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Tutela de dados pessoais post mortem: Uma análise crítica da nota técnica 3/23 da ANPD

Camila Carrinhos, Tiago Augustini e Cintia Rosa comentam sobre a decisão da ANPD em relação ao Memorial da PRF, destacando lacunas legais e direitos póstumos.

28/10/2024

PRF - Polícia Rodoviária Federal solicitou à ANPD - Autoridade Nacional de Proteção de Dados uma manifestação técnica sobre a possibilidade de criar um memorial no portal web da PRF, conforme o ofício 692/22, com o objetivo de homenagear servidores falecidos. O memorial disponibilizaria, ao público que acessa o portal, a foto dos servidores e o tempo de serviço dedicado à instituição, como forma de prestar homenagem e preservar a memória institucional da PRF, considerando as diretrizes da lei 13.709/18 (LGPD).

A consulta da PRF tratava, portanto, da existência ou não, pois há omissão legal ao tema, de tutela post mortem sobre os dados pessoais destes servidores. Em resposta, a ANPD emitiu a nota técnica 3/23/CGF  - cujo argumento central é de que não há incidência da LGPD em casos envolvendo dados pessoais de pessoas falecidas, prescrito no item 6.1 e 6.2 da Nota. No entanto, vale a pena analisar mais a fundo o conteúdo da nota técnica e considerar se existem outros entendimentos possíveis.

Na nota, especificamente nos subitens 5.1 e 5.4, a ANPD prescreve: 

5.1. Considerando que o tratamento de dados em questão envolve dados pessoais de pessoas falecidas e que não há, na LGPD, tampouco nos normativos infralegais expedidos por esta Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), menção expressa à incidência ou não da LGPD no tratamento de tais dados, foram solicitados subsídios para a Coordenação-Geral de Normatização (SUPER nº 3725625 e 3797726), que serviram como balizador para a análise a seguir.

[...]

5.4. Nesse caso, pressupõe-se que a sua incidência se dá no âmbito do tratamento de dados pessoais de pessoas naturais, ou seja, vivas, já que, de acordo com o art. 6º do Código Civil, a existência da pessoa natural termina com a morte. A proteção post mortem dos direitos da personalidade dos titulares de dados pessoais não estaria, então, abarcada pela LGPD, pois não mais há desenvolvimento de personalidade. (grifo nosso)

A ANPD reconhece, no subitem 5.1, portanto, a lacuna legislativa diante do tema proposto. Ora, lacunas legais existem desde o Direito Romano (Streck, 2014; Doneda, 2020) e persistiram às mais diversas codificações, código napoleônico, Constituição de Weimar, e etc. e por que não na LGPD? O ponto, portanto, não se trata apenas da identificação da lacuna, mas qual técnica hermenêutica o aplicador utilizou para preenchê-la e resolver o caso, não por menos, o ordenamento jurídico brasileiro prescreve o princípio non liquet (art. 4º da LINDB e 140 do CPC/15). 

As lacunas, para Hans Kelsen, são ficções criadas por uma interpretação equivocada do sistema jurídico. Dessa maneira, a lacuna surge como uma imprevisibilidade do legislador e aparece ao intérprete como injusta (Kelsen, 1998, p. 172), ou inoportuna, pois, caso fosse justa, caberia ao Legislativo prever o caso. Entretanto, a realidade impõe desafios à toda sociedade - os avanços tecnológicos são tais casos e por isso merecem atenção especial - assim - as lacunas legais podem ser vistas como avanços do Direito tendo em vista à realidade - porque a hermenêutica exegética permaneceu no código napoleônico, não é mesmo?

