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Aspectos da aplicação da LGPD nos contratos eletrônicos

A dinâmica da contratação eletrônica revelou-se extremamente útil, até mesmo necessária, na época de imperioso distanciamento social em virtude da COVID-19.

23/9/2022

A lei 13.709/18, Lei Geral de Proteção de Dados ("LGPD"), serviu e ainda serve de tema para inúmeras discussões no âmbito jurídico, no que tange a sua aplicação e extensão de efeitos. Em que pese não se tratar mais de novidade normativa propriamente dita, seus reflexos ainda seguem sendo pauta, como nos contratos eletrônicos, por exemplo, uma vez que a legislação de proteção de dados pessoais é ampla e aplicável às mais diversas áreas, desde os mercados tradicionais até os mais disruptivos.

Considerando o conceito legal de dado pessoal1, é intuitivo o entendimento de que estes dados são encontrados em inúmeros segmentos, especialmente em contratos, e devem gozar da respectiva proteção, na forma da lei.

Destaca-se, por oportuno, a disciplina de proteção de dados pessoais em ambientes que contam com regulamentação e normativas incipientes, como é o caso das relações tidas no âmbito da internet, em especial no que diz respeito à celebração de contratos eletrônicos.

Sobre a temática, demonstrou a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios promovida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, que, enquanto no ano de 2003, apenas cerca de 15% (quinze por cento) dos domicílios brasileiros pesquisados possuíam microcomputador2, em pouquíssimo tempo a realidade da digitalização das relações pessoais disparou, sendo que em 2018, e 99,2% (noventa e nove vírgula dois por cento) dos domicílios já contavam com acesso à internet, e se utilizava o telefone celular para a finalidade de navegar na rede3. 

Não por acaso, tratou o legislador de editar normativas que não ficassem estranhas a esta realidade, tais como a LGPD, que em seu artigo 1º, caput, estabelece que esta lei regula o tratamento de dados pessoais, ainda que em meios digitais4.

É fato notório que hodiernamente vivemos a era das relações digitais em todas as esferas da vida privada, uma vez que as relações interpessoais e os negócios jurídicos se permeiam pela digitalização dos fatos. No que tange à disciplina contratual, como não poderia deixar de ser, a digitalização se faz presente em diversos aspectos.

A adoção de contratos eletrônicos em nosso dia a dia é evidente, e marca uma verdadeira necessidade que se alinha com a exigência de dinamicidade, globalização e instantaneidade na maior parte das relações que firmamos. Além disso, a internet enquanto ecossistema e rede interconectada, além do surgimento e a consolidação da ampla utilização de softwares (web e mobile), tornam a cada dia mais concreta a celebração em larga escala de contratos eletrônicos.

Estes podem ser entendidos, em sentido amplo, como os vínculos contratuais assumidos por intermédio de ferramentas tecnológicas que substituem papel e caneta, seja para fins de manifestação de vontade, seja para a escrituração do instrumento particular que regerá a relação entre as partes.  Através de contratos ditos eletrônicos, é comum a dispensa da interação humana no mundo concreto, pois a interface entre as partes tem lugar no ambiente digital5.

Contratos eletrônicos, portanto, tornam mais fácil, ágil, descomplicada e, muitas vezes, instantânea a assunção de obrigações e celebração de contrato entre partes interessadas, independentemente do tempo e do espaço físico em que se encontram.

Atualmente, a cada minuto se celebram inúmeros contratos em ambientes digitais que se tratam de meros instrumentos de adesão, contendo frases como “li e aceito” e caixas em branco para preenchimento com anuência. Entretanto, estes contratos configuram instrumentos válidos, a priori, e, que, não obstante, efetivam operações de tratamento de dados pessoais potencialmente até de cunho internacional, haja vista que não necessariamente todas as pessoas envolvidas naquela transação estarão situadas no Brasil.

