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Apontamentos sobre as Guidelines 01/2024 Comitê Europeu de Proteção de Dados em relação ao legítimo interesse no tratamento de dados pessoais

Nesse breve ensaio, é feita uma análise introdutória às Guidelines 01/2024 do European Data Protection Board, com efeito a partir de 8 de outubro de 2024, sobre a aplicação do Artigo 6.º, n.º 1, “f”, do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados da União Europeia (2016/679), que concerne ao legítimo interesse como hipótese de tratamento de dados pessoais.

22/11/2024

Visando regulamentar com maior precisão o Artigo 6.º, n.º 1, "f", do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados da União Europeia (2016/679(EU), ou RGPD), o Comitê Europeu de Proteção de Dados (European Data Protection Board, EDPB) publicou e passou a adotar, a partir de 8 de outubro de 2024, suas Guidelines 01/20241. O conteúdo do documento diz respeito ao tratamento de dados pessoais com base em interesses legítimos do controlador ou de terceiros.

Anteriormente, o tema era avaliado a partir da Opinion 2014-06, emitida pelo Grupo de Trabalho do Artigo 292, antecessor do Comitê Europeu de Proteção de Dados, que abordou o conceito de "interesses legítimos" do controlador como uma base legal para o processamento de dados pessoais sob a antiga Diretiva 95/46/EC. Essa opinião foi fundamental para definir diretrizes e critérios que, posteriormente, foram refinados e incorporados ao RGPD com o Artigo 6.º, n.º 1, “f”, que estabelece o interesse legítimo como uma das possíveis hipóteses de lastro para o tratamento de dados pessoais3.

Já era de amplo conhecimento a posição do Grupo de Trabalho do Artigo 29 no sentido de que o interesse legítimo deve ser interpretado de forma restrita e que o controlador precisa cumprir três requisitos para justificar o tratamento de dados pessoais com base nessa base legal: primeiro, a existência de um interesse legítimo que seja específico, atual e não conflituoso com a lei; segundo, a necessidade de processamento para alcançar esse interesse, sem outras alternativas menos invasivas; e terceiro, o equilíbrio entre o interesse do controlador e os direitos e liberdades dos titulares de dados. Esses requisitos foram denominados "teste de três etapas" e visavam garantir uma análise cuidadosa e fundamentada antes de se optar pelo interesse legítimo como base legal4.

A opinião de 2014 também destacou a importância de controlador documentar o processo de avaliação do interesse legítimo, a fim de cumprir com o princípio da “responsabilização” (accountability) e estar preparado para demonstrar a legalidade do tratamento de dados, se necessário, em fiscalizações, auditorias e até mesmo para o atendimento de ordens judiciais. Além disso, recomendou-se que os controladores fornecessem informações claras e transparentes aos titulares dos dados sobre a base legal de interesse legítimo, promovendo a transparência e fortalecendo a confiança no uso dos dados.

Outro ponto importante abordado foi o contexto e o impacto do tratamento de dados para os titulares. A Opinion 2014-06 reconheceu que o impacto pode variar de acordo com a tipologia dos dados tratados, a natureza da relação entre controlador e titular, e as expectativas razoáveis dos titulares em relação ao tratamento. Situações envolvendo certas categorias de dados pessoais (como os genéticos, biométricos e os relativos à saúde do titular) ou em que os titulares sejam vulneráveis (como crianças) exigem uma análise ainda mais rigorosa e, potencialmente, salvaguardas adicionais para garantir a proteção dos direitos fundamentais dos titulares.

Tratou-se, portanto, de um relevante marco inicial para estabelecer entendimento uniforme sobre o interesse legítimo, promovendo o uso dessa base legal de forma equilibrada e responsável. A partir de agora, entretanto, as Guidelines 01/2024 do EDPB atualizam e expandem os conceitos apresentados na Opinion 06/2014 e incorporam desenvolvimentos normativos e jurisprudenciais ocorridos desde 2014, incluindo decisões recentes do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) que influenciam a interpretação do RGPD. Por exemplo, a decisão no caso C-252/21, de 4 de julho de 2023, forneceu esclarecimentos adicionais sobre a aplicação do Artigo 6.º, n.º 1, “f” e foi considerada nas novas orientações.

Além disso, as Guidelines 1/2024 oferecem uma análise mais detalhada dos critérios que os controladores devem atender para processar dados pessoais com base em interesses legítimos, enfatizando a necessidade de: (i) identificar claramente o interesse legítimo perseguido; (ii) avaliar a necessidade do tratamento para alcançar esse interesse; (iii) realizar um balanceamento entre o interesse do controlador e os direitos dos titulares dos dados.

A propósito, o Capítulo III das Guidelines 01/2024 é inteiramente dedicado à avaliação da relação entre o legítimo interesse e o repertório de direitos do titular de dados na União Europeia. Esses direitos, que vão desde a transparência até a restrição de tratamento, não apenas reafirmam o controle dos indivíduos sobre seus dados, mas impõem ao controlador a obrigação de respeitar e viabilizar seu exercício, mesmo quando o legítimo interesse é invocado como base legal. Neste sentido, a transparência, como um princípio central, garante que os titulares compreendam claramente como seus dados são utilizados, possibilitando uma participação ativa e informada no processo de gestão dos dados que lhes dizem respeito.

