Introdução
A democratização do mercado de crédito no Brasil, iniciado a partir do Plano Real, permitiu o acesso facilitado ao crédito no país, fomentando o mercado de consumo, ao mesmo tempo que contribuiu para o incremento do número de consumidores superendividados (MARTINS, 2017, p. 38). Atualmente, o advento das fintechs proporciona desburocratização no acesso ao crédito, garantindo maior autonomia do consumidor, por outro lado, também pode resultar em aumento de dívidas e agravamento da sua condição de vulnerabilidade (OLIVEIRA, C., 2020, p.19).
Um os fatores que contribuem para a situação de superendividamento da população brasileira é a qualidade do crédito concedido. Quanto mais baixo o grau de qualidade do crédito tomado, mais sacrifícios o consumidor terá de realizar para honrar a dívida, seja por conta de altas taxas seja pelos riscos dos negócios (MARTINS, 2017, p. 41). O custo do crédito, por sua vez, é calculado a partir do risco de inadimplência do tomador e o risco assumido pelo cedente.
Tais cálculos de custo são afetados pelas informações disponíveis às instituições financeiras quando do momento da contratação. Ocorre que, em razão da assimetria informacional no contexto bancário, as instituições passam a exigir altas taxas de juros resultante da falta de previsibilidade de adimplência, especialmente quando o tomador do crédito possui menor renda (SOUTO, 2019, p. 76). Tendo em vista a baixa qualidade do crédito esses consumidores, então, estão mais vulneráveis e propícios ao fenômeno do superendividamento.
Nesse contexto, cabe a investigar o papel das fintechs, com o emprego de tecnologias disruptivas de Big Data e análise de crédito, como estratégia de prevenção ao superendividamento e melhoria do mercado de consumo creditício.
LGPD e CDC: proteção ao crédito e superendividamento
A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD - lei 13.709/2018) estabelece as hipóteses que autorizam o tratamento de dados pessoais, as chamadas "bases legais". As hipóteses de tratamento previstas na LGPD estão divididas em dois artigos: (i) o artigo 7º, dedicado às bases legais para tratamento de dados pessoais, e (ii) o artigo 11º, dedicado às bases legais que autorizam o tratamento de dados pessoais sensíveis.
Entre as bases legais que autorizam o tratamento de dados pessoais, destaca-se a base legal de proteção do crédito, prevista no art. 7º, inc. X, da LGPD. Trata-se de uma inovação da legislação brasileira em comparação com o Regulamento Geral de Proteção de Dados Europeu (GDPR - General Data Protection Regulation), que inclui o tratamento de dados pessoais objetivando a proteção do crédito e do sistema financeiro.
Considera-se que o tratamento de dados pessoais realizados com fundamento nesta base legal busca ampliar e facilitar a concessão de crédito, contribuindo para melhorar a análises de risco e impulsionar o mercado de consumo (TEFFÉ; VIOLA, 2020, p. 27).
Uma das aplicações diretas da base legal de proteção ao crédito é o credit scoring, sistema de pontuação utilizado por instituições financeiras que tem por finalidade auxiliar na toma de decisões relativas à concessão de crédito (TEFFÉ; VIOLA, 2020, p. 27). Essa base também fundamenta outras atividades de tratamento de dados pessoais relacionadas à redução do risco de crédito como a definição e o gerenciamento de limites de crédito e o desenvolvimento ou consulta a scores e informações de bureaux de crédito.
Nesse caso, a base deverá ser adotada em harmonia com as normas do Código de Defesa do Consumidor (CDC - lei 8.078/90) e da Lei do Cadastro Positivo (lei 12.414/11) e demais legislações aplicáveis.
O tratamento de dados pessoais baseado na base legal de proteção ao crédito coaduna com as regras de prevenção e tratamento do superendividamento introduzidas no CDC pela lei 14.181/2021. Nesse sentido, o art. 54-D, inc. II, do CDC dispõe que, na oferta de crédito, o fornecedor ou o intermediário deverá "avaliar, de forma responsável, as condições de crédito do consumidor, mediante análise de informações disponíveis em bancos de dados de proteção ao crédito". Aliás, o CDC já prevê a criação de bancos de dados e cadastros de consumidores como serviços de proteção ao crédito (art. 43).
Open Banking: a lógica da autodeterminação informativa do consumidor
O Open Banking foi criado com a intenção de padronizar o compartilhamento de dados bancários entre clientes e instituições financeiras, instituições de pagamento e demais instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil (BCB). O sistema Open Banking se traduz numa plataforma que permite a integração de APIs (Application Programming Interfaces) e, a partir desses protocolos de integração, proporciona certo grau de comunicação e compartilhamento entre instituições de maneira robusta, ágil e conveniente. Assim, o Open Banking estabelece a padronização de APIs para viabilizar a interoperabilidade entre sistemas de instituições financeiras e de pagamento.
Com o advento da LGPD e o avanço tecnológico no mercado financeiro, observa-se a alteração do raciocínio legislativo, assim o dever de sigilo bancário começa a abrir espaço para a autodeterminação informativa, visando garantir ao usuário maior controle sobre o tratamento de dados pessoais. Tal é o sentido da autorização do compartilhamento por trás do Open Banking. A partir da concessão de informações claras e precisas a respeito dos dados coletados e dos serviços oferecidos, o titular pode exercer o direito de controlar suas informações pessoais, assim como protegê-las.
