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Jurimetria e análise de dados em matéria de saúde pública

Nesse breve ensaio, é analisado o papel da jurimetria e da análise quantitativa de dados em matéria de saúde pública, especialmente para a identificação de padrões e tendências nas decisões judiciais e para avaliar a eficácia das políticas de saúde, antecipar desafios legais e melhorar a alocação de recursos.

14/6/2024

A judicialização da saúde pública é um fenômeno cada vez mais presente em diversos países, incluindo o Brasil, caracterizado pelo aumento de demandas judiciais como meio para garantir o acesso a tratamentos médicos e medicamentos. Essa tendência reflete desafios significativos para o sistema de saúde, desde a alocação de recursos até a equidade no acesso aos serviços de saúde. No entanto, diante desses desafios, emergem oportunidades para explorar novas ferramentas e metodologias que possam contribuir para uma gestão mais eficiente e justa do sistema de saúde. Uma dessas ferramentas é a jurimetria, uma abordagem que emprega métodos estatísticos e analíticos para examinar dados legais e judiciais.

Este resumo expandido visa explorar como a jurimetria pode ser aplicada para compreender melhor a judicialização da saúde e contribuir para soluções proativas. Analisaremos como essa metodologia pode ajudar na previsão de tendências, otimização de recursos e formulação de políticas públicas mais eficazes. Através da análise de dados e padrões em litígios de saúde, procuraremos identificar os principais desafios e oportunidades para melhorar a resposta do sistema de saúde às necessidades dos cidadãos, promovendo um acesso mais equitativo e sustentável à saúde pública.

A jurimetria é uma abordagem que aplica métodos quantitativos e estatísticos ao direito, visando a análise de leis, decisões judiciais e padrões de comportamento legal. Essa prática é especialmente pertinente à tomada de decisões baseada em dados, uma vez que oferece uma base empírica sólida para entender tendências, prever resultados e otimizar estratégias jurídicas. Sua origem remonta ao artigo seminal de Lee Loevinger1, que a definia como a investigação científica de problemas jurídicos, e sempre foi analisada do ponto de vista conceitual, gerando distinção, originalmente, com a ideia de “cibernética jurídica”2 (ou justibernética) – mais ampla e, tecnicamente, mais apropriada para tais estudos –, a partir dos escritos de Mario G. Losano.

Uma das vantagens da jurimetria é propiciar maior previsibilidade de decisões judiciais, pois permite analisar grandes volumes de decisões judiciais para identificar padrões e tendências. Isso pode ajudar advogados e clientes a preverem os resultados possíveis de seus casos com base em dados históricos, aumentando a precisão nas expectativas e estratégias.

Além disso, contribui fortemente na análise de riscos, uma vez que, ao quantificar os riscos associados a diferentes estratégias legais, a jurimetria fornece uma ferramenta valiosa para gestores e advogados. Essa capacidade de quantificar riscos ajuda na tomada de decisões mais informadas e na escolha de abordagens que maximizem as chances de sucesso. Não se pode deixar de mencionar, também, seu valor para a otimização de recursos: com o uso de dados jurimétricos, é possível alocar recursos de forma mais eficiente3. Por exemplo, identificar quais tipos de casos têm maior probabilidade de serem resolvidos por acordo pode economizar tempo e recursos que seriam gastos em litígios prolongados.

Na seara pública, o desenvolvimento de políticas públicas permite que governos e órgãos reguladores usem a jurimetria para entender o impacto das leis existentes e prever as consequências de novas legislações. Isso permite uma formulação de políticas mais fundamentada e eficaz. Por conseguinte, tem-se o fomento à inovação pela análise de dados jurídicos. Por exemplo, a criação de ferramentas automatizadas de compliance que ajudam sociedades empresárias a permanecerem em conformidade com as regulamentações vigentes.

Na mesma toada, o incremento da transparência e da justiça pela utilização de dados estatísticos no direito também pode contribuir para uma maior transparência e justiça. Ao revelar tendências ocultas, como potenciais vieses em decisões judiciais, a jurimetria pode apoiar esforços para tornar o sistema jurídico mais equilibrado. Isso ainda conduz à personalização de serviços jurídicos, posto que, com o auxílio de análises detalhadas, é possível oferecer serviços mais personalizados e alinhados às necessidades específicas de cada cliente, baseando-se em insights derivados de dados4.

A judicialização da saúde pública tem sido um tema recorrente no debate sobre a eficácia e a equidade dos sistemas de saúde. Este fenômeno, que se caracteriza pelo crescente recurso ao sistema judicial por cidadãos que buscam garantir o acesso a tratamentos e medicamentos frequentemente não disponíveis através dos canais regulares de saúde, apresenta diversos desafios. No entanto, a jurimetria, com sua capacidade de aplicar análises estatísticas ao direito, oferece oportunidades significativas para compreender e gerenciar melhor esta tendência5.

