A PRF - Polícia Rodoviária Federal solicitou à ANPD - Autoridade Nacional de Proteção de Dados uma manifestação técnica sobre a possibilidade de criar um memorial no portal web da PRF, conforme o ofício 692/22, com o objetivo de homenagear servidores falecidos. O memorial disponibilizaria, ao público que acessa o portal, a foto dos servidores e o tempo de serviço dedicado à instituição, como forma de prestar homenagem e preservar a memória institucional da PRF, considerando as diretrizes da lei 13.709/18 (LGPD).
A consulta da PRF tratava, portanto, da existência ou não, pois há omissão legal ao tema, de tutela post mortem sobre os dados pessoais destes servidores. Em resposta, a ANPD emitiu a nota técnica 3/23/CGF - cujo argumento central é de que não há incidência da LGPD em casos envolvendo dados pessoais de pessoas falecidas, prescrito no item 6.1 e 6.2 da Nota. No entanto, vale a pena analisar mais a fundo o conteúdo da nota técnica e considerar se existem outros entendimentos possíveis.
Na nota, especificamente nos subitens 5.1 e 5.4, a ANPD prescreve:
5.1. Considerando que o tratamento de dados em questão envolve dados pessoais de pessoas falecidas e que não há, na LGPD, tampouco nos normativos infralegais expedidos por esta Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), menção expressa à incidência ou não da LGPD no tratamento de tais dados, foram solicitados subsídios para a Coordenação-Geral de Normatização (SUPER nº 3725625 e 3797726), que serviram como balizador para a análise a seguir.
[...]
5.4. Nesse caso, pressupõe-se que a sua incidência se dá no âmbito do tratamento de dados pessoais de pessoas naturais, ou seja, vivas, já que, de acordo com o art. 6º do Código Civil, a existência da pessoa natural termina com a morte. A proteção post mortem dos direitos da personalidade dos titulares de dados pessoais não estaria, então, abarcada pela LGPD, pois não mais há desenvolvimento de personalidade. (grifo nosso)
A ANPD reconhece, no subitem 5.1, portanto, a lacuna legislativa diante do tema proposto. Ora, lacunas legais existem desde o Direito Romano (Streck, 2014; Doneda, 2020) e persistiram às mais diversas codificações, código napoleônico, Constituição de Weimar, e etc. e por que não na LGPD? O ponto, portanto, não se trata apenas da identificação da lacuna, mas qual técnica hermenêutica o aplicador utilizou para preenchê-la e resolver o caso, não por menos, o ordenamento jurídico brasileiro prescreve o princípio non liquet (art. 4º da LINDB e 140 do CPC/15).
As lacunas, para Hans Kelsen, são ficções criadas por uma interpretação equivocada do sistema jurídico. Dessa maneira, a lacuna surge como uma imprevisibilidade do legislador e aparece ao intérprete como injusta (Kelsen, 1998, p. 172), ou inoportuna, pois, caso fosse justa, caberia ao Legislativo prever o caso. Entretanto, a realidade impõe desafios à toda sociedade - os avanços tecnológicos são tais casos e por isso merecem atenção especial - assim - as lacunas legais podem ser vistas como avanços do Direito tendo em vista à realidade - porque a hermenêutica exegética permaneceu no código napoleônico, não é mesmo?
Diante disso, observa-se um imbróglio: a ANPD, como intérprete, identificou a lacuna, mas não a preencheu de forma adequada ao desconsiderar a analogia exigida pelo ordenamento jurídico brasileiro nesses casos. Embora tenha mencionado o CC, a ANPD não o utilizou de forma apropriada para tratar dos dados pessoais — sensíveis ou não — como uma extensão dos direitos assegurados por normas superiores, como a própria CF, que no art. 5º, inc. X tutela os direitos da personalidade e, no inc. LXXIX, protege os dados pessoais. Além disso, o CC, nos arts. 16 a 18, especialmente em relação ao nome, também oferece diretrizes importantes,
Essa interpretação não implica a existência de direitos da personalidade de indivíduos falecidos, mas sim o reconhecimento de que, em determinados casos, aspectos desses direitos, como o uso da imagem, podem ser tutelados por legitimados, como os familiares, para resguardar a memória e a dignidade do falecido, como bem ensina Adriano de Cupis (2008, p. 127).
