Introdução
O dicionário Oxford Languages define interface como um elemento que propicia uma ligação lógica entre duas partes ou mesmo de um mesmo sistema ou de sistemas diversos que não se comunicam diretamente. Já o dicionário Priberam o apresenta como a área ou limite comum a duas unidades distintas que se lhes permite alguma interação, por meio da adaptação lógica destes dois sistemas buscando a obtenção de resultados comuns a ambos.
É o que ocorre nas relações entre proteção de dados e inteligência artificial. Trata-se de dois objetos distintos, porém que podem se interconectar. Tomando um exemplo recente, popularizou-se na internet, por meio das redes sociais, aplicativo de inteligência artificial que faz desenhos e fotos a partir de informações e comandos indicados. Em relação as fotos pessoais, há coleta de informações biométricas por meio da recepção da foto do rosto em diversos ângulos, o que permite a inteligência artificial a cumprir com a sua função.
Se de um lado referido aplicativo e outros congêneres apresentam períodos de retenção dos elementos carregados, sendo vedado seu uso para identificação, autenticação, criação de perfis, comercialização e publicidade, garantem a utilização de uma base legal para os direitos de seus usuários. Por outro lado, costuma-se liberar a utilização de alguns dados para a personalização de conteúdos, em especial aquelas coletadas por cookies, como as relativas a navegação, conexão, IP, entre outros.
Repara-se que os pontos negativos se vinculam a dados sobre outros dados, é dizer estamos diante do uso de metadados, ou informações detalhadas sobre conteúdos gerais. A World Wide Web Consortium1 os definem como informações sobre objetos armazenados na web que podem ser compreendidas pela máquina, implicando em ser a soma total do que pode ser dito sobre algum objeto informacional em algum nível de agregação, de forma que possa ser manipulado como objeto por uma pessoa ou computador.
Quando falamos desses metadados, falamos sobre sua função de identificar, descrever e recuperar arquivos; assim como confirmar autenticidade de conteúdo, identificar relações estruturais de objetos e fornecimento de pontos de acesso ao usuário. Podemos dizer, portanto, que são elementos críticos de catalogação e organização de conteúdos e informações em caráter digital.
De forma geral esses metadados são gerados em grande quantidade que tornaria impossível para uma pessoa, de forma manual de organizá-los e estrutura-los, o que de fato garantiria a privacidade das pessoas. Entretanto, o uso de inteligência artificial leva a possibilidade de articular referidas informações, dando a ela uma utilidade; neste sentido, o autor Evgene Morozov2 nos alerta sobre o risco que pode ser causado a privacidade e aos dados pessoais, ante ao seu uso por parte de grandes empresas de tecnologias que podem efetuar uma coleta massiva de dados, ainda que de forma oculta ou dissimulada.
A partir do uso e da integração desses dados e metadados por algoritmos vinculados a inteligência artificial tem-se a possibilidade de aplicar filtros que permitem encontrar dados e informações não encontradas de outra maneira visto ser necessárias análises estatísticas e probabilísticas substituindo as ações humanas. Evidente o risco de vigilância e violação da própria intimidade e da privacidade pessoal.
Isso ocorre, pois, as inteligências artificiais podem se basear em princípios da granularidade e da rastreabilidade das relações sociais mediadas digitalmente, de forma que possa ocorrer uma regulação do comportamento individual por meio do conhecimento dessas informações identificadas.
Inteligência Artificial
Segundo Morozov a necessidade pela regulamentação do direito à privacidade individual trouxe à tona o fundamento da imposição de limitações no tratamento dos dados pessoais. É dizer, a mediação dos dados pelas inteligências artificiais impõe-se uma medição tecnocrata da sociedade e das ações humanas havendo uma interseção de lógicas complexas, sendo ressaltado a necessidade de se desenhar fronteiras nítidas entre os algoritmos e os dados com que são alimentados; visto serem os dados são o operador oculto da lógica algorítmica.
Segundo a Organização para a Cooperação e do Desenvolvimento Econômico – OCDE - inteligência artificial pode ser definida como um sistema baseado em máquinas que pode, para um determinado conjunto de objetivos pré-determinados, fazer previsões, recomendações, ou decisões que podem influenciar diretamente ambientes reais ou virtuais, sendo concebidos para operar com diferentes níveis de autonomia3.
Essa autonomia é desenvolvida por meio do uso de técnicas de Machine Learning, a partir do desenvolvimento de modelos que recebem dados de entrada (input data) para, utilizando-se de análises estatísticas, prever um valor de saída (output value) dentro de um intervalo adequado; podendo serem classificados pelo tipo de aprendizagem proporcionada, sendo que podem ser: supervisionada; não supervisionada e reforçada.
Em outras palavras, podemos entender o componente central do funcionamento e aprimoramento das Inteligências Artificiais é o “machine learning”, ou seja, a habilidade de melhorar a performance por meio da detecção de novos e melhores padrões a partir de novos dados colhidos e captados ao longo do tempo. O que se vê é uma submissão de grandes massas de dados a fim de que as redes possam interligar mais informações em um menor espaço de tempo.
Tal aprendizado da máquina, assim como os processos de tomada de decisão propiciados, só são possíveis graças à Inteligência Artificial — a qual materializa-se em computadores digitais cujos programas raciocinam sobre as diversas facetas do conhecimento, tomam decisões, aprendem, e interagem com seu ambiente, realizando suas atividades com nível alto de sofisticação.
