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Os diferentes processos de consentimento na assistência à saúde e na LGPD – Parte II

Os diferentes processos de consentimento na assistência à saúde e na LGPD – Parte II.

17/12/2021

Introdução

Na Parte I deste texto, publicada no Migalhas em 1º de outubro de 20211, abordamos o processo de consentimento na pesquisa envolvendo seres humanos e os relativos à Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD; Lei 13.709/2018. Na sequencia, na Parte II, ora publicada, temos como propósito focar nossa análise nas características do processo de consentimento na assistência à saúde e suas relações com o estabelecido na LGPD.

Para recuperar alguns pressupostos centrais e que integram todas Partes, destacamos aspectos tratados na Parte I, são eles:

1- O processo de consentimento na área da saúde é essencial – ele representa "o ritual clínico moderno da confiança"2, seja na perspectiva bioética3, moral e jurídica.4-5

2- O ato humano de consentir está diretamente conectado à liberdade e à autonomia da pessoa natural, podendo representar diferentes sentidos e formas de manifestação de vontade, tenha este ato efeitos jurídicos ou não.

3- Consentir, o ato de consentir e o processo de consentir são palavras que em seu entorno gravitam sentidos diversos, apesar dos inúmeros pontos de contato na rede do “universo normativo” e que também é o “universo narrativo” de conceitos, princípios, modelos normativos e hermenêuticos – sendo o verbo consentir aquele que dá a forma primordial as distintas roupagens, atuando  como uma “concha” receptora de sentidos; em referência a metáfora da “concha do marisco abandonado” empregada por Martins-Costa.6

4- O verbo consentir antecipado pela palavra “processo” é complemento integrador de sentidos jurídicos e bioéticos.

5- O processo sendo entendido como – aqui replicamos nosso texto-: A cadeia de atos e/ou procedimentos, não necessariamente consecutivos ou postos de forma sequencial, envolvendo elementos intrínsecos e elementos extrínsecos na perspectiva da pessoa natural que consente. Os elementos extrínsecos, aqueles postos pela situação concreta e jurídica, essenciais ao conhecimento do consentidor para respeitar os seus direitos informativos, de personalidade e de autodeterminação. O ato de consentir deve ser realizado sem inadequações éticas7 e/ou vícios de consentimento (erro ou ignorância, dolo, coação e estado de perigo)8.

É fundamental diferenciar a obtenção de um consentimento em situações assistenciais das que ocorrem em pesquisa. Na assistência sempre existe uma demanda de atenção, por parte do indivíduo, paciente ou de seus familiares, baseada em uma necessidade, que é apresentada aos profissionais de saúde. Por outro lado, o pesquisador oferece a possibilidade de participação em um projeto de pesquisa a pessoas que preenchem os critérios de inclusão previamente estabelecidos. Resumindo, a assistência se baseia em um critério de necessidade e a pesquisa no de possibilidade, conforme tivemos a oportunidade de destacar na Parte I deste texto. 

A necessidade envolvida na assistência a saúde está relacionada a uma prestação de serviço que tem como objeto central os cuidados de saúde. Desta forma, o consentimento na assistência, por definição, envolve a relação profissional-paciente que é assimétrica, devido à vulnerabilidade associada ao assistido.9 A obtenção do consentimento é um importante elemento de uma adequada relação profissional-paciente em ambientes assistenciais, sendo uma atividade intrínseca e fundamental, e não tangencial, à relação jurídica existente.

A assistência à saúde, aqui tratada, contempla o conceito de saúde proposto pela Organização Mundial da Saúde (OMS) - estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de afecções e enfermidades – e que hoje é central entre os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) e o Pacto Global da Organizações das Nações Unidas (ONU), portanto envolve todas as áreas da saúde e não somente a medicina. Também deve envolver necessariamente o tratamento de dados pessoais e dados pessoais sensíveis.

O processo de consentimento envolve diversas facetas do atual exercício dos cuidados em saúde. Este processo de consentimento não é apenas uma doutrina legal, é também um direito moral dos pacientes que gera obrigações legais e morais para os profissionais da área da saúde. O processo de consentimento pode assumir diferentes significados.

A relação jurídica estabelecida entre as partes tem como foco e objetivo central a assistência à saúde do assistido, pautada pela consideração que o direito à saúde é um direito fundamental e social, estabelecido nos artigos 5º e 6º da Constituição Federal e em demais regras de direito público e privado. A assistência à saúde pressupõe um negócio jurídico, que poderá conjugar deveres e obrigações contratuais ou existencial, entre o prestador dos serviços à saúde. O prestador poderá ser um ente público, com o por exemplo, a assistência efetivada pelo Sistema Único de Saúde (SUS); ou poderá ser uma pessoa jurídica de direito privado, como as clinicas e hospitais privados e filantrópicos, ou ainda, por uma pessoa natural, quando a assistência é realizada por um profissional liberal individualmente.