À medida que a vida humana se torna digital, portanto, o direito contratual se vê coagido a acompanhar tal mudança, inclusive no que concerte à disciplina de proteção de dados pessoais. A edição da LGPD teve por finalidade a construção de um sistema eficaz na promoção da proteção dos direitos fundamentais de liberdade, privacidade e do livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural.

Tal normativa foi promulgada ao encontro da tendência mundial de maior preocupação com o fluxo de informações de cunho pessoal na internet, inclusive diante de incontáveis contratações diárias que realizamos nas mais diversas plataformas, sites e aplicativos.

Considerando a larga escala de contrato eletrônicos da espécie de adesão, levantam-se questões atreladas à dignidade individual, o direito à informação e à autodeterminação de cada indivíduo, considerando que a contratação ao alcance de um clique, cada vez mais pulverizada, necessita atender parâmetros mínimos.

Esta necessidade se torna ainda mais latente ao considerarmos a especial proteção destinada às crianças e adolescentes, que contam com ampla e muitas vezes irrestrito acesso às ferramentas eletrônicas e à internet, e aos quais a LGPD reserva tratamento diferenciado, bem como aos consumidores, da forma do Código de Defesa do Consumidor.

É comum que instrumentos contratuais exijam dados pessoais como nome completo, CPF, RG, endereço, nacionalidade, naturalidade, data de nascimento, ou mesmo dados pessoais sensíveis, como origem racial e étnica e biometria. Tais dados, uma vez fornecidos em um contrato eletrônico, ficarão armazenados em bases de dados situadas em arquivos eletrônicos ou mesmo nuvens de informação, as quais, muitas vezes, encontram-se no exterior.

Poucos são os casos em que os contratantes se atentam ao consentimento e prestação de informações atrelados a estas coletas e tratamento de dados pessoais, ou que contam com tecnologia suficiente seja para a adequada segurança destes dados, ou, ainda, para aplicação de medidas de anonimização, ou para eventual fornecimento ou correção de dados, quando solicitado pelo titular6.

Destaca-se que, para toda esta disciplina, a LGPD traz previsão de direitos e obrigações aos envolvidos, o que vem se reforçando através da atuação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados – ANDP, sendo certo que o descumprimento destas premissas pode acarretar, além de penalidades contratuais, sanções por parte deste órgão.

Por conseguinte, ainda que se tenha a percepção de que os meios eletrônicos, principalmente se ligados à internet, são menos burocráticos e visam facilitar a contratações, a celebração de contratos eletrônicos não pode ser entendida como terra sem lei, vista que deve ser compreendida dentro do ordenamento jurídico como um todo, inclusive no que se relaciona à disciplina de proteção de dados pessoais.

__________

1 Art. 5º. Para os fins desta Lei, considera-se: I - dado pessoal: informação relacionada a pessoa natural identificada ou identificável. (LGPD. Disponível aqui. Acessado em 22/09/2022)

2 BRASIL, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. 2003. v. 24. p. 106. Disponível aqui. Acessado em 05/03/2022

3 BRASIL, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. 2018.  p.26 a 59. Disponível aqui. Acessado em 05/03/2022

4 Art. 1º Esta Lei dispõe sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural. Parágrafo único. As normas gerais contidas nesta Lei são de interesse nacional e devem ser observadas pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios. (LGPD. Disponível aqui. Acessado em 22/09/2022)

5 Neste sentido: Os  contratos  eletrônicos  podem  ser  conceituados  como  negócios  jurídicos  bilaterais,  que  se  utilizam  de computadores e  outros  tipos  de  aparelhos  eletrônicos, como,por  exemplo,telefone  celular, iPhone ou tablet, conectados à internet,  por  meio  de  um  provedor  de  acesso,  a  fim  de  se  instrumentalizar  e  firmar  o  vínculo contratual, gerando,assim,uma nova modalidade de contratação, denominada contratação eletrônica. CESARO, Telmo De Cesaro Júnior De. RABELLO, Roberto Dos Santos. "Um Modelo Para a Implementação De Contratos Eletrônicos Válidos." Revista Brasileira De Computação Aplicada. 4.1 (2012): 48-60. p. 49. Disponível aqui. Acessado em 26/06/2022.

