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O direito ao esquecimento a partir de uma interpretação sistemática entre a Constituição Federal, o Código Civil e a LGPD

As autoras analisam o direito ao esquecimento em perspectiva civil-constitucional.

19/8/2022

Os Direitos da Personalidade são projeções do ser humano que, amparados no valor fundamental deste e no princípio maior da dignidade da pessoa humana, concedem a uma pessoa, por meio do ordenamento jurídico, a possibilidade de fruir e dispor dos atributos essenciais da sua própria personalidade.1 Em outras palavras, tais direitos irradiam do próprio ser humano, para que ele possa ser efetivamente o que é, sobreviver e se adaptar.2

A partir deste enunciado e da noção de atipicidade dos direitos privados de personalidade, cuja caracterização está intrinsicamente ligada ao desenvolvimento humano, deve-se destacar que a acepção do direito ao esquecimento na chamada era digital, ainda que não esteja limitado a esta, tem contornos ainda mais relevantes que sustentam sua caracterização como direito de personalidade autônomo.

O primeiro grande desafio é construir um conceito do que vem a ser o direito ao esquecimento, podendo ser compreendido como um direito de personalidade autônomo por meio do qual o indivíduo, a fim de não ser estigmatizado como o ser humano em determinado momento de sua vida, pode pedir para excluir ou deletar as informações a seu respeito, ou mesmo impedir a propagação e divulgação de determinado conteúdo que lhe diga respeito, notadamente quando tenha passado um lapso temporal considerável desde a sua coleta e utilização ou sua ocorrência, e desde que tais informações não tenham mais utilidade ou não interfiram no direito de liberdade de expressão, científica, artística, literária e jornalística.3

Portanto, o conteúdo do direito ao esquecimento resulta de um sopesamento de princípios. Diante dessa perspectiva dinâmica que caracteriza este direito, além de considerar este mesmo pressuposto para a sociedade informacional, por ser necessária uma análise casuística e de ponderação deste com os demais direitos da personalidade e de garantias fundamentais, questiona-se a efetividade de um tema de repercussão geral, como o Tema 786 julgado pelo STF como Recurso Especial 1010606, cujo relator é o Ministro Dias Toffoli, já que fica clara a impossibilidade de estabelecer um precedente que possa ser aplicado universalmente a todos os casos. O que já foi objeto de reflexão desta coluna por Cíntia Rosa Pereira de Lima e Guilherme Magalhães Martins.4

Nota-se que tal observação consta da emenda do recurso citado, in verbis:

“É incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais. Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais - especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral - e das expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível”. (RE 1010606, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 11/02/2021, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-096  DIVULG 19-05-2021  PUBLIC 20-05-2021).5

Entretanto, no próprio julgado ficou evidente que deve ser feita análise casuística para coibir “eventuais abusos”. Portanto, diante do dinamismo do direito ao esquecimento, e da sociedade informacional como um todo, a conceitualização do tema, e a maneira pela qual este será regulamentado pelo ordenamento jurídico ainda é uma incógnita, pois este direito necessita de uma vagueza semântica proposital.

Nesse sentido, deve-se destacar que o Regulamento Geral Europeu sobre Proteção de Dados Pessoais (GDPR) garante este direito, no art. 17,6 sendo entendido como: “the right of individuals to have their data no longer processed and deleted when they are no longer needed for legitimate purposes”.7 Para uma análise aprofundada sobre o tema, sugere-se outro texto já publicado nesta coluna de autoria da professora Maria Cristina De Cicco.8

Embora possua enorme relevância no contexto geral, isso porque não existia até então uma conceitualização legal para o direito ao esquecimento, e também pela necessidade da criação de um consenso entre os Estados sobre o que pode ser reproduzido na internet, para facilitar a tutela desse direito9, o termo ainda é muito discutido e criticado. Dessa forma, mesmo sendo um conceito criado propositalmente de forma vaga, para que pudesse acompanhar o dinamismo do constante desenvolvimento tecnológico, ainda esbarra em outros direitos como a liberdade de expressão e o direito à informação, criando a necessidade de análise caso a caso para sua implementação, além de demonstrar que a discussão desse direito não se enquadra como um tema novo, embora atual. Neste sentido, importantes as reflexões de João Alexandre Silva Alves Guimarães.10