Diante disso, observa-se um imbróglio: a ANPD, como intérprete, identificou a lacuna, mas não a preencheu de forma adequada ao desconsiderar a analogia exigida pelo ordenamento jurídico brasileiro nesses casos. Embora tenha mencionado o CC, a ANPD não o utilizou de forma apropriada para tratar dos dados pessoais — sensíveis ou não — como uma extensão dos direitos assegurados por normas superiores, como a própria CF, que no art. 5º, inc. X tutela os direitos da personalidade e, no inc. LXXIX, protege os dados pessoais. Além disso, o CC, nos arts. 16 a 18, especialmente em relação ao nome, também oferece diretrizes importantes,

Essa interpretação não implica a existência de direitos da personalidade de indivíduos falecidos, mas sim o reconhecimento de que, em determinados casos, aspectos desses direitos, como o uso da imagem, podem ser tutelados por legitimados, como os familiares, para resguardar a memória e a dignidade do falecido, como bem ensina Adriano de Cupis (2008, p. 127). 

A técnica hermenêutica, contudo, deveria ter sido melhor aplicada. Segundo Hans-Georg Gadamer (2004, p. 115), em sua filosofia hermenêutica, é o texto que deve orientar o intérprete e oferecer sentido, e não o intérprete que, de maneira solipsista ou discricionária, impõe um sentido à norma. Para Gadamer, o processo de interpretação deve ser um diálogo entre o texto e o intérprete, onde este último se coloca em uma posição de abertura ao significado que o texto oferece, ao invés de projetar sua própria visão subjetiva sobre ele.

Danilo Doneda, em uma erudição invejável, também nos ensinava que o

[...] conjunto de situações-tipo presentes no Código Civil brasileiro, sob a denominação de direitos da personalidade, não deve ser lido de forma a excluir absolutamente outras hipóteses não previstas. Na verdade, muito mais importante que esse elenco (tímido) é sua leitura à luz da cláusula geral de proteção da personalidade presente na Constituição. Assim, a chamada “positivação” dos direitos da personalidade pelo Código Civil não é o elemento fundador desses direitos, mas tem a função de orientar a interpretação e facilitar sua aplicação e tutela, em hipóteses onde a experiência ou a natureza dos interesses inspirem o legislador a tratá-las com maior detalhe (Doneda, 2020, 73; grifo nosso)

Os dados pessoais, sensíveis ou não, como mencionado anteriormente, previstos na LGPD, são uma espécie do gênero direitos da personalidade. Esses dados estão intrinsecamente ligados à dignidade humana e à proteção da identidade e privacidade de cada indivíduo, conectando-os diretamente aos direitos fundamentais de personalidade assegurados pela CF/88 e pelo CC. Assim como o nome, a imagem e a honra, os dados pessoais integram esse conjunto de direitos inalienáveis, cuja função é garantir o livre desenvolvimento da pessoa, tanto no ambiente físico quanto no digital. Nesse sentido, o que a ANPD realizou foi deslocar o conceito jurídico de tutela post mortem de seu contexto macrossocial para um contexto isolado, o que se mostra equivocado (Doneda, 2020, p. 71).

Outro aspecto, já decorrente da interpretação da ANPD sobre o tema, é em relação ao consentimento. A LGPD, em seu art. 7º, inciso I, estabelece o consentimento como uma das bases legais para o tratamento de dados pessoais, ressaltando a necessidade de autorização explícita do titular para que seus dados sejam tratados. No entanto, a lei é omissa quanto ao consentimento em relação aos dados pessoais de pessoas falecidas, deixando um vácuo jurídico sobre a continuidade do controle desses dados após a morte do titular. 

A problemática emerge mais claramente à luz da nota técnica da ANPD, quando se considera as situações em que o titular dos dados, ainda em vida, consentiu explicitamente com o uso de suas informações. Em tais casos, cabe indagar: após o falecimento, terão os legitimados — familiares ou representantes legais — o direito de representação para intervir e resguardar a privacidade e dignidade desses dados? Essa questão envolve uma tensão entre a vontade do titular em vida e a tutela póstuma dos dados, que exige consideração cuidadosa dos direitos de personalidade e da dignidade da memória.

