Migalhas de Responsabilidade Civil

A responsabilidade civil na esfera médica em razão da covid-19

A responsabilidade civil na esfera médica em razão da covid-19.

7/5/2020

Texto de autoria de Tula Wesendonck

A Responsabilidade Civil está em constante desenvolvimento acompanhando a evolução da sociedade no enfrentamento dos problemas que lhes são impostos a cada dia.

Considerando os efeitos que podem surgir em virtude da Covid-19, esse universo pode ser ainda maior, pois as questões relacionadas à responsabilidade civil são muito difusas e amplas. Podem ser observados problemas relacionados à responsabilidade do médico, dos hospitais e dos fabricantes de medicamentos.

Os reflexos jurídicos da pandemia do novo Coronavírus são incertos, pois ainda não é possível determinar com exatidão o que está por vir, ou prever todos os casos passíveis de incidência de responsabilidade ou de sua exclusão. Se não compreendemos bem os problemas, mais difícil é saber as respostas para esses problemas.

Para auxiliar nessa tarefa é necessário perceber o atual estado da arte e da ciência no enfrentamento da crise. As observações preliminares indicam que não há estudos conclusivos sobre a doença, seja no que se refere ao tratamento, medicamentos, vacina... A única certeza que a ciência fornece é de que o vírus é muito contagioso, e que a doença por ele provocada pode ser muito agressiva e levar a complicações e até à morte para uma fração da população (principalmente pessoas idosas e/ou que apresentam comorbidades).

Partindo dessa premissa, o propósito deste artigo é mais problematizar e formular perguntas sobre tarefas jurídicas que nos esperam do que apresentar soluções e certezas sobre a matéria.

Para isso, parte-se dos requisitos da responsabilidade civil que podem ajudar a refletir sobre hipóteses ou situações de incidência de responsabilidade civil em virtude da Covid-19.

A avaliação dos requisitos da responsabilidade civil, especialmente no que se refere ao nexo de imputação e à delimitação do nexo causal, é relevante em virtude dos efeitos da Covid-19, pois em meio à pandemia do coronavírus, e diante da necessidade de enfrentar os efeitos da Covid-19, ganha relevo a análise do exercício da atividade do médico, os procedimentos adotados pelos hospitais e as ações dos fabricantes de medicamentos.

Nesse cenário, talvez seja prudente considerar a possibilidade de ressignificação do conceito de culpa no exercício das atividades médicas.

Para imputar a responsabilidade ao médico a sua conduta deve ser valorada de acordo com a possibilidade de agir frente às adversidades no contexto atual. Nesse sentido, é preciso considerar problemas como a de falta de pessoal, equipamentos, leitos e materiais, que possivelmente irão acompanhar o atendimento médico durante a pandemia.

Nessa direção, é possível notar algumas providências que modulam a atuação do médico. Algumas condutas que antes eram vedadas, ou que não eram recomendadas num cenário de normalidade, passam a ser admitidas e contribuem para flexibilizar as exigências em relação à atuação do médico. Por razões óbvias, isso não quer dizer que a pandemia por si só irá eximir a responsabilidade do médico na sua atuação, mas é possível afirmar, que a pandemia contribuiu para um relaxamento na exigibilidade de determinadas condutas.

A lei 13.989, de 15 de abril de 2020 pode ser citada como flexibilização das exigências em relação à atuação do médico. A lei autorizou o exercício da telemedicina durante o período da pandemia, relativizando a essencialidade do contato presencial com os pacientes. É um exemplo da resposta do Direito à necessidade de adaptar a atuação do médico aos novos tempos.

Outra providência que merece destaque na atuação do médico durante a pandemia é uso off label de medicamentos (medicamentos liberados pela Anvisa para outras indicações como por exemplo a Cloroquina ou Hidroxicloroquina) ou uso compassivo de medicamentos (medicamento ainda experimental que não está disponível comercialmente, não liberado pela Anvisa, como é o caso do Remdesivir – utilizado para o tratamento nos casos de infecção pelo vírus ebola)1.

