Migalhas de IA e Proteção de Dados

A notável contribuição feminina à proteção de dados

É evidente o quanto a contribuição de cientistas mulheres ao sistema de proteção de dados que se conhece atualmente.

10/3/2023

A ciência do Direito tem se desenvolvido substancialmente a partir da relevante contribuição feminina em diversas áreas. O mesmo pode ser observado no desenrolar dos sistemas de proteção de dados pessoais no Brasil e em outros países: a notável contribuição feminina à matéria. Portanto, a coluna Migalhas de Proteção de Dados desta semana dedica uma merecida homenagem a todas as mulheres a partir da análise de algumas representantes que tiveram um papel importante à disciplina em torno da proteção de dados.

Para além de um direito à proteção de dados pessoais, Ann Cavoukian, que foi Information e Privacy Commissioner de Ontário, Canadá, realçou sete princípios fundamentais para a construção de uma salvaguarda da privacidade e proteção dos dados pessoais, desde a concepção dos projetos:

(i) "Proactive not reactive, preventive not remedial" – deve-se antever os riscos, a fim de preveni-los;

(ii) "Privacy as the default setting" – privacidade incorporada como padrão;

(iii) "Privacy embedded by design" – privacidade incorporada ao design;

(iv) "Full functionality – positive-sum, not zero-sum" – funcionalidade completa do produto ou serviço com a configuração de privacidade padrão, ou seja, não se deve dispor integralmente as funcionalidades apenas para aqueles que alterarem a política de privacidade;

(v) "End-to-end security – full lifecycle protection" – proteção durante todo o ciclo de vida;

(vi)  "Visibility and transparency – keep it open" – visibilidade e transparência;

(vii) "Respect for user privacy – keep it user-centric" – respeito pela privacidade do titular.1

Já tivemos oportunidade de destacar a distinção entre o direito à privacidade e o direito à proteção de dados.2 Sobre tal distinção, Giusella Finocchiaro3 destaca que determinado dado pessoal, ainda que não seja privado, é objeto de tutela pela legislação sobre proteção de dados pessoais. Portanto, conclui que a definição de dado pessoal não faz referência direta nem indireta à privacidade.

Todavia tais direitos se tangenciam em diversas situações como a possibilidade de o titular de dados exercer o direito à oposição do seu tratamento de dados pessoais como uma forma de assegurar seu direito à privacidade. Este direito é estudado incansavelmente no Direito e passou por muitas transformações dado o desenvolvimento dos meios de comunicação.

Neste sentido, Helen Nissenbaum4 desenvolveu uma análise muito interessante sobre como se interpretar a “privacidade” diante de distintos contextos. Desta forma, para a construção do que se entende por privacidade, deve-se levar em consideração as expectativas de cada pessoa nos mais distintos contextos. Realmente, com a exposição exagerada viabilizada pelas redes sociais, por exemplo, seria impraticável compreender a privacidade apenas como o “direito de ser deixado só”.

Ademais, a economia informacional apresentou muitos desafios ao enforcement das leis de proteção de dados, o que está sendo ainda mais difícil diante das tecnologias com base em Inteligência Artificial. Por isso, Shoshana Zuboff5 afirma que os gigantes do capitalismo de vigilância devem intensificar a competição para continuar lucrando no contexto dos novos mercados tendo em vista o comportamento futuro diante das novas tecnologias. Isto porque mesmo os processos mais sofisticados de conversão de comportamentos em lucro dependem da habilidade de prever o futuro com precisão, dependendo da matéria-prima disponível, que são as informações pessoais.

Na América Latina, a representação feminina na construção científica da proteção de dados pessoais também é evidente. Esta disciplina se conecta intimamente com o Direito do Consumidor, assim, a doutrina consumerista, aqui representada por Claudia Lima Marques6 servirá de base para o desenvolvimento da proteção de dados no Brasil.

A jurista brasileira destaca a vulnerabilidade digital dos consumidores, com ênfase no comércio eletrônico, publicidade digital e na utilização indevida de dados para a oferta de crédito, que pode levar os consumidores ao superendividamento. De fato, a proteção de dados foi levada a efeito no Projeto de Lei que tramitou desde 2012 e que se transformou na lei 14.871/2021 (Lei do Superendividamento). 

A própria Autoridade Nacional de Proteção de Dados – ANPD conta com a participação de duas mulheres combatentes no Conselho Diretor, Dra. Nairane Farias Rabelo Leitão e Dra. Miriam Wimmer. Esta atuação firme e profícua demonstra que o protagonismo feminino em matéria de proteção de dados pessoais foi fundamental para a construção do sólido sistema que hoje serve à construção deste direito e garantia fundamental.

O Conselho Nacional de Proteção de Dados e Privacidade da ANPD é composto por importantes Conselheiras cuja atuação nas mais diversas frentes, seja no setor público seja no setor privado, confirmam uma vez mais o protagonismo feminino na área.