A falta de transparência compromete a confiança dos titulares e enfraquece o direito fundamental à proteção de dados, ao passo que a disponibilização de informações detalhadas e acessíveis permite que os titulares exerçam com propriedade os direitos que lhes são atribuídos.

Destacam-se alguns direitos, como o direito de acesso, que permite ao titular requisitar ao controlador informações específicas sobre os dados armazenados e a lógica do processamento, conferindo ao titular não apenas um instrumento de informação, mas também uma ferramenta de verificação do cumprimento da legislação. Na relação desse direito com o legítimo interesse, o controlador deve ir além de uma justificativa genérica e expor claramente o equilíbrio entre seus interesses e os direitos do titular, tornando este direito um pilar da transparência e da accountability no tratamento de dados.

Já o direito de oposição reflete a capacidade do titular de interferir diretamente no tratamento de seus dados, especialmente quando este se baseia no interesse legítimo. Neste caso, cabe ao controlador interromper o tratamento ou, alternativamente, apresentar provas de que razões legítimas superiores justificam a sua continuidade, o que reforça a proteção dos interesses dos titulares.

O direito de apagamento possibilita ao titular solicitar a exclusão de seus dados pessoais em situações nas quais o legítimo interesse deixa de ser aplicável, como ocorre com a retirada do consentimento. Esta prerrogativa representa um limite ao controle do controlador sobre os dados, impondo a ele a obrigação de garantir o respeito ao desejo do titular, salvo em situações excepcionais, como a necessidade de preservação dos dados para defesa em litígios.

Em relação às decisões automatizadas e ao perfilamento, o RGPD reconhece que o uso de algoritmos e processamento automatizado pode impactar significativamente os direitos dos titulares. Por fim, os direitos de retificação e de restrição de tratamento oferecem ao titular o poder de corrigir dados imprecisos e de limitar o processamento em casos de controvérsia.

No Capítulo IV das Guidelines 01/2024 é possível notar uma preocupação com contextos nos quais o legítimo interesse é usualmente invocado, o que contribui eficazmente para a clarificação das nuances relativas a essa base legal em situações práticas. No tratamento de dados de crianças, as Guidelines enfatizam uma abordagem diferenciada e protetiva. Considerando a vulnerabilidade e a menor compreensão que as crianças possuem em relação aos riscos associados ao uso de seus dados, exige-se dos controladores um cuidado especial e a adoção de medidas adicionais. A aplicação do legítimo interesse nesses casos requer que o controlador realize uma avaliação detalhada, que evidencie a supremacia dos direitos da criança e que evite repercussões negativas em seu desenvolvimento e segurança.

Em se tratando de autoridades públicas, as Guidelines claramente limitam a aplicabilidade do legítimo interesse. Para as autoridades, que geralmente dispõem de bases legais específicas, o interesse legítimo não se aplica de maneira automática, a menos que estejam agindo fora de suas funções públicas regulares. A prevenção de fraudes, por sua vez, emerge como um contexto no qual o interesse legítimo é amplamente reconhecido. Esse tipo de tratamento de dados representa um exemplo claro de benefício mútuo: ao proteger o controlador e os titulares dos dados de atividades ilícitas, como fraudes, garante-se a integridade das operações e a segurança dos dados pessoais.

Outro ponto relevante é o marketing direto, no qual o interesse legítimo pode ser invocado, desde que respeitados os limites impostos pela legislação específica, que em certos casos exige o consentimento prévio do titular. No âmbito corporativo, o compartilhamento de dados para fins administrativos internos dentro de grupos empresariais é uma situação em que o legítimo interesse pode ser reconhecido, pois otimiza processos internos e fortalece a integração entre subsidiárias e filiais, exige que os controladores adotem transparência e clareza, especialmente no que se refere às expectativas dos titulares.

No campo da segurança de redes e informações, o interesse legítimo é interpretado com amplitude, uma vez que a proteção contra ataques cibernéticos e acessos não autorizados reveste-se de alta importância. A natureza desse tratamento transcende o benefício individual da organização e visa a proteção coletiva, garantindo a confiabilidade e segurança de sistemas que processam dados pessoais. Esse contexto, assim, justifica a relevância do interesse legítimo como meio de garantir a estabilidade e resiliência dos sistemas de informação.

Finalmente, a transmissão de dados para autoridades competentes em situações que envolvem crimes ou ameaças à segurança pública é abordada como uma necessidade legítima. Todavia, mesmo nesses casos, o documento enfatiza a necessidade de uma avaliação criteriosa que considere a proporcionalidade e a adequação do tratamento. O compartilhamento de dados pessoais deve ser conduzido com responsabilidade e em conformidade com as leis de proteção de dados aplicáveis, assegurando que o interesse legítimo não se sobreponha aos direitos e liberdades fundamentais sem justificativa adequada.

