Aprovado no Senado e em tramitação na Câmara dos Deputados há 3 anos, o PL 2630/20, para alguns conhecido como PL das Fake News, para outros como PL da Censura, pautou o debate público recente ao ter aprovada a urgência em sua tramitação e, posteriormente, com forte ação por parte das “Big Techs”, grandes companhias de tecnologia, sobretudo do Google, mas também da oposição, no tensionamento da discussão, ser retirado da pauta de votação sob pedido do relator Orlando Silva (PCdoB-SP), em vistas a alta possibilidade de rejeição no plenário.
O tema é complexo e há de ser enfrentado pelo Estado. No retrovisor o 8 de janeiro, os ataques às escolas e a própria reação das “Big Techs” na influência da formação de vontade do legislativo do País são exemplos de eventos nos quais as plataformas virtuais se tornaram ambiente profícuo para concretização e coordenação de ações de cunho trágico e criminoso para o Estado Democrático de Direito. No presente esforço, busca-se explorar os impactos e as entranhas dessa complexidade.
Vale destacar, como referência ao novo contexto, o abandono das teorias e crenças de “neutralidade das redes” sobretudo com um maior entendimento sobre o papel dos algoritmos interferindo no oferecimento de conteúdo não só nas redes sociais, com a possibilidade de impulsionamento de informações de fomento ao discurso de ódio e desinformação, mas também mecanismos de busca, como o próprio Google.1
Professor da Universidade de Frankfurt e colaborador do Legislativo no tema, Ricardo Campos2 demonstra que o PL em questão em muito se assemelha com iniciativas legislativas de outros lugares do mundo, sobretudo da União Europeia, em um sentido de responsabilização administrativa das plataformas, risco sistêmico e dever de cuidado, mas também da Austrália, por exemplo, no que tange ao jornalismo e sua remuneração a ser negociada com plataformas digitais mediante parâmetros gerais que desaguem em critérios concretos. Afirma, ainda, que o Brasil inovaria em regular aplicativos de mensagens privadas, o que não existe nas outras regulações até então. Há de se dizer que, legalmente, exige-se decisão judicial para remoção de conteúdo, por exemplo, com o artigo 19 do Marco Civil da Internet, o que se mostra defasado e ineficaz na dinâmica da desinformação e, nessa esteira, verifica-se a importante do PL em discussão, já que se procura estruturar um regime de responsabilização.
Ainda, o PL busca definir uma lista de conteúdo ilícito em vista dos quais um dever de cuidado recairia sobre as plataformas, exigindo-se ação de ofício, como por exemplo na violação a direitos de crianças e adolescentes, e um procedimento de notificação para as demais violações para que se possibilite a remoção dos conteúdos a partir da devida justificativa, resguardando-se ao máximo o devido processo legal, a liberdade de expressão e a transparência.
Central para a retirada de pauta do PL ressaltamos duas questões, a falta de consenso sobre o limite da imunidade material parlamentar, isto é, como se daria uma possível restrição ao discurso de um parlamentar tendo em vista essa regulação e, também, a criação de agência independente, como forma de controle externo, em um sentido, pode-se dizer, de agência reguladora, na esteira desse projeto, o que, segundo especialistas3, padeceria de vício de iniciativa e poderia colocar em risco a autonomia da regulação.
Também central para o revés foi a ação das Big Techs na esteira do debate político. Estudo4 do Laboratório de Estudos de Internet e Mídias Sociais da UFRJ demonstrou ações vigorosas de plataformas como Google, Meta, Spotify e Brasil Paralelo que, de maneira opaca, com burla aos termos de uso, manipularam o mercado de publicidades nas vésperas da votação, ressaltando-se a veiculação de anúncios do Google no spotify contra o PL, o que fere os termos de uso do Spotify e o anúncio fixado de texto contra a iniciativa na página do buscador, afirmando que a normativa iria “aumentar a confusão entre o que é verdade e mentira no Brasil”, além de rotulá-la como PL da Censura e privilegiar notícias, textos e anúncios nesse sentido, remetendo a fontes hiper partidárias e fomentando, por si mesmo anúncios em outras plataformas, como o Meta.
Afirma-se que o impacto negativo do PL para essas plataformas, para além da responsabilização e do dever de cuidado enquanto geradores de ônus, seria a possível redução dos valores de publicidade digital, tendo em vista a impossibilidade atual de se estimar o quanto anúncios criminosos, opacos e irregulares movimentam esse mercado.
