Discorrer sobre a importância da Inteligência Artificial (IA), na atualidade, há de soar como mero truísmo, a menos que se acrescente algo - ou, pelo menos, se tente acrescentar, como pretendo fazê-lo, neste artigo - , tal como ocorreu na oportuna contribuição de Dom Odilo Pedro Scherer, Cardeal-Arcebispo de São Paulo a esse Jornal, com o artigo Inteligência artificial e paz, na recente edição do dia 13/2.
Destacou Sua Eminência, com propriedade, que "a dimensão ética está presente em toda atividade humana, ligada intimamente às decisões e intenções de quem produz e de quem aplica e usa os conhecimentos conquistados", acrescentando não ser "diferente com as diferentes formas e usos da inteligência artificial, capaz de imitar, de reproduzir e até criar ações típicas do homem."
Assim, muito mais do que enaltecer os prodígios triunfantes da ciência e das inquestionáveis conquistas das inovações tecnológicas, nosso eminente cardeal põe em relevo a inafastável questão ética, que deve pairar acima, quer das pequenas vaidades pessoais, que parecem medrar cada vez mais na superficialidade cosmética da sociedade contemporânea; quer da visível discriminação algorítmica promovida pelos detentores do poder tecnológico; quer, em última análise, dos grandes interesses privados de dominação e controle.
Tornou-se uma desculpa cada vez mais difundida diluir-se a responsabilidade por procedimentos inadequados às falhas do "sistema", como se este fosse o culpado por todas as violações dos direitos básicos do usuário ou do consumidor. Essa patética tentativa de atribuir culpabilidade aos sistemas autônomos, feita pelos responsáveis por falhas, erros e danos causados a terceiros, não passa de notório arremedo.
Como já assinalei no passado, as expressões ética empresarial, ética da empresa, ou, ainda, ética do mercado têm recorrentemente sido usadas por evidente antropomorfismo. Rigorosamente falando, tal emprego é equivocado, pois somente os homens possuem consciência moral e não as instituições por eles constituídas. As exigências éticas decorrem dessa consciência moral, que vem a ser exclusiva do ser humano.
Vem-me à mente a seguinte passagem do saudoso Prof. Miguel Reale a respeito das insuficiências da ciência: "O problema do valor do homem como ser que age, ou melhor, como o único ser que se conduz, põe-se de maneira tal que a ciência se mostra incapaz de resolvê-lo. Este problema que a ciência exige, mas não resolve, chama-se problema ético, e marca momento culminante em toda verdadeira Filosofia, que não pode deixar de exercer uma função teleológica, no sentido do aperfeiçoamento moral da humanidade e na determinação essencial do valor do bem, quer para o indivíduo, quer para a sociedade."
Esse problema ético, a que se referiu o grande jurisconsulto, é retomado agora, tanto por Dom Odilo Scherer, como pelo Papa Francisco, citado pelo nosso Cardeal, sob o prisma da necessária promoção da paz mundial. A história da humanidade já pôde mostrar ao mundo que grandes invenções do gênero humano foram colocadas a serviço da "banalização do mal", de que nos falava Hannah Arendt.
Assim, os receios do Santo Padre são absolutamente fundados e devem ser a preocupação de todos nós: no estado de acrasia ética em que estamos mergulhados neste século XXI, caminhando para trás feito caranguejos (como nos mostrou Umberto Eco, em admirável obra), como acreditar que a inteligência artificial e a máquina de guerra construída pelas grandes potências nucleares não serão usadas contra a dignidade da pessoa humana?...
Mesmo em Davos, cidade suíça onde se realiza o Fórum Econômico Mundial, no qual CEOs de grandes empresas, ricaços globalistas e até mesmo Chefes de Estado se reúnem anualmente para fingir que discutem os destinos do mundo - ou para dizer, por exemplo, como o fez a presidente da Comissão Europeia, Ursula Von Der Leyen, que "a maior preocupação para os próximos dois anos” não é o conflito ou o clima, mas sim a “desinformação e a informação incorreta" -, parece que o fascínio pelos encantos da IA, tão decantados no Fórum do ano passado, foi substituído, neste ano, pelas preocupações com os estragos que essa tecnologia poderá causar à humanidade, se não houver adequada e responsável governança, como mostrou a edição do Estadão de 21/1 deste ano.
Em suma, todos estão sintonizados com os possíveis problemas que a IA poderá trazer, valendo lembrar o artigo de José Pastore, O futuro do trabalho com a IA (Estadão de 25/1), o de Celso Ming, IA e destruição de empregos (Estadão de 26/1) e, ainda, Temor sobre mau uso da IA alcança as finanças e até a Justiça, matéria da edição do Estadão de 28/1.
Concluo estas singelíssimas considerações, lembrando, como já se disse algures, que o século XXI deverá ser o "Século da Ética" ou, então, poderá ser o último da história da humanidade.