Introdução
Consentir, verbo que contempla múltiplos sentidos e regências - dar consentimento, permitir, tolerar, condescender; demonstrar concordância; aquiescer; aprovar; concordar, etc.1, está na essência e no sentido do tema que vamos tratar: o processo de consentimento.
As palavras e os sentidos que nelas gravitam são os pontos de contato na rede do “universo normativo” e que também é o “universo narrativo” de conceitos, princípios, modelos normativos e hermenêuticos. Como diz Judith Martins-Costa em texto lapidar - A concha do marisco abandonada e o nomos:
"(...) normatizar e inseparável do narrar". (...) Daí a importância de ter presente as narrações apreendidas nos diferentes códigos sociais, a inteligibilidade da conduta normativa repousando no "caráter comunitário (comunal) das narrações que fornecem o contexto desta conduta."2
O verbo consentir é o ponto de contato dos quatro pontos cardeais da Filosofia de Kant, incorporados pelas mãos de Savigny à Escola Histórica, e elevados por Augusto Teixeira de Freitas à trajetória do Direito Privado brasileiro.3 São eles: 1) a ideia de liberdade, como um direito inato a todos os seres humanos, garantidora do pleno desenvolvimento de sua personalidade; 2) o entendimento da convivência social, como uma limitação reciproca de liberdades; 3) o respeito à pessoa humana, como base da justiça e fim da ordem social; e 4) a garantia do Direito, como condicionalidade dos arbítrios, para legitimar o emprego da coação material.4
Consentir é ato humano diretamente conectado à liberdade, podendo representar diferentes sentidos e formas de manifestação de vontade, tenha este ato efeitos jurídicos ou não. No campo jurídico, a natureza do ato de consentir pode ser ato jurídico stricto sensu ou negócio jurídico, ajustando-se ao contexto normativo de apreensão da realidade como expressão da autonomia privada.5-6
Ao longo dos tempos e da tradição social e jurídica, em particular na área da saúde, foram incorporados a este verbo múltiplos sentidos ou dele excluídos características e/ou efeitos sociais e jurídicos. A Bioética, a partir da década de 1970, concentra muitos estudos voltados ao consentimento na área da saúde, em particular na pesquisa envolvendo seres humanos.
Consentir é a “concha” receptora de sentidos; usando a delicada metáfora da "concha do marisco abandonado" empregada por Martins-Costa7:
(...) em uma concha jogada na areia da praia, o primitivo habitante que lhe recheava o conteúdo de há muito pode ter desaparecido e gerações de outros habitantes podem ali ter encontrado a sua morada.8
Ainda, destaco o sentido da utilização da palavra "processo" associada ao verbo "consentir"; aqui compreendido como uma cadeia de atos e/ou procedimentos, não necessariamente consecutivos ou postos de forma sequencial, que agregados ao ato de consentir lhe dão sentido e determinam os efeitos jurídicos.
O processo de consentir envolve elementos intrínsecos e elementos extrínsecos na perspectiva da pessoa natural que consente. Os elementos intrínsecos relacionados à condição ou a situação do consentidor, como a capacidade psicológico-moral e jurídica; as motivações subjetivas e/ou objetivas; e a forma, escrita ou verbal. Os elementos extrínsecos, aqueles postos pela situação concreta e jurídica, essenciais ao conhecimento do consentidor para respeitar os seus direitos informativos, de personalidade e de autodeterminação. O ato de consentir deve ser realizado sem inadequações éticas9 e/ou vícios de consentimento (erro ou ignorância, dolo, coação e estado de perigo)10.
O processo de consentimento é "o ritual clínico moderno da confiança"11, seja na perspectiva bioética12, moral e jurídica.13-14
Assim, considerando a mobilidade narrativa, de sentido e de interpretação jurídica do ato de consentir, objetiva-se tratar, neste conjunto de textos, dos diferentes processos de consentimento na área da saúde. Este conjunto de textos está organizado, em três partes. Na Parte I, ora publicada, serão abordados os temas do processo de consentimento na pesquisa envolvendo seres humanos e os relativos à Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD; lei 13.709/2018. Na Parte II, serão desenvolvidas as características do processo de consentimento na assistência à saúde e suas relações com o estabelecido na LGPD. Finalmente, na Parte III, será abordado o processo de consentimento envolvendo crianças e adolescentes em situações de pesquisa e em assistência na área da saúde, assim como a sua relação com o previsto na LGPD.