Diante disso, o Ministro Alexandre de Moraes, na esteira do inquérito 4.7815 do Distrito Federal, em polêmica decisão, determinou, de ofício, a colheita de depoimentos dos presidentes das big techs Google, Meta e Spotify e do canal Brasil Paralelo sobre as medidas tomadas, além da retirada das informações, textos, anúncios e impulsionamentos a partir do Google contra a proposta, ressaltando a possível configuração de abuso de poder econômico e tentativa de impactar de maneira ilegal e imoral a opinião pública e dos parlamentares, com indução à manutenção “condutas criminosas praticadas pelas milícias digitais investigadas (...)”.
A decisão mais uma vez suscitou polêmica, questionando-se o ativismo por parte do Ministro em lidar com a situação de ofício e imediatamente, além de acusações, de senadores como Flávio Bolsonaro6, de que a medida interfere no processo legislativo, sendo um ataque à separação dos Poderes.
Aponta-se, no entanto, que a problemática será enfrentada pelo Estado, tendo em vista os impactos claros que o novo contexto fático de uma economia de dados e da digitalização de uma esfera pública ou, pelo menos, da virtualização da opinião pública com forte protagonismo das plataformas sociais como ambientes de debate e impulsionamento, de fluxo de informações e sobretudo de dados. A influência dessas plataformas sobre o debate público brasileiro não pode se dar de maneira abusiva, com a captura da discussão pública por meio desse lobby, através da manipulação da publicidade digital e afins.
Esse enfrentamento não realizado pelo Legislativo no agora gera, inevitavelmente, protagonismo do Judiciário para resolver questões concretas de efetivação de direitos fundamentais com a utilização da hermenêutica constitucional, ressaltando-se o provável julgamento da inconstitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil.7 No mesmo sentido, o CADE e a SENACON também determinaram ações para lidar com o tema.
Rodrigo Pacheco, presidente do Senado Federal, casa em que o PL 2360 foi aprovado, inclusive, apresentou, dois dias depois da retirada de pauta em questão, um projeto de lei para regulamentação da inteligência artificial, o PL 2.338/23.
Consequência de amplo debate e de um relatório apresentado por uma comissão de juristas no Senado, a proposta guarda intrínseca relação com o PL das Fake News, prevendo necessidade de informação prévia sobre sistemas de inteligência artificial, explicações sobre suas decisões, intervenção humana, vedação à discriminação além de listar sistemas de alto risco em que o acompanhamento deve ser mais próximo, com governança, transparência e isonomia. No mesmo sentido, trata também de responsabilização civil.
De um lado ou de outro, conclui-se que o contexto factual, marcado pela economia de dados e pelo fluxo informacional incessante e intenso, imprescinde de uma resposta do Direito no sentido de enfrentar a realidade dos fatos concretos em respeito ao ordenamento jurídico pátrio e aos direitos que nele estão positivados. Seja por meio do Legislativo, do Judiciário e até do Executivo, o Estado brasileiro, assim como os Estados que se nomeiam Estados Democráticos de Direito devem, cedo ou tarde, lidar com a regulação, seja da desinformação, seja da inteligência artificial, no sentido de evitar tanto a captura das instituições do Estado pelas Big Techs quanto de proteger direitos fundamentais.
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1 BINENBOJM, Gustavo. Regulação de redes sociais: entre remédios e venenos. In: JOTA. Publicado em 02 de maio de 2023. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/publicistas/regulacao-de-redes-sociais-entre-remedios-e-venenos-02052023 . Acesso em: 08 de maio de 2023.
3 BINENBOJM, Gustavo. Regulação de redes sociais: entre remédios e venenos. In: JOTA. Publicado em 02 de maio de 2023. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/publicistas/regulacao-de-redes-sociais-entre-remedios-e-venenos-02052023. Acesso em: 08 de maio de 2023.
4 NETLAB. A Guerra das Plataformas Contra o PL 2630. Abril, 2023. Disponível em: https://uploads.strikinglycdn.com/files/2cab203d-e44d-423e-b4e9-2a13cf44432e/A%20guerra%20das%20plataformas%20contra%20o%20PL%202630%20-%20NetLab%20UFRJ,%20Abril%202023.pdf. Acesso em: 08 de maio de 2023.
5 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inquérito 4.781 Distrito Federal. Relator Min. Alexandre de Moraes. Disponível em: https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/INQ4781GOOGLE.pdf . Acesso em: 08 de maio de 2023.
6 AGÊNCIA SENADO. Ação de Moraes contra plataformas digitais provoca debate entre senadores. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2023/05/02/pl-das-fake-news-acao-de-moraes-contra-plataformas-digitais-provoca-debate . Acesso em: 02 de maio de 2023.
7 LEONARDO, Rodrigo Xavier. Controle de constitucionalidade do Marco Civil da Internet em audiência no STF. Consultor Jurídico, 3 de abril de 2023. Disponível em: . Acesso em: 08 de maio de 2023.