São membros titulares do Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais: Michele Nogueira Lima; Laura Schertel Ferreira Mendes; Natasha Torres Gil Nunes; Ana Paula Martins Bialer; Annette Martinelli de Mattos Pereira; Patrícia Peck Garrido Pinheiro e Débora Sirotheau Siqueira Rodrigues.

Portanto, na coluna Migalhas de Proteção de Dados desta semana, em que se comemorou o Dia da Mulher no dia 08 de março, não podíamos deixar de prestar merecidas homenagens a estas cientistas, juristas, doutrinadoras, advogadas, diretoras e conselheiras. Claro que deveríamos mencionar nominalmente cada uma que tem atuado brilhantemente na área, mas como são muitas, esta coluna ficaria demasiadamente longa. E se quiséssemos mencionar todas as mulheres importantes para a proteção de dados, correríamos o risco de pecar deixando de mencionar algumas delas.

Em suma, este texto pretende demonstrar o protagonismo feminino em matéria de proteção de dados pessoais ao destacar a atuação de algumas doutrinadoras da área, estendendo tal homenagem a todas as mulheres.

__________

1 CAVOUKIAN, Ann. Privacy by Design. The 7 Foundational Principles. Toronto: Information and Privacy Commissioner of Ontario, 2011, pp. 01-02. Disponível aqui. Acesso em: 07 mar. 2023.

2 LIMA, Cíntia Rosa Pereira de. Políticas de proteção de dados e privacidade e o mito do consentimento. In: Migalhas de Proteção de Dados, sexta-feira, 15 de janeiro de 2021, disponível aqui. Acesso em: 07 mar. 2023.

3 FINOCCHIARO, Giusella. Privacy e protezione dei dati personali: disciplina e strumenti operativi. Bologna: Zanichelli, 2012. p. 36 - 37.

4 NISSENBAUM, Helen. Privacy in Context. Technology, Policy, and the Integrity of Social Life. Stanford, EUA: Stanford University Press, 2010, passim.

5 ZUBOFF, Shoshana. The Age of Surveillance Capitalism: the fight for a human future at the new frontier of power. Nova York: Public Affairs, 2019. p. 198.

6 MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.

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Coordenação

Cintia Rosa Pereira de Lima, professora de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP Ribeirão Preto – FDRP. Doutora em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP com estágio na Ottawa University (Canadá) com bolsa CAPES - PDEE - Doutorado Sanduíche e livre-docente em Direito Civil Existencial e Patrimonial pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (USP). Pó-doutora em Direito Civil na Università degli Studi di Camerino (Itália) com fomento FAPESP e CAPES. Líder e Coordenadora dos Grupos de Pesquisa "Tutela Jurídica dos Dados Pessoais dos Usuários da Internet" e "Observatório do Marco Civil da Internet", cadastrados no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq e do Grupo de Pesquisa "Tech Law" do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP). Presidente do Instituto Avançado de Proteção de Dados – IAPD - www.iapd.org.br. Associada Titular do IBERC - Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil. Membro fundador do IBDCONT - Instituto Brasileiro de Direito Contratual. Advogada.

Cristina Godoy Bernardo de Oliveira, professora doutora da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto – Universidade de São Paulo desde 2011. Academic Visitor da Faculty of Law of the University of Oxford (2015-2016). Pós-doutora pela Université Paris I Panthéon-Sorbonne (2014-2015). Doutora em Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da USP (2011). Graduada pela Faculdade de Direito da USP (2006). Líder do Grupo de Pesquisa Direito, Ética e Inteligência Artificial da USP – CNPq. Coordenadora do Grupo de Pesquisa "Tech Law" do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP). Membro fundador do Instituto Avançado de Proteção de Dados – IAPD.

Evandro Eduardo Seron Ruiz, professor Associado do Departamento de Computação e Matemática, FFCLRP - USP, onde é docente em dedicação exclusiva. Atua também como orientador no Programa de Pós-graduação em Computação Aplicada do DCM-USP. Bacharel em Ciências de Computação pela USP, mestre pela Faculdade de Engenharia Elétrica da UNICAMP, Ph.D. em Electronic Engineering pela University of Kent at Canterbury, Grã-Bretanha, professor lLivre-docente pela USP e pós-Doc pela Columbia University, NYC. Coordenador do Grupo de Pesquisa "Tech Law" do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP). Membro fundador do Instituto Avançado de Proteção de Dados – IAPD.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Newton De Lucca, professor Titular da Faculdade de Direito da USP. Desembargador Federal, presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (biênio 2012/2014). Membro da Academia Paulista de Direito. Membro da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Membro da Academia Paulista dos Magistrados. Vice-presidente do Instituto Avançado de Proteção de Dados.