Processo de Consentimento nas pesquisas clínicas envolvendo seres humanos
As pesquisas clinicas envolvendo seres humanos são quaisquer estudos científicos que incluem pessoas, ou grupos de pessoas, que recebem intervenções com a finalidade de avaliar os efeitos relacionados à saúde.15
A pesquisa clínica é um gênero que abarca uma diversidade de projetos e estudos envolvendo seres humanos, conforme OMS16. Estas pesquisas podem ser chamadas também por sua espécie - os ensaios clínicos - isso é, quando ocorrem testes com a utilização, entre outros, de fármacos, células e produtos biológicos, procedimentos cirúrgicos, procedimentos radiológicos, dispositivos, tratamentos comportamentais, mudanças no processo de prestação de cuidados, inclusive preventivos.17
Particularmente, os ensaios clínicos são organizados, normalmente em duas etapas: pré-clínica e clínica.
A etapa pré-clínica envolve a utilização de modelos celulares e animais18 ou simulações envolvendo modelos matemáticos. Excepcionalmente, ainda na etapa pré-clínica, podem ser realizados estudos de Fase 0 em seres humanos. São estudos com doses muito pequenas de uma molécula, que ainda está sendo desenvolvida, com finalidade de verificar se tem atividade biológica.
A etapa clínica, por outro lado, envolve diretamente seres humanos e está organizada em quatro fases, denominadas de fases I, II, III e IV. Os estudos de fase I avaliam a segurança da nova intervenção. Na fase II, além da segurança, é avaliada a tolerabilidade associada ao seu uso. Na fase III se agrega a avaliação da eficácia da intervenção. Finalmente, na Fase IV, quando o produto já está liberado para uso assistencial, além da segurança, da tolerabilidade e da eficácia, se avaliam os eventos decorrentes do seu uso em larga escala e em situações de vida real. Estas fases são sucessivas e escalonadas, com níveis crescentes de volume de participantes, de complexidade e de exposição à nova intervenção.19
Neste contexto, o processo de consentimento, e sua respectiva formalização, é requisito obrigatório nos ensaios clínicos.20-21 O processo de consentimento deve ser a expressão de uma conduta eticamente adequada, em respeito aos Direitos Humanos, Direitos Fundamentais e Direitos de Personalidade, em especial, em respeito aos princípios da confiança, da autonomia, autodeterminação e alteridade.22-23
Portanto, o processo de consentimento deve ser integrado em todas as fases 0, I, II, III e IV, da etapa clínica do projeto e protocolos de pesquisa clínica. O participante de pesquisa de cada fase tem que ser informado das finalidades, riscos, benefícios e direitos associados, para que possa participar do processo de tomada de decisão, com a compreensão devida, para exercer o poder (=potestativo) de aceitar, não aceitar ou desistir de sua participação.
O projeto de pesquisa clínica e os documentos que lhe acompanham, tais como protocolo de pesquisa, manual do pesquisador, termos de consentimento, termos de confidencialidade, termos específicos para regular o uso de dados de pesquisa e demais anexos necessários ao caso concreto, devem ser submetidos a avaliação de um ou mais Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs).
Os CEPs devem ter composição multidisciplinar; ser credenciados às instancias governamentais e/ou institucionais que realizem pesquisa clínica e autorizados por regras de direito, autogestão e compliance. As atividades dos CEPs têm cunho avaliativo, consultivo e deliberativo, envolvendo a adequação ética, metodológica, de relevância e finalidade, de capacitação técnica e científica dos pesquisadores envolvidos e de compliance dos projetos realizados nas instituições de pesquisa. Os CEPs também podem estabelecer medidas concretas para evitar conflitos de interesse, em particular, os econômicos.
A necessidade da obtenção de consentimento dos participantes integra um conjunto de Boas Práticas Clínicas, mais conhecidas pela sigla em inglês GCP – Good Clinical Practice, que orientam um modelo normativo colgado em diferentes códigos sociais, de aceitação internacional, fruto da historicidade, em busca de limitar a coisificação dos seres humanos na realização de pesquisas em saúde e como forma de garantir a autonomia da vontade e privada dos participantes de pesquisa.
Inúmeros documentos relevantes regulam as atividades de pesquisa em seres humanos. A Declaração de Helsinki, originalmente de 196424 e hoje na sua 8ª Edição (2015), é uma referência fundamental. É um documento proposto pela Associação Mundial de Medicina (WMA), sem a força de ser um tratado ou legislação. Outras propostas de Boas Práticas Clínica envolvem as propostas pela European Medicines Agency (EMA)25; pela Conferência Tripartite Internacional de Harmonização (ICH harmonised tