

Apreciando o feito em grau de recurso, interposto pelo autor, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, por maioria de votos, reformou a decisão de primeiro grau (TJRJ, ApCív 0029569-97.2007.8.19.0001, rel. Eduardo Gusmão Alves de Brito Neto, 16ª CâmCív, j. 11.11.2008).

Do acórdão do STJ, de lavra do ministro Luis Felipe Salomão, que manteve a decisão de segunda instância, condenando a emissora, lê-se que "muito embora tenham as instâncias ordinárias reconhecido que a reportagem mostrou-se fidedigna com a realidade, a receptividade do homem médio brasileiro a noticiários desse jaez é apta a reacender a desconfiança geral acerca da índole do autor, que, certamente, não teve reforçada sua imagem de inocentado, mas sim a de indiciado".

Concorda-se, in totum, com o deslinde dado à causa, porquanto se se assegura ao condenado, ressocializado ou em processo de ressocialização, o direito ao esquecimento, com muito mais razão dever-se-ia garantir o mesmo direito àquele que foi absolvido da acusação por negativa de autoria.

O que se deve ter em mente, de resto, como em todos os casos de princípios constitucionais postos em conflito, é que o direito ao esquecimento não é também um direito absoluto (como nenhum outro há) e que a ponderação entre ele e aquele que a ele se contraponha não pode ser feita in abstracto, deve sempre dar-se em vista dos dados da realidade fática a envolver o caso concreto.

*Carlos Frederico Barbosa Bentivegna é mestre e doutorando em Direito Civil pela FDUSP.

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1 Recurso Especial nº 1.736.803/RJ, j. em 28.04.2020, 3ª Turma, que afasta a incidência do direito ao esquecimento sobre os fatos que norteariam a preponderância do interesse histórico e social legítimo em virtude das grandes violência e repercussão de crime a envolver pessoas notórias. Faz, no entanto, um apontamento de grande interesse que é a impossibilidade de, a pretexto de se mencionar o fato criminoso pretérito, explorar a reportagem a vida quotidiana atual das pessoas com ele envolvidas

2 MORATO, Antonio Carlos; DE CICCO, Maria Cristina. Direito ao esquecimento: luzes e sombras. In: SILVEIRA, Renato de Mello Jorge; GOMES, Mariângela Gama de Magalhães (orgs.). Estudos em homenagem a Ivette Senise Ferreira. São Paulo: LiberArs, 2015, p. 80.

3 GAUDENZI, Andrea Sirotti. Diritto all’oblio: responsabilità e risarcimento del danno, cit., p. 11.

4 SANSTERRE, Jean-Marie. Formoso (verbete). Enciclopedia dei papi. Roma: Istituto dell’enciclopedia italiana. v. 2, 2000.

5 PJRJ, 3ª Vara Cível da comarca da Capital, processo n. 2012/0144910-7.

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Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).

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Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

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