Em conclusão, as Guidelines 01/2024 representam um avanço significativo em relação à Opinion 2014-06, ao atualizarem o entendimento sobre o interesse legítimo no tratamento de dados pessoais no contexto do RGPD. Com uma metodologia de avaliação mais detalhada e uma análise contextual de cada cenário de tratamento, o EDPB busca garantir que o uso do interesse legítimo seja alinhado aos princípios de transparência, necessidade e proporcionalidade.

Esse avanço europeu é de suma importância para o Brasil, pois oferece uma referência robusta para o desenvolvimento e a aplicação prática da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). É preciso elogiar o labor da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) brasileira, que lançou recentemente o seu Guia Orientativo sobre a Base Legal do Legítimo Interesse5, que visa orientar a aplicação responsável dessa base legal, de modo a equilibrar os interesses dos agentes de tratamento com os direitos fundamentais dos titulares, mas o acompanhamento detido das diretrizes europeias pode viabilizar aperfeiçoamento ainda maior de suas práticas e fortalecer a segurança jurídica no tratamento de dados para criar uma cultura de proteção de dados alinhada aos melhores padrões globais.

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1 EUROPEAN DATA PROTECTION BOARD. Guidelines 1/2024 on processing of personal data based on Article 6(1)(f) GDPR. Bruxelas: EDPB, 2024. Disponível aqui. Acesso em: 14 nov. 2024.

2 ARTICLE 29 DATA PROTECTION WORKING PARTY. Opinion 06/2014 on the notion of legitimate interests of the data controller under Article 7 of Directive 95/46/EC. Bruxelas: European Commission, 2014. Disponível aqui. Acesso em: 14 nov. 2024.

3 GOMES, Rodrigo Dias de Pinho. Legítimos interesses na LGPD: trajetória, consolidação e critérios de aplicação. Indaiatuba: Foco, 2024, p. 88-91.

4 PIVETO, Lucas Colombera Vaiano. Art. 10. In: MARTINS, Guilherme Magalhães; LONGHI, João Victor Rozatti; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura (coord.) Comentários à Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (lei 13.709/2018). 2. ed. Indaiatuba: Foco, 2024, p. 117-118.

5 AUTORIDADE NACIONAL DE PROTEÇÃO DE DADOS. Guia Orientativo sobre a Base Legal de Legítimo Interesse. Brasília: ANPD, 2024. Disponível aqui. Acesso em: 14 nov. 2024.

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Coordenação

Cintia Rosa Pereira de Lima, professora de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP Ribeirão Preto – FDRP. Doutora em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP com estágio na Ottawa University (Canadá) com bolsa CAPES - PDEE - Doutorado Sanduíche e livre-docente em Direito Civil Existencial e Patrimonial pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (USP). Pó-doutora em Direito Civil na Università degli Studi di Camerino (Itália) com fomento FAPESP e CAPES. Líder e Coordenadora dos Grupos de Pesquisa "Tutela Jurídica dos Dados Pessoais dos Usuários da Internet" e "Observatório do Marco Civil da Internet", cadastrados no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq e do Grupo de Pesquisa "Tech Law" do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP). Presidente do Instituto Avançado de Proteção de Dados – IAPD - www.iapd.org.br. Associada Titular do IBERC - Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil. Membro fundador do IBDCONT - Instituto Brasileiro de Direito Contratual. Advogada.

Cristina Godoy Bernardo de Oliveira, professora doutora da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto – Universidade de São Paulo desde 2011. Academic Visitor da Faculty of Law of the University of Oxford (2015-2016). Pós-doutora pela Université Paris I Panthéon-Sorbonne (2014-2015). Doutora em Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da USP (2011). Graduada pela Faculdade de Direito da USP (2006). Líder do Grupo de Pesquisa Direito, Ética e Inteligência Artificial da USP – CNPq. Coordenadora do Grupo de Pesquisa "Tech Law" do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP). Membro fundador do Instituto Avançado de Proteção de Dados – IAPD.

Evandro Eduardo Seron Ruiz, professor Associado do Departamento de Computação e Matemática, FFCLRP - USP, onde é docente em dedicação exclusiva. Atua também como orientador no Programa de Pós-graduação em Computação Aplicada do DCM-USP. Bacharel em Ciências de Computação pela USP, mestre pela Faculdade de Engenharia Elétrica da UNICAMP, Ph.D. em Electronic Engineering pela University of Kent at Canterbury, Grã-Bretanha, professor lLivre-docente pela USP e pós-Doc pela Columbia University, NYC. Coordenador do Grupo de Pesquisa "Tech Law" do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP). Membro fundador do Instituto Avançado de Proteção de Dados – IAPD.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Newton De Lucca, professor Titular da Faculdade de Direito da USP. Desembargador Federal, presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (biênio 2012/2014). Membro da Academia Paulista de Direito. Membro da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Membro da Academia Paulista dos Magistrados. Vice-presidente do Instituto Avançado de Proteção de Dados.