6 Art. 18. O titular dos dados pessoais tem direito a obter do controlador, em relação aos dados do titular por ele tratados, a qualquer momento e mediante requisição: I - confirmação da existência de tratamento; II - acesso aos dados; III - correção de dados incompletos, inexatos ou desatualizados; IV - anonimização, bloqueio ou eliminação de dados desnecessários, excessivos ou tratados em desconformidade com o disposto nesta Lei; V - portabilidade dos dados a outro fornecedor de serviço ou produto, mediante requisição expressa, de acordo com a regulamentação da autoridade nacional, observados os segredos comercial e industrial;   (Redação dada pela Lei nº 13.853, de 2019)      Vigência VI - eliminação dos dados pessoais tratados com o consentimento do titular, exceto nas hipóteses previstas no art. 16 desta Lei; VII - informação das entidades públicas e privadas com as quais o controlador realizou uso compartilhado de dados; VIII - informação sobre a possibilidade de não fornecer consentimento e sobre as consequências da negativa; IX - revogação do consentimento, nos termos do § 5º do art. 8º desta Lei.  (LGPD. Disponível aqui. Acessado em 22/09/2022).

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Coordenação

Cintia Rosa Pereira de Lima, professora de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP Ribeirão Preto – FDRP. Doutora em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP com estágio na Ottawa University (Canadá) com bolsa CAPES - PDEE - Doutorado Sanduíche e livre-docente em Direito Civil Existencial e Patrimonial pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (USP). Pó-doutora em Direito Civil na Università degli Studi di Camerino (Itália) com fomento FAPESP e CAPES. Líder e Coordenadora dos Grupos de Pesquisa "Tutela Jurídica dos Dados Pessoais dos Usuários da Internet" e "Observatório do Marco Civil da Internet", cadastrados no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq e do Grupo de Pesquisa "Tech Law" do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP). Presidente do Instituto Avançado de Proteção de Dados – IAPD - www.iapd.org.br. Associada Titular do IBERC - Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil. Membro fundador do IBDCONT - Instituto Brasileiro de Direito Contratual. Advogada.

Cristina Godoy Bernardo de Oliveira, professora doutora da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto – Universidade de São Paulo desde 2011. Academic Visitor da Faculty of Law of the University of Oxford (2015-2016). Pós-doutora pela Université Paris I Panthéon-Sorbonne (2014-2015). Doutora em Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da USP (2011). Graduada pela Faculdade de Direito da USP (2006). Líder do Grupo de Pesquisa Direito, Ética e Inteligência Artificial da USP – CNPq. Coordenadora do Grupo de Pesquisa "Tech Law" do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP). Membro fundador do Instituto Avançado de Proteção de Dados – IAPD.

Evandro Eduardo Seron Ruiz, professor Associado do Departamento de Computação e Matemática, FFCLRP - USP, onde é docente em dedicação exclusiva. Atua também como orientador no Programa de Pós-graduação em Computação Aplicada do DCM-USP. Bacharel em Ciências de Computação pela USP, mestre pela Faculdade de Engenharia Elétrica da UNICAMP, Ph.D. em Electronic Engineering pela University of Kent at Canterbury, Grã-Bretanha, professor lLivre-docente pela USP e pós-Doc pela Columbia University, NYC. Coordenador do Grupo de Pesquisa "Tech Law" do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP). Membro fundador do Instituto Avançado de Proteção de Dados – IAPD.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Newton De Lucca, professor Titular da Faculdade de Direito da USP. Desembargador Federal, presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (biênio 2012/2014). Membro da Academia Paulista de Direito. Membro da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Membro da Academia Paulista dos Magistrados. Vice-presidente do Instituto Avançado de Proteção de Dados.