Outra importante distinção, embora ignorada no julgado em questão, é a do direito ao esquecimento e direito à desindexação. Isso porque, mesmo que inicialmente tratado como um direito integrado a outros direitos, como a indexação, o direito à privacidade e a intimidade, o Direito ao Esquecimento é um direito autônomo, embora possa ser instrumentalizado pelos demais. Dessa forma, um dos casos mais importantes sobre o tema da desindexação, que trouxe notoriedade a discussão do tema no contexto online, é o caso González vs. Google Spain, que se originou na Espanha, em 24 de maio de 2007, quando um cidadão espanhol solicitou a desindexação de informações relativas ao fato de ter sido processado por débitos devidos à Seguridade Social. Durante a execução fiscal, o espanhol teve alguns imóveis vendidos publicamente, o que culminou na publicação da notícia por um grande veículo de comunicação na Espanha.

Ademais, embora o fato tivesse ocorrido há mais de dez anos, o espanhol foi surpreendido com a indexação desta notícia pelo crawler da ferramenta de busca Google. Sendo assim, foi solicitada a desindexação da informação do site de busca, mesmo que a informação veiculada seja verdadeira, isso porque o tempo transcorrido à tornava irrelevante.

Por conseguinte, esse caso deve ser considerado um marco no processo de reconhecimento do direito ao esquecimento, pois, embora tenha tratado do direito à desindexação, este além de ser, por muito tempo, considerado análogo ao direito ao esquecimento, exerce uma função instrumentalizadora do primeiro. Além disso, o Tribunal europeu interpretou, a partir da Diretiva 95/46/CE, que as ferramentas de busca realizam o tratamento de dados pessoais, pois esses dados inseridos na rede mundial de computadores são coletados, armazenados e disponibilizados aos usuários11 segundo uma ordem de classificação imposta pelo crawler.

Sendo assim, o direito à desindexação dessa informação decorre do sistema de proteção de dados, já que o titular desses dados deve consentir com o tratamento de informações que lhe corresponda, discussão de alta valia na sociedade informacional, e para a tutela do direito ao esquecimento online.

Como já afirmamos em outra ocasião nesta coluna, a “desindexação envolve a possibilidade de se se pleitear a retirada de certos resultados (conteúdos ou páginas) relativos a uma pessoa específica de determinada pesquisa, em razão de o conteúdo apresentado ser prejudicial ao seu convívio em sociedade, expor fato ou característica que não mais se coaduna com a identidade construída com a pessoa ou apresente informação equivocada ou inverídica.”12

Consequentemente, embora existam correntes contrárias ao direito ao esquecimento, demonstrado pelos argumentos utilizados pela maioria dos ministros no Recurso Extraordinário 1010606, como por exemplo a fala do Ministro Ricardo Lewandowski, “A humanidade, ainda que queira suprimir o passado, ainda é obrigada a revivê-lo,”13 quando este afirma que o direito ao esquecimento só poderia ser aplicado a partir de uma ponderação de valores, que pese os direitos fundamentais da liberdade de expressão e os direitos da personalidade, acaba por abrir importante brecha ao reconhecimento tanto do direito ao esquecimento quanto ao direito à desindexação.

Outrossim, a principal consequência da aplicação do direito ao esquecimento não resulta na supressão da liberdade de expressão e na liberdade jornalística de veicular fatos históricos e de notoriedade social, mas sim na dignidade da pessoa humana e na sua possibilidade de desenvolvimento pessoal, quando dá respaldo a exclusão de fatos que digam respeito a vida privada do indivíduo para que a sociedade não os eternize. Uma decisão contrária a tal argumento se choca com todo o ordenamento jurídico que prioriza o bem-estar do indivíduo em sua esfera privada, além de minimizar sua relevância para a sociedade e para o tratamento de dados, quando resume sua supressão a necessidade de reparação de danos.