Proteção de Dados
A partir da compreensão do funcionamento dos Sistemas de Inteligência Artificial baseados em Machine Learning, devemos, então nos questionar qual a sua relação com a Proteção de Dados Pessoais. Antes de mais nada, ao falarmos de proteção de dados, devemos nos recordar que estamos lidando com uma das vertentes dos direitos de personalidade, é uma das expressões da dignidade da pessoa humana.
Conforme já discutimos em outros artigos nessa mesma coluna desde a constitucionalização do direito à proteção dos dados4, passando pelas perspectivas e desafios de proteção de dados sensíveis5 estamos diante de uma das vertentes da dignidade da pessoa humana, visto que a partir de 2022 a proteção dos dados pessoais passou a ingressar o rol de direitos e garantias fundamentais expressos na Constituição Federal6.
A fundamentalidade do direito à proteção de dados surge de seu conteúdo e alcance jurídico que é intimamente associado à autodeterminação pessoal como uma irradiação do princípio da dignidade humana por meio do integral, livre e completo desenvolvimento da personalidade. Desta forma, como consequência desta fundamentalidade temos que o uso e a coleta de dados devem ter seus critérios: de uso, da forma de coleta e tratamento definidos.
Considerações Finais
Para fins de conclusão, levanta-se algumas considerações reflexivas. As interfaces existentes entre inteligência artificial e proteção de dados são várias. Aqui, iniciamos trazendo os conceitos de dados e metadados, e algumas considerações críticas quanto a sua possibilidade de uso.
Disto, pudermos verificar alguns dos riscos que a aplicação de Sistemas de Inteligência Artificial por meio do uso de Machine Learning pode trazer à proteção dos dados pessoais e consequentemente aos direitos individuais fundamentais.
A captação, processamento e uso de dados e de metadados extraídos de diversas formas de redes de massa, é dizer a captação massiva de dados, é uma das interfaces que podem ser levantadas desta relação ampla7.
Portanto, fica a reflexão para a necessidade de melhor compreensão destes Sistemas e das suas implicações, em especial a violação da intimidade e da privacidade, recordando que aqui não se pretendeu esgotar o assunto, mas sim apresentá-lo de forma simplificada para melhor compreensão de conceitos e processos a eles vinculados.
Bibliografia
CAMPOS, Luiz Fernando de Barros. METADADOS DIGITAIS: revisão bibliográfica da evolução e tendências por meio de categorias funcionais. In. Revista Eletrônica de Biblioteconomia e Ciência da Informação, n. 23. Florianópolis, 2017.
ASSETWAY. Metadados com inteligência artificial: como gerá-los. Disponível aqui. Acesso em 06. Dez. 2022.
CAI, Charles. Inteligência Artificial em videovigilância e metadados. Revista de Segurança Eletronica [online]. Disponível aqui. Acesso em 06. Dez. 2022
MOROZV, Evgene. BigTech: A Ascensão dos Dados e a Morte da Política; trad. Claudio Marcondes. – São Paulo: Ubu Editora, 2018, 192, pp.
COZMAN, Fábio G. PLONSKI, Guilherme Ary; NERI, Hugo (Org.) Inteligência Artificial: Avanços e Tendências. São Paulo: Instituto de Estudos Avançados, 2021. Disponível aqui. Acesso em: 22 de setembro de 2022.
OECD. OECD’s homepage on legal instrument. Disponível aqui. Acesso em: 23 de setembro de 2022.
SALLOUM, Said A. et al. Machine learning and deep learning techniques for cybersecurity: a review. In: The International Conference on Artificial Intelligence and Computer Vision. Springer, Cham, 2020. p. 50-57.
OLIVEIRA, Cristina Godoy B. de. Decisões automatizadas no Regulamento Geral Europeu (GDPR): interpretações possíveis. In Migalhas de Proteção de Dados. Disponível aqui. Acesso em 14 dez. 2022.
QUINTILIANO, Leonardo. Contexto histórico e finalidade da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). In Instituto Avançado de Proteção de Dados (IAPD) [online], Ribeirão Preto, 15 mar. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 03 ago. 2022.
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1 Principal organização de padronização da rede mundial de computadores, a internet. Consiste em um consorcio internacional que agrega empresas, órgãos governamentais e organizações independentes com a finalidade de estabelecer padrões para a criação e a interpretação de conteúdos para a Web.
2 Evgeny Morozov é um pesquisador Bielorrusso nascido em 1984, que foi professor visitante na Universidade de Stanford; seus estudos envolvem a análise de implicações políticas e sociais do progresso tecnológico e digital, tendo adotado uma posição cética em relação ao potencial democratizante, emancipatório e anti-totalitário que a internet pode promover de acordo com os solucionistas, visto entender esta ser uma ferramenta poderosa para o exercício de vigilância em massa, repressão política, e disseminação de discursos de ódio.
3 Traduzido livremente do original: “a machine-based system that can, for a given set of human-defined objectives, make predictions, recommendations, or decisions influencing real or virtual environments. AI systems are designed to operate with varying levels of autonomy”.
4 Reflexões sobre a constitucionalização do direito à proteção de dados.
5 A proteção de dados sensíveis sobre orientação sexual e identidade de gênero vinculados a população LGBTQIA+: perspectivas e desafios.
6 CFRB/1988 - Artigo 5º. LXXIX - é assegurado, nos termos da lei, o direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais.
7 OLIVEIRA, Cristina Godoy B. de. Decisões automatizadas no Regulamento Geral Europeu (GDPR): interpretações possíveis. In Migalhas de Proteção de Dados. Disponível aqui. Acesso em 14 dez. 2022.