Preliminares
Tudo começou em abril deste ano quando o magnata dos negócios Elon Musk, então a pessoa mais rica do planeta1, ofereceu US$ 43 bilhões para adquirir a empresa de mídia social Twitter, Inc. Recordo que Musk já era seu maior acionista individual possuindo 9,1% das ações da empresa. Ainda em abril, Musk recusa o convite para participar do Conselho de Administração. No dia 25 do mesmo mês, esse mesmo Conselho aceitou a oferta de compra de Musk de US$ 44 bilhões, vinculando o valor a privatização da empresa. Tudo parecia ir bem até que em 8 de julho Musk anunciou que pretendia desmanchar o negócio afirmando que o Twitter violou parte do acordo de compra ao se recusar a reprimir contas de spambot. spambot é tipo de software, um robô, projetado para auxiliar no envio de mensagens de spam. Os spambots criam contas fictícias e enviam mensagens de spam usando essas contas. A empresa entrou com uma ação contra Musk no Tribunal da Chancelaria do estado de Delaware em 12 de julho. Negócio congelado, por enquanto.
Mas será que, de fato, essa manifestada ingerência dos spambots sobre a empresa pode ter sido a causa do bloqueio dessa negociação bilionária? Veremos.
About Twitter
Twitter é uma rede social focada em microblog, ou seja, textos curtos voltados para interações rápidas do usuário com o público via web. A empresa foi criada em 2006 e liderada pelo empresário norte-americano Jack Dorsey. No ano passado o Twitter gerou uma receita de US$ 5 bilhões, sendo que 92% desta receita foi proveniente de anúncios publicitários. Essa plataforma conta ainda com 206 milhões de usuários ativos diariamente, sendo que 38 milhões estão nos Estados Unidos2. Em janeiro deste ano, 19,05 milhões de brasileiros acessaram o Twitter3.
Twitter é só mais uma mídia social?
Como outros serviços web aparentemente grátis, o valor pago para se utilizar uma mídia social for free são os dados dos usuários. Os meus, os seus, os nossos dados são a moeda. Neste sentido, cabe dizer que nem todas as mídias sociais são iguais. Facebook, Twitter e Instagram são as plataformas de mídia social mais populares e usadas mundialmente. No entanto, cada uma atrai tipos ligeiramente distintos de usuários e também oferecem serviços e recursos exclusivos. O Facebook, por exemplo, tem um amplo apelo: das 7,6 bilhões de pessoas no planeta, 2,5 bi usam essa plataforma ao menos uma vez ao mês. Ainda, 68% dos americanos adultos relatam usar essa plataforma, sendo que aproximadamente 80% dos usuários está na faixa etária entre 18 a 49 anos de idade. Os usuários do Instagram tendem a ser jovens. A rede social para compartilhamento de fotos e vídeos é mais popular entre os jovens de 18 a 24 anos. Nessa faixa etária, 71% dos norte-americanos dizem ter uma conta no Instagram. Cerca de 1 bilhão de usuários fazem check-in mensalmente nesta plataforma4. Já pelo Twitter, seus usuários são mais propensos a serem graduados, ricos e terem uma vida urbana. Aparentemente o Twitter é um "partidão".
Twitter bots
Outra diferença importante entre essas mídias é que o Twitter é a única destas mídias sociais que tem uma API aberta, ou seja, uma Interface de Programação de Aplicação aberta. Uma API é uma forma de ligação entre dois sistemas computacionais. Neste caso, o Twitter disponibiliza uma API para seus usuários que os possibilita usar recursos do Twitter por um software que eles tenham criado. Em outras palavras, um programador pode, tendo uma conta no Twitter, escrever um código próprio que envia e recebe tweets a partir do seu programa particular de computador. Ou seja, um programador pode programar as funções do Twitter sem necessariamente usar a interface do Twitter no computador ou no aplicativo. Essa possibilidade permite, por exemplo, que muitos acadêmicos (como eu) criem bots (robots) que captam mensagens do Twitter constantemente para fazer análises. Análises essas das mais variadas. Por exemplo, analisar quem posta, o que posta, sobre o que escreve, quem são seus seguidores e quem eles seguem; além de, por exemplo, responder ou criar e enviar tweets.
E qual seria o real valor destas mensagens? Explico: uma mensagem enviada por esta plataforma pode ter, além dos 280 caracteres, ou seja, o conteúdo da mensagem em si, 150 outros atributos vinculados a ela5. Esses atributos vão desde o codinome do usuário, até a sua localização geográfica quando enviou a mensagem, o dia, o horário, seus seguidores e até a cor e a imagem que você pode usar no seu perfil. São todas informações valiosíssimas que certamente diferenciam e deixam únicos cada usuário do serviço. Todas essas informações poderiam ser usadas para criar um perfil de cada usuário, mesmo que essa tarefa não seja ética e permitida, por exemplo, pela LGPD. Poderia, mas não pode.