A lógica da autodeterminação informativa e da defesa do consumidor permite, assim, a construção de novos produtos e serviços no mercado financeiro, em especial, a partir do Open Banking e Open Finance, enquanto prevê maior controle aos consumidores em relação às suas finanças e informações.
A autodeterminação informativa constitui-se, assim, um direito do indivíduo em decidir livremente sobre o uso de seus dados pessoais, incluindo para quem serão repassados e com que finalidade serão tratados (SOUSA; SILVA, 2020, p. 11). Independentemente de o tratamento de dados pessoais se basear na base legal do consentimento (art. 7º, inc. I, da LGPD), a autodeterminação informativa é um dos fundamentos da LGPD (art. 2º, inc. II) e deve ser observada em todas as operações de tratamento de dados pessoais, revelando-se também nos princípios do livre acesso e da transparência (art. 6º, inc. IV e VI).
O tratamento de dados pessoais como estratégia de concessão de crédito responsável
A ampla disponibilização de informação às instituições financeiras pode tornar as operações de crédito menos arriscadas, proporcionando a redução da necessidade de garantias de alto valor e a redução da taxa de juros, gerando uma maior oferta de crédito com melhor qualidade no mercado (SOUTO, 2019, p. 78). O adequado tratamento dos dados pessoais disponíveis contribui, assim, para a concessão de crédito seguro e personalizado às necessidades e qualidades do consumidor, também servindo de medida de prevenção ao superendividamento.
O Open Banking, ao permitir o acesso às fintechs de maior quantidade de dados pessoais dos consumidores, conduz a melhorias na capacidade de triagem dos algoritmos de análise de dados (screening), especialmente por permitir o acesso a diversas fontes de dados, como birôs de crédito, por exemplo (HE; HUANG; ZHOU, 2020, p. 02). A melhoria na capacidade de screening das fintechs possui dois efeitos: (i) identificar de maneira mais eficaz o tipo de tomador de empréstimo, o que implica no aumento dos empréstimos de qualidade; e (i) aumenta o grau de competitividade no mercado de crédito (HE; HUANG; ZHOU, 2020, p. 02).
Desse modo, seguindo-se a lógica da autodeterminação informativa da centralidade da proteção de dados no contexto do Open Banking, é possível construir um ecossistema de crédito seguro e competitivo, contribuindo para a diminuição do superendividamento. É evidente que a oferta do crédito deve ser acompanhada de informações claras, precisas e de fácil acesso aos consumidores a fim de permitir a manifestação livre e consciente da vontade, devendo-se aplicar medidas regulatórias e fiscalizatórias para coibir a prática de marketing predatório.
Considerações finais
As fintechs alimentadas pelo amplo compartilhamento de dados permitido a partir do Open Banking, contribuem para a democratização do acesso ao crédito e maior controle dos consumidores quanto às opções de produtos creditícios. O acesso aos dados pessoais permite maior segurança na decisão de concessão de crédito, diminuindo a assimetria informacional característica do setor bancário tradicional, o que permite menor taxas de juros.
As tecnologias apresentadas pelos novos serviços do mercado creditício devem ser acompanhadas pela centralidade da autodeterminação informativa e proteção dos dados pessoais dos consumidores, além de oferecer transparência a respeito do tratamento de dados envolvido e das condições de crédito concedidas. Deve-se garantir, portanto, o equilíbrio entre o open finance, acompanhado de serviços de crédito disruptivos, e a preservação da dignidade e autonomia dos consumidores. Tal equilíbrio inicia-se pela interpretação harmoniosa entre as legislações aplicáveis sobre o tema, em especial a Lei Geral de Proteção de Dados, o Código de Defesa do Consumidor e as regulações setoriais do Banco Central.
Referências
HE, Zhigou; HUANG, Jing; ZHOU, Jidong. Open Banking: credit market competition when borrowers own the data. National Buerau of Economic Research, working paper nº 28118, 2020. Disponível aqui. Acesso em: 09 jan. 2022.
LABORATÓRIO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DA INTERNET (LAPIN). Relatório Open Banking & LGPD: Entraves e Eficiências. Brasília, 2020. 45f. Disponível aqui. Acesso em: 27 dez. 2021.
MARTINS, Lucas Rafael. O superendividamento do consumidor de crédito: um estudo de fatores desencadeadores do endividamento crônico e análise dos principais modelos de recuperação e do PL 283/2012. 2017. 65 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharel em Direito) - Faculdade Nacional de Direito, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.
OLIVEIRA, Cecília Franco Vieira de. O superendividamento bancário na era das Fintechs. 2020. 30 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharel em Direito) - Escola de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, 2020.
SOUSA, R. P. M. de; TAVARES DA SILVA, P. H. Proteção de dados pessoais e os contornos da Autodeterminação Informativa. Informação & Sociedade: Estudos, [S.l], v.30, n. 2, p. 1-19, 2020. Disponível aqui. Acesso em: 09 jan. 2022.
SOUTO, Gabriel Araújo. O Cadastro Positivo: a solução para o combate à assimetria informacional no setor bancário brasileiro? Revista da PGBC, v.13, n. 1, p. 75-88, jun. 2019. Disponível aqui. Acesso em: 09 jan. 2022.
VIOLA, Mario. TEFFÉ, Chiara Spadaccini de. Tratamento de dados pessoais na LGPD: estudo sobre as bases legais dos artigos 7º e 11. In: BIONI, Bruno (coord.) Tratado de proteção de Dados Pessoais. Rio de Janeiro: Forense, 2021.