Sendo assim, o Recurso Extraordinário 1010606 julgado pelo Supremo Tribunal Federal, no qual não foi reconhecido o direito ao esquecimento de forma ampla e irrestrita, pois esse significaria um corte a liberdade de imprensa pela relevância do caso: familiares da vítima de um crime de grande repercussão nos anos 1950 no Rio de Janeiro buscavam reparação pela reconstituição do caso por um programa televisivo, sem a sua autorização, mesmo após um significativo tempo ter transcorrido entre o fato criminoso e o programa televisivo. Entretanto, as opiniões não foram uníssonas e não descartaram a possibilidade de ser reconhecer o direito ao esquecimento em determinado caso concreto.

Assim, para o presidente do STF, ministro Luiz Fux, o direito ao esquecimento é uma decorrência lógica do princípio da dignidade da pessoa humana, e “quando há confronto entre valores constitucionais, é preciso eleger a prevalência de um deles.”14 Para o ministro, esse direito pode ser aplicado, porém, no caso em questão, por possuir grande notoriedade e por ser de domínio público, não poderia sofrer essa censura simplesmente pelo decorrer do tempo, o que abre diversas lacunas que, mesmo também deixadas pela LGPD, não impedem o reconhecimento do direito ao esquecimento como um direito de personalidade autônomo, aplicado as exceções casuísticas citadas pelos ministros no acórdão, que deverão sempre ter como norte o princípio mor estabelecido pelo art. 1º, inciso III da Constituição Federal e art. 12 do Código Civil.

Sendo assim, o Supremo Tribunal Federal fala em exceções para a aplicação do direito ao esquecimento, e não sua total anulação, não sendo essa discrepância uma contradição em si mesma, já que é possível verificar que, na colisão de direitos mencionada, é necessário a análise das peculiaridades de cada caso.

Por fim, um ponto não enfrentado nessa questão é como a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, interpretada à luz dos referidos dispositivos da CF/88 e do CC/02, pode dar guarida seja ao direito à desindexação, além do direito ao esquecimento. Tema que será enfrentado com mais detalhes em outra oportunidade nesta coluna.

__________

1 LIMA, Cíntia Rosa Pereira de. Autoridade Nacional de Proteção de Dados e a Efetividade da Lei Geral de Proteção de Dados. Editora Almedina Brasil, SP abril, 2020, p. 84.

2 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, 13 ed. São Paulo: Saraiva,1997. P. 99.

3 LIMA, Cíntia Rosa Pereira de. Direito ao esquecimento e internet: o fundamento legal no Direito Comunitário Europeu, no Direito Italiano e no Direito Brasileiro. In: CLÊVE, Clêmerson Merlin; BARROSO, Luis Roberto. Coleção Doutrinas Essenciais em Direito Constitucional: direitos e garantias fundamentais, volume VIII, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2015, p. 511 - 544.

4 A figura caleidoscópica do direito ao esquecimento e a (in)utilidade de um tema em repercussão geral. Migalhas de Proteção de Dados. 29 de setembro de 2020. Disponível aqui. Acesso em: 16/08/2022.

5 BRASIL, Supremo Tribunal Federal (Plenário), Recurso extraordinário com repercussão geral 1.010.606/RJ. “Aplicabilidade do direito ao esquecimento na esfera civil quando for invocado pela própria vítima ou pelos seus familiares”, Relator Min. Dias Toffoli, julgamento: 11/02/2021. Publicação: 20/05/2021. Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Brasília, DF: Supremo Tribunal Federal. Disponível aqui. Acesso em: 03/06/2021.

6 LIMA, Cíntia Rosa Pereira de. Direito ao Esquecimento e Marco Civil da Internet: o fundamento legal no Direito brasileiro do direito ao esquecimento. Direito ao Esquecimento e Marco Civil da Internet: O fundamento legal no direito brasileiro do direito ao esquecimento. 2014. Disponível aqui. Acesso em: 02/03/2021.

7 EUROPEAN COMMISSION. General Data Protection Regulation, 2016. On the protection of natural persons with regard to the processing of personal data and on the free movement of such data, and repealing Directive 95/46/EC. Disponível aqui. Acesso em: 22/03/2021.

8 Esquecer, contextualizar, desindexar e cancelar. O que resta do direito ao esquecimento. In: Migalhas de Proteção de Dados. 23 de abril de 2021. Disponível aqui. Acesso em: 17/08/2022.

9 LAUPMAN, Clarisse. MENDES, Thiago Alcantara. A Privacidade, o Esquecimento e a Fragmentação do Direito Internacional: Conexões Necessárias. O Direito na Sociedade da Informação V, Editora Almedina Brasil, SP abril, 2020. Pg. 35.

10 O direito ao esquecimento: a última chance de sermos nós mesmos? In: Migalhas de Proteção de Dados. 03 de setembro de 2021. Disponível aqui. Acesso em 17/08/2022.

11 LIMA, Cíntia Rosa Pereira de. Direito ao Esquecimento versus Direito à Desindexação. O Direito na Sociedade da Informação V, Editora Almedina Brasil, SP abril, 2020. Pg. 59.

12 LIMA, Cíntia Rosa Pereira de. MARTINS, Guilherme Magalhães. A figura caleidoscópica do direito ao esquecimento e a (in)utilidade de um tema em repercussão geral.  Migalhas, setembro, 2020. Disponível aqui. Acesso em: 03/06/2021.

13 LEWANDOWSKI, Ricardo. STF conclui que direito ao esquecimento é incompatível com a Constituição Federal. Portal do Supremo Tribunal Federal. Disponível aqui. Acesso em: 17/03/2021.

14 FUX, Luiz. STF conclui que direito ao esquecimento é incompatível com a Constituição Federal. Portal do Supremo Tribunal Federal. Disponível aqui. Acesso em: 17/03/2021.

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Coordenação

Cintia Rosa Pereira de Lima, professora de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP Ribeirão Preto – FDRP. Doutora em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP com estágio na Ottawa University (Canadá) com bolsa CAPES - PDEE - Doutorado Sanduíche e livre-docente em Direito Civil Existencial e Patrimonial pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (USP). Pó-doutora em Direito Civil na Università degli Studi di Camerino (Itália) com fomento FAPESP e CAPES. Líder e Coordenadora dos Grupos de Pesquisa "Tutela Jurídica dos Dados Pessoais dos Usuários da Internet" e "Observatório do Marco Civil da Internet", cadastrados no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq e do Grupo de Pesquisa "Tech Law" do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP). Presidente do Instituto Avançado de Proteção de Dados – IAPD - www.iapd.org.br. Associada Titular do IBERC - Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil. Membro fundador do IBDCONT - Instituto Brasileiro de Direito Contratual. Advogada.

Cristina Godoy Bernardo de Oliveira, professora doutora da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto – Universidade de São Paulo desde 2011. Academic Visitor da Faculty of Law of the University of Oxford (2015-2016). Pós-doutora pela Université Paris I Panthéon-Sorbonne (2014-2015). Doutora em Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da USP (2011). Graduada pela Faculdade de Direito da USP (2006). Líder do Grupo de Pesquisa Direito, Ética e Inteligência Artificial da USP – CNPq. Coordenadora do Grupo de Pesquisa "Tech Law" do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP). Membro fundador do Instituto Avançado de Proteção de Dados – IAPD.

Evandro Eduardo Seron Ruiz, professor Associado do Departamento de Computação e Matemática, FFCLRP - USP, onde é docente em dedicação exclusiva. Atua também como orientador no Programa de Pós-graduação em Computação Aplicada do DCM-USP. Bacharel em Ciências de Computação pela USP, mestre pela Faculdade de Engenharia Elétrica da UNICAMP, Ph.D. em Electronic Engineering pela University of Kent at Canterbury, Grã-Bretanha, professor lLivre-docente pela USP e pós-Doc pela Columbia University, NYC. Coordenador do Grupo de Pesquisa "Tech Law" do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP). Membro fundador do Instituto Avançado de Proteção de Dados – IAPD.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Newton De Lucca, professor Titular da Faculdade de Direito da USP. Desembargador Federal, presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (biênio 2012/2014). Membro da Academia Paulista de Direito. Membro da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Membro da Academia Paulista dos Magistrados. Vice-presidente do Instituto Avançado de Proteção de Dados.