Em casos de doenças novas como a Covid-19, sobre a qual ainda não há tratamento disponível, a postura do médico no enfrentamento da doença também pode ser diferente. Em alguns casos será admissível atitudes mais arriscadas no intuito de salvar o paciente. Assim, o médico pode chegar à conclusão de que diante o risco de morte, e do desconhecimento sobre o caminho mais seguro, o médico possa decidir tomar uma atitude positiva em usar um medicamento não testado adequadamente ao invés de permanecer passivo e preso por standards de conduta que não são exigíveis nas circunstâncias atuais.

A grande questão posta nesses casos é: como evitar que no futuro esse standard próprio de momentos de normalidade seja exigido em demandas futuras que questionam a atitude positiva de utilizar medicamentos off label ou compassivos? Não há como negar que a situação atual é extraordinária e pode admitir uma atuação do médico distinta da que adotava em tempos de normalidade. O cenário atual exige reflexão sobre a flexibilização e mudança dos padrões de conduta esperados.

Nesse sentido, foi a posição do Conselho Federal de Medicina que no parecer n. 4/2020 concluiu que "Diante da excepcionalidade da situação e durante o período declarado da pandemia, não cometerá infração ética o médico que utilizar a cloroquina ou hidroxicloroquina, nos termos acima expostos, em pacientes portadores da Covid -19"2. Destaque para a ressalva na conclusão do parecer, que considera a excepcionalidade da situação e restringe o uso do medicamento no período da pandemia.

Além da modificação do patamar de exigência da conduta médica a situação excepcional, extraordinária e inevitável (caso fortuito ou força maior), afasta a imputação da responsabilidade ainda que se adote a teoria do risco, pela caracterização de sua excludente3.

Imagine-se, por exemplo, a hipótese de um cidadão que vai a um hospital por outras razões que não a Covid-19 e é contaminado pelo coronavírus dentro do estabelecimento hospitalar. Imagine-se ainda, que se consiga fazer a prova de que essa contaminação efetivamente deu-se nas dependências do hospital. Seria possível responsabilizar o hospital? Qual é possibilidade efetiva de impedir que pacientes não sejam contaminados pelo vírus? Note-se que há estudos apontando que o vírus circula livre no ar, sendo mais frequente nas imediações de hospitais, e é por isso que as autoridades sanitárias fazem desinfecção das ruas e calçadas próximas4.

Outro aspecto a ser ponderado é imputar responsabilidade por danos pelo uso de medicamentos e/ou vacinas para enfrentamento da doença. Seria possível responsabilizar os fabricantes de medicamentos e de vacinas pelos riscos do desenvolvimento? Mesmo para países que considerem essa responsabilidade viável, em que medida a situação emergencial que assola o mundo poderia influenciar nos contornos dessa responsabilidade? A excepcionalidade da pandemia exige dos fabricantes de medicamentos um agir rápido, e talvez apostas, na direção de uma cura ou vacina. E aqui cabe um alerta: a situação atual não se assemelha em nada a casos como o clássico caso da Talidomida5.

Para concluir este artigo, propõe-se a necessidade de um olhar cauteloso do jurista, pois os contornos tradicionais da responsabilidade civil podem sofrer interferências significativas em virtude da pandemia do coronavírus. A abertura de novas alternativas no enfrentamento da crise pode consolidar novas soluções.

Fica a dúvida se as novas soluções serão temporárias ou influenciarão irremediavelmente no futuro, algo que somente o decurso do tempo poderá revelar.

__________

1 GOLDIM, José Roberto, COVID-19 e o Uso Compassivo ou Off Label de Medicamentos, Bioética complexa. Acesso em abril de 2020

2 O parecer está disponível no site do Conselho Federal de Medicina, acesso em abril de 2020.

3 CASTRONOVO, Carlo. Responsabilità Civile. Milão: Giuffrè Editora, 2018, p. 458-459.

4 Informação disponível no site. Acesso em abril de 2020.

5 A respeito do tema tratei na obra WESENDONCK, Tula. O regime da Responsabilidade Civil pelo fato dos produtos postos em circulação. Uma proposta de interpretação do Art. 931 do Código Civil sob a perspectiva do Direito Comparado. Livraria do Advogado, 2015, p. 166 a 202.

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Colunistas

Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.