Primeiramente, é importante entender que a judicialização pode refletir falhas sistêmicas na saúde pública, como a inadequação de políticas ou a insuficiência de recursos. A jurimetria permite uma análise detalhada dessas questões ao quantificar a frequência, os tipos e os resultados das ações judiciais relacionadas à saúde. Com esses dados, é possível identificar padrões e lacunas nas políticas de saúde, orientando reformas mais efetivas e baseadas em evidências. Por exemplo, se uma análise jurimétrica revela um alto número de litígios sobre um determinado medicamento ou tratamento, isso pode indicar a necessidade de revisão nos protocolos de disponibilidade e distribuição desses recursos.

A análise dos sites do TRF2 e do CNJ sobre a judicialização da saúde revela dados e iniciativas relevantes que complementam a discussão sobre a utilização da jurimetria nesse contexto. O CNJ, por exemplo, aponta que entre 2015 e 2020, mais de 2,5 milhões de processos relacionados à saúde foram registrados, com destaque para questões como desabastecimento de medicamentos e falta de especialistas6. Esses dados, monitorados por painéis interativos disponibilizados pelo CNJ7, não apenas quantificam o problema, mas também fornecem insights para políticas judiciais e de saúde pública mais eficazes8.

No Estado de Minas Gerais, a Secretaria de Saúde disponibiliza informações sobre a judicialização, destacando a colaboração entre o judiciário e a gestão de saúde para abordar essas questões proativamente, embora detalhes específicos sobre jurimetria não tenham sido encontrados durante a pesquisa9.

Estas informações ressaltam a importância da jurimetria como ferramenta para analisar, prever e responder a tendências na judicialização da saúde, promovendo uma gestão mais informada e eficiente no acesso à saúde pública.

Além disso, a jurimetria pode contribuir para uma alocação de recursos mais racional e justa. Ao identificar quais demandas são mais frequentemente submetidas ao judiciário, os gestores de saúde podem priorizar essas áreas, otimizando o uso de recursos limitados e reduzindo a necessidade de litígios. Isso não apenas melhora a eficiência do sistema de saúde como também garante uma resposta mais equitativa às necessidades dos pacientes.

Outra oportunidade que a jurimetria oferece é a capacidade de prever tendências futuras na judicialização da saúde. Com modelos preditivos, é possível antecipar quais questões podem se tornar focos de litígio, permitindo aos formuladores de políticas e administradores de saúde intervir proativamente10. Isso pode incluir o aprimoramento de programas de saúde ou a alteração de regulamentações para abordar essas questões antes que elas se transformem em problemas judiciais.

Ademais, a jurimetria ajuda a promover uma maior transparência e responsabilidade no sistema de saúde. Ao tornar públicas as estatísticas sobre a judicialização, os stakeholders são incentivados a dialogar e colaborar na busca por soluções. Isso pode fortalecer a confiança no sistema de saúde, promovendo uma maior cooperação entre os setores público e privado e entre os próprios usuários do sistema.

Por fim, a jurimetria pode servir como uma ferramenta para a avaliação contínua da eficácia das políticas de saúde. Ao monitorar como as intervenções legais e políticas impactam a judicialização ao longo do tempo, pode-se ajustar as estratégias para melhor atender à população, garantindo um sistema de saúde mais resiliente e adaptativo.

Portanto, embora a judicialização da saúde pública apresente desafios, a jurimetria oferece uma série de oportunidades para transformar este cenário. Ao utilizar dados e estatísticas para fundamentar decisões, é possível não apenas gerir mais eficientemente os recursos, mas também promover um sistema de saúde mais justo e acessível.

À luz do que foi discutido, fica evidente que a jurimetria apresenta um potencial significativo para transformar a maneira como o fenômeno da judicialização da saúde é abordado e gerenciado. Ao empregar análises estatísticas e metodologias quantitativas, essa ferramenta não apenas proporciona uma visão mais profunda das tendências e padrões em litígios de saúde, mas também oferece um meio para antecipar desafios e otimizar a alocação de recursos dentro do sistema de saúde.

A aplicação da jurimetria na saúde pública pode levar a uma gestão mais informada e estratégica, reduzindo a necessidade de intervenção judicial e melhorando o acesso a tratamentos essenciais. Além disso, ao identificar as causas raízes e os pontos críticos da judicialização, políticas públicas podem ser adaptadas para tratar essas questões de forma proativa, resultando em um sistema de saúde mais equitativo e eficiente.

Portanto, enquanto a judicialização da saúde continua a ser um desafio, a jurimetria oferece uma abordagem promissora para enfrentar essa questão complexa. É crucial que gestores de saúde, formuladores de políticas e profissionais jurídicos explorem e integrem essa ferramenta em suas práticas, visando um futuro no qual o acesso à saúde seja garantido de maneira mais justa e eficaz para todos.