Neste contexto, e com o objetivo de integrar um conjunto de textos abarcando os diferentes processos de consentimento na área da saúde, passamos a tratar sobre aspectos característicos do processo de consentimento na assistência à saúde, em especial a sua natureza e efeitos jurídicos e, por fim, os pontos de contato com o estabelecido na à Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD; lei 13.709/2018.

Clique aqui e confira a coluna na íntegra.

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1 FERNANDES, Márcia S.; GOLDIM, J.R. Os diferentes processos de consentimento na pesquisa envolvendo seres humanos e na LGPD - Parte I. Publicado em 1 de outubro de 2021. Acessível aqui

WOLPE, Paul Root.The triumph of autonomy in American Bioethics: a sociological view. In: Raymond De Vires, Janardan Subedi. Bioethics and Society: constructing the ethical enterprise. Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 1998, p. 49.

3 GOLDIM, José Roberto Goldim. Consentimento, capacidade e alteridade. In: Giovana Benetti; André Rodrigues Corrêa; Márcia Santana Fernandes; Guilherme Monteiro Nitschke; Mariana Pargendler; Laura Beck Varela. (Org.). Direito, Cultura e Método - Leituras da obra de Judith Martins-Costa. 1ed.Rio de Janeiro: GZ Editora, 2019, v. 1, p. 169-181.

4 CEZAR, Denise Oliveira. Pesquisa com medicamentos – aspectos bioéticos. São Paulo: Editora Saraiva, 2012, p. 178 e seguintes.

5 MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-fé no Direito Privado – critérios para sua aplicação. São Paulo: Editora Marciel Pons, 2015, §21, p. 228-237.

6 MARTINS-COSTA, Judith. A concha do marisco abandonado e o nomos; in Narração e Normatividade – Ensaios de Direito e Literatura, MARTINS-COSTA, Judith (Cood.); São Paulo: Editora GZ, 2013, pgs. 8-11.

7 GOLDIM, José Roberto Goldim. O consentimento informado numa perspectiva além da autonomia. Revista AMRIGS, Porto Alegre, 46(3,4): 109-116, jul.-dez. 2002. Também acessível aqui.

8 Código Civil Brasileiro, Lei 10.406/2002; Capítulo IV – Dos Defeitos do Negócio Jurídico; artigos 138 ao 156 e Capitulo V – Da invalidade do Negócio Jurídico.

9 GENRO, B.; GOLDIM, J. R.. Acreditação Hospitalar e o Processo de Consentimento Informado. Rev HCPA 2012;32(4).
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Coordenação

Cintia Rosa Pereira de Lima, professora de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP Ribeirão Preto – FDRP. Doutora em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP com estágio na Ottawa University (Canadá) com bolsa CAPES - PDEE - Doutorado Sanduíche e livre-docente em Direito Civil Existencial e Patrimonial pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (USP). Pó-doutora em Direito Civil na Università degli Studi di Camerino (Itália) com fomento FAPESP e CAPES. Líder e Coordenadora dos Grupos de Pesquisa "Tutela Jurídica dos Dados Pessoais dos Usuários da Internet" e "Observatório do Marco Civil da Internet", cadastrados no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq e do Grupo de Pesquisa "Tech Law" do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP). Presidente do Instituto Avançado de Proteção de Dados – IAPD - www.iapd.org.br. Associada Titular do IBERC - Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil. Membro fundador do IBDCONT - Instituto Brasileiro de Direito Contratual. Advogada.

Cristina Godoy Bernardo de Oliveira, professora doutora da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto – Universidade de São Paulo desde 2011. Academic Visitor da Faculty of Law of the University of Oxford (2015-2016). Pós-doutora pela Université Paris I Panthéon-Sorbonne (2014-2015). Doutora em Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da USP (2011). Graduada pela Faculdade de Direito da USP (2006). Líder do Grupo de Pesquisa Direito, Ética e Inteligência Artificial da USP – CNPq. Coordenadora do Grupo de Pesquisa "Tech Law" do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP). Membro fundador do Instituto Avançado de Proteção de Dados – IAPD.

Evandro Eduardo Seron Ruiz, professor Associado do Departamento de Computação e Matemática, FFCLRP - USP, onde é docente em dedicação exclusiva. Atua também como orientador no Programa de Pós-graduação em Computação Aplicada do DCM-USP. Bacharel em Ciências de Computação pela USP, mestre pela Faculdade de Engenharia Elétrica da UNICAMP, Ph.D. em Electronic Engineering pela University of Kent at Canterbury, Grã-Bretanha, professor lLivre-docente pela USP e pós-Doc pela Columbia University, NYC. Coordenador do Grupo de Pesquisa "Tech Law" do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP). Membro fundador do Instituto Avançado de Proteção de Dados – IAPD.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Newton De Lucca, professor Titular da Faculdade de Direito da USP. Desembargador Federal, presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (biênio 2012/2014). Membro da Academia Paulista de Direito. Membro da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Membro da Academia Paulista dos Magistrados. Vice-presidente do Instituto Avançado de Proteção de Dados.