Por outro lado, o cenário se torna ainda mais complexo quando se trata de titulares que não manifestaram consentimento prévio quanto ao uso de seus dados após a morte. Nesse caso, recai sobre a PRF a responsabilidade de determinar a condução do tratamento desses dados de maneira que respeite tanto a memória do titular quanto os interesses dos legitimados, levando em conta a ausência de consentimento explícito. Aqui, a questão da transparência se torna fundamental: como a PRF comunicará o tratamento desses dados aos legitimados? E, em que medida esses representantes poderão intervir ou mesmo se opor ao uso dos dados, na ausência de uma manifestação direta do titular?

Portanto, a ausência de diretrizes específicas da ANPD quanto à comunicação e ao consentimento post mortem cria um espaço de incerteza que desafia a PRF a agir de maneira prudente e ética, evitando interpretações discricionárias que possam gerar violação indireta dos direitos de personalidade, mesmo após a morte.

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1 Disponível aqui.

2 CUPIS, Adriano de. Os Direitos da Personalidade. São Paulo: Quorum, 2008.

3 DONEDA, Danilo Cesar M. Da Privacidade à Proteção de Dados Pessoais: elementos da formação da Lei Geral de Proteção de Dados. 2ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. (e-book).

4 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método II. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 2004.

5 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

6 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica E(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2014.

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Coordenação

Cintia Rosa Pereira de Lima, professora de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP Ribeirão Preto – FDRP. Doutora em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP com estágio na Ottawa University (Canadá) com bolsa CAPES - PDEE - Doutorado Sanduíche e livre-docente em Direito Civil Existencial e Patrimonial pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (USP). Pó-doutora em Direito Civil na Università degli Studi di Camerino (Itália) com fomento FAPESP e CAPES. Líder e Coordenadora dos Grupos de Pesquisa "Tutela Jurídica dos Dados Pessoais dos Usuários da Internet" e "Observatório do Marco Civil da Internet", cadastrados no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq e do Grupo de Pesquisa "Tech Law" do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP). Presidente do Instituto Avançado de Proteção de Dados – IAPD - www.iapd.org.br. Associada Titular do IBERC - Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil. Membro fundador do IBDCONT - Instituto Brasileiro de Direito Contratual. Advogada.

Cristina Godoy Bernardo de Oliveira, professora doutora da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto – Universidade de São Paulo desde 2011. Academic Visitor da Faculty of Law of the University of Oxford (2015-2016). Pós-doutora pela Université Paris I Panthéon-Sorbonne (2014-2015). Doutora em Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da USP (2011). Graduada pela Faculdade de Direito da USP (2006). Líder do Grupo de Pesquisa Direito, Ética e Inteligência Artificial da USP – CNPq. Coordenadora do Grupo de Pesquisa "Tech Law" do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP). Membro fundador do Instituto Avançado de Proteção de Dados – IAPD.

Evandro Eduardo Seron Ruiz, professor Associado do Departamento de Computação e Matemática, FFCLRP - USP, onde é docente em dedicação exclusiva. Atua também como orientador no Programa de Pós-graduação em Computação Aplicada do DCM-USP. Bacharel em Ciências de Computação pela USP, mestre pela Faculdade de Engenharia Elétrica da UNICAMP, Ph.D. em Electronic Engineering pela University of Kent at Canterbury, Grã-Bretanha, professor lLivre-docente pela USP e pós-Doc pela Columbia University, NYC. Coordenador do Grupo de Pesquisa "Tech Law" do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP). Membro fundador do Instituto Avançado de Proteção de Dados – IAPD.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Newton De Lucca, professor Titular da Faculdade de Direito da USP. Desembargador Federal, presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (biênio 2012/2014). Membro da Academia Paulista de Direito. Membro da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Membro da Academia Paulista dos Magistrados. Vice-presidente do Instituto Avançado de Proteção de Dados.