__________

1 LOEVINGER, Lee. Jurimetrics: The Next Step Forward. Minnesota Law Review, Minneapolis, v. 33, n. 5, p. 455-493, abr. 1949.

2 A crítica é de Losano: “È forse opportune, a questo punto, riservare la denominazione di giurimetria ad una fase storicamente ben delimitada della ricerca giuridica e tentare invece una classificazione che tenga conto delle esperienze compiute negli ultimi anni (...). Per l’intera disciplina propongo il nome ‘giucibernetica’. Il modelo è evidente: ‘giusnaturalismo’, ‘giuspositivismo’ (e gli aggettivi ‘giuspubblicistico’, ‘giusprivatistico’ e ‘giusfilosofico’). (...) I due termini sono quindi parimenti discutibili dal punto di vista del purismo filologico, ma almeno ‘giuscibernetica’ copre per intero il vasto campo di ricerche oggi in corso”. LOSANO, Mario G. Giuscibernetica: macchine e modelli cibernetici nel Diritto.Turim: Eunaudi, 1969. p. 106-107.

3 NUNES, Marcelo Guedes. Jurimetria: como a estatística pode reinventar o direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.

4 PROVOST, Foster; FAWCETT, Tom. Data Science for Business: What You Need to Know About Data Mining and Data-Analytic Thinking. Sebastopol: O’Reilly, 2013.

5 QAMAR, Usman; RAZA, Muhammad Summair. Data science concepts and techniques with applications. 2. ed. Cham: Springer, 2023.

6 TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 2ª REGIÃO. CNJ: Judicialização da saúde: pesquisa aponta demandas mais recorrentes. Disponível aqui. Acesso em: 30 abr. 2024.

7 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Dados processuais de saúde podem ser monitorados em painel do CNJ. Disponível aqui. Acesso em: 30 abr. 2024.

8 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Dados processuais de saúde podem ser monitorados em painel do CNJ. Disponível aqui. Acesso em: 30 abr. 2024.

9 MINAS GERAIS. Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais. Judicialização. Disponível aqui. Acesso em: 30 abr. 2024.

10 QAMAR, Usman; RAZA, Muhammad Summair. Data science concepts and techniques with applications. 2. ed. Cham: Springer, 2023.

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Coordenação

Cintia Rosa Pereira de Lima, professora de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP Ribeirão Preto – FDRP. Doutora em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP com estágio na Ottawa University (Canadá) com bolsa CAPES - PDEE - Doutorado Sanduíche e livre-docente em Direito Civil Existencial e Patrimonial pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (USP). Pó-doutora em Direito Civil na Università degli Studi di Camerino (Itália) com fomento FAPESP e CAPES. Líder e Coordenadora dos Grupos de Pesquisa "Tutela Jurídica dos Dados Pessoais dos Usuários da Internet" e "Observatório do Marco Civil da Internet", cadastrados no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq e do Grupo de Pesquisa "Tech Law" do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP). Presidente do Instituto Avançado de Proteção de Dados – IAPD - www.iapd.org.br. Associada Titular do IBERC - Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil. Membro fundador do IBDCONT - Instituto Brasileiro de Direito Contratual. Advogada.

Cristina Godoy Bernardo de Oliveira, professora doutora da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto – Universidade de São Paulo desde 2011. Academic Visitor da Faculty of Law of the University of Oxford (2015-2016). Pós-doutora pela Université Paris I Panthéon-Sorbonne (2014-2015). Doutora em Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da USP (2011). Graduada pela Faculdade de Direito da USP (2006). Líder do Grupo de Pesquisa Direito, Ética e Inteligência Artificial da USP – CNPq. Coordenadora do Grupo de Pesquisa "Tech Law" do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP). Membro fundador do Instituto Avançado de Proteção de Dados – IAPD.

Evandro Eduardo Seron Ruiz, professor Associado do Departamento de Computação e Matemática, FFCLRP - USP, onde é docente em dedicação exclusiva. Atua também como orientador no Programa de Pós-graduação em Computação Aplicada do DCM-USP. Bacharel em Ciências de Computação pela USP, mestre pela Faculdade de Engenharia Elétrica da UNICAMP, Ph.D. em Electronic Engineering pela University of Kent at Canterbury, Grã-Bretanha, professor lLivre-docente pela USP e pós-Doc pela Columbia University, NYC. Coordenador do Grupo de Pesquisa "Tech Law" do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP). Membro fundador do Instituto Avançado de Proteção de Dados – IAPD.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Newton De Lucca, professor Titular da Faculdade de Direito da USP. Desembargador Federal, presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (biênio 2012/2014). Membro da Academia Paulista de Direito. Membro da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Membro da Academia Paulista dos Magistrados. Vice-presidente do Instituto Avançado de Proteção de Dados.