A técnica hermenêutica, contudo, deveria ter sido melhor aplicada. Segundo Hans-Georg Gadamer (2004, p. 115), em sua filosofia hermenêutica, é o texto que deve orientar o intérprete e oferecer sentido, e não o intérprete que, de maneira solipsista ou discricionária, impõe um sentido à norma. Para Gadamer, o processo de interpretação deve ser um diálogo entre o texto e o intérprete, onde este último se coloca em uma posição de abertura ao significado que o texto oferece, ao invés de projetar sua própria visão subjetiva sobre ele.
Danilo Doneda, em uma erudição invejável, também nos ensinava que o
[...] conjunto de situações-tipo presentes no Código Civil brasileiro, sob a denominação de direitos da personalidade, não deve ser lido de forma a excluir absolutamente outras hipóteses não previstas. Na verdade, muito mais importante que esse elenco (tímido) é sua leitura à luz da cláusula geral de proteção da personalidade presente na Constituição. Assim, a chamada “positivação” dos direitos da personalidade pelo Código Civil não é o elemento fundador desses direitos, mas tem a função de orientar a interpretação e facilitar sua aplicação e tutela, em hipóteses onde a experiência ou a natureza dos interesses inspirem o legislador a tratá-las com maior detalhe (Doneda, 2020, 73; grifo nosso)
Os dados pessoais, sensíveis ou não, como mencionado anteriormente, previstos na LGPD, são uma espécie do gênero direitos da personalidade. Esses dados estão intrinsecamente ligados à dignidade humana e à proteção da identidade e privacidade de cada indivíduo, conectando-os diretamente aos direitos fundamentais de personalidade assegurados pela CF/88 e pelo CC. Assim como o nome, a imagem e a honra, os dados pessoais integram esse conjunto de direitos inalienáveis, cuja função é garantir o livre desenvolvimento da pessoa, tanto no ambiente físico quanto no digital. Nesse sentido, o que a ANPD realizou foi deslocar o conceito jurídico de tutela post mortem de seu contexto macrossocial para um contexto isolado, o que se mostra equivocado (Doneda, 2020, p. 71).
Outro aspecto, já decorrente da interpretação da ANPD sobre o tema, é em relação ao consentimento. A LGPD, em seu art. 7º, inciso I, estabelece o consentimento como uma das bases legais para o tratamento de dados pessoais, ressaltando a necessidade de autorização explícita do titular para que seus dados sejam tratados. No entanto, a lei é omissa quanto ao consentimento em relação aos dados pessoais de pessoas falecidas, deixando um vácuo jurídico sobre a continuidade do controle desses dados após a morte do titular.
A problemática emerge mais claramente à luz da nota técnica da ANPD, quando se considera as situações em que o titular dos dados, ainda em vida, consentiu explicitamente com o uso de suas informações. Em tais casos, cabe indagar: após o falecimento, terão os legitimados — familiares ou representantes legais — o direito de representação para intervir e resguardar a privacidade e dignidade desses dados? Essa questão envolve uma tensão entre a vontade do titular em vida e a tutela póstuma dos dados, que exige consideração cuidadosa dos direitos de personalidade e da dignidade da memória.
Por outro lado, o cenário se torna ainda mais complexo quando se trata de titulares que não manifestaram consentimento prévio quanto ao uso de seus dados após a morte. Nesse caso, recai sobre a PRF a responsabilidade de determinar a condução do tratamento desses dados de maneira que respeite tanto a memória do titular quanto os interesses dos legitimados, levando em conta a ausência de consentimento explícito. Aqui, a questão da transparência se torna fundamental: como a PRF comunicará o tratamento desses dados aos legitimados? E, em que medida esses representantes poderão intervir ou mesmo se opor ao uso dos dados, na ausência de uma manifestação direta do titular?
Portanto, a ausência de diretrizes específicas da ANPD quanto à comunicação e ao consentimento post mortem cria um espaço de incerteza que desafia a PRF a agir de maneira prudente e ética, evitando interpretações discricionárias que possam gerar violação indireta dos direitos de personalidade, mesmo após a morte.
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1 Disponível aqui.
2 CUPIS, Adriano de. Os Direitos da Personalidade. São Paulo: Quorum, 2008.
3 DONEDA, Danilo Cesar M. Da Privacidade à Proteção de Dados Pessoais: elementos da formação da Lei Geral de Proteção de Dados. 2ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. (e-book).
4 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método II. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 2004.
5 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
6 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica E(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2014.