O valor dos bots
Essa preocupação do Elon Musk em conhecer exatamente quantas são as contas fakes do Twitter e quantos são os eventuais spambots que as criaram e as manipulam é antiga. Nos idos de 2009 já se afirmava, por meio de um estudo da famosa Harvard Business Review, que 10% dos usuários do Twitter eram responsáveis por 90% de sua atividade6,7. Nesta época, nas demais redes sociais 10% dos usuários respondiam por 30% do conteúdo. Ou seja, a relação 10% para 90% é uma clara indicação de postagens mecanizadas, programadas. Por outro lado, neste mesmo ano, o valor de mercado desta empresa estava estimado em US$ 250 milhões. Percebam a diferença de valor de mercado em 2009 para os atuais US$ 44 bilhões8.
Recentemente o Twitter afirmou que menos de 5% de suas contas são fakes ou spambots. Sabemos também que o próprio Twitter oferece a possibilidade de compra de seu “firehose”, ou seja, o fluxo massivo total dos aproximados 500 milhões de tweets enviados diariamente pela plataforma. Dezenas de empresas têm acesso a esses “firehose” para diversas análises destes microblogs trocados. Este fluxo de dados está disponível há anos para empresas que pagam ao Twitter pela capacidade de analisá-lo para encontrar padrões e insights nas conversas diárias. É estranho o fato de se desejar gastar essa fortuna de US$ 44 bilhões, praticamente o mesmo valor de mercado da Ambev hoje9, sem antes fazer uma avaliação independente usando esses dados de terceiros, mesmo tendo condições para tal. Alguns analistas dizem que Musk está usando seu argumento como pretexto para sair do acordo ou negociar um preço mais baixo. Existe também a alegação que essa eventual atividade de spam deve ser quantificada exatamente pela equipe de Musk pois, se o Twitter estiver subestimando o spam em seu serviço, as estimativas da empresa sobre quantos usuários poderiam de fato ver anúncios seriam menores, afetando a receita.
Os bots e as “leis” humanas
Em 1942 o aclamado escritor de ficção científica Isaac Asimov publica seu livro intitulado Runaround o qual influenciou muitas outras obras do mesmo gênero. Neste livro, Asimov descreve explicitamente as três leis da robótica10, que são:
- Um robô não pode ferir um ser humano ou, por omissão, permitir que um ser humano sofra algum dano;
- Um robô deve obedecer às ordens dadas por seres humanos, exceto quando tais ordens entrarem em conflito com a Primeira Lei;
- Um robô deve proteger sua própria existência desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira ou Segunda Lei.
Mais tarde, Asimov acrescentou outra lei, conhecida como quarta ou lei zero, que substituiu as outras. Ele afirmou que "um robô não pode prejudicar a humanidade ou, por inação, permitir que a humanidade sofra algum mal".
Percebam que, do ponto de vista computacional, os bots, como uma criação humana, são meios modernos de mecanização de tarefas, entre elas, destaca-se neste caso a panfletagem midiática moderna, ou seja, a distribuição de material digital de merchandising aqui com o codinome de spam. Pode-se até alegar que esta atividade está entre os custos a serem absorvidos pelos usuários por utilizam um serviço aparentemente gratuito. Considerando-se ainda a possibilidade (reforço, apenas a possibilidade) destes mesmos bots usarem mecanismos de inteligência artificial (IA) nas suas tarefas de criação de textos, escolhas de destinatários e até eventuais respostas automatizadas aos tweets recebidos, cabe aqui a mea culpa de que esses métodos de IA hoje empregados pertencem a classe das weak IA, ou seja, métodos ainda nos níveis mais elementares de IA e que, mesmo que aprimorados, talvez nunca cheguem a se aproximar das características da inteligência humana11.
Sob esta ótica, muito embora os bots do Twitter, façam todo um trabalho intenso de panfletagem para garantir os sucessivos lucros da empresa e sua valorização impressionante ao longo dos anos, o que realmente tem valor de mercado ao final do dia são quantos seres humanos pensantes e potenciais consumidores leram e se atentaram para esses anúncios. Robôs são bons trabalhadores, mas infelizmente não colocam a mão no bolso.
Referências bibliográficas
1 Bloomberg Billionaires Index. Disponível aqui. Último acesso em 25 de julho de 2022.
2 Twitter Revenue and Usage Statistics (2022). Disponível aqui. Último acesso em 25 de julho de 2022.
3 Brasil tem a quarta maior base de usuários do Twitter no mundo. Disponível aqui. Último acesso em 25 de julho de 2022.
4 Twitter vs. Facebook vs. Instagram: What's the Difference? Disponível aqui. Último acesso em 25 de julho de 2022.
5 Data dictionary: Premium v1.1. Disponível aqui. Último acesso em 25 de julho de 2022.
6 Twitter bots are hard to track, and focusing on the amount misses the point. Here's what matters more, according to 2 researchers. Disponível aqui. Último acesso em 25 de julho de 2022.
7 10% Of Twitter Users Account For 90% Of Twitter Activity. Disponível aqui. Último acesso em 25 de julho de 2022.
8 Fall 2008, Facebook tries to acquire Twitter. Disponível aqui. Último acesso em 25 de julho de 2022.
9 Quais são as maiores empresas do Brasil em receita, lucro e valor de mercado? Disponível aqui. Último acesso em 25 de julho de 2022.
10 Three laws of robotics: concept by Asimov. Disponível aqui. Último acesso em 25 de julho de 2022.
11 FJELLAND, Ragnar. Why general artificial intelligence will not be realized. Humanities and Social Sciences Communications, v. 7, n. 1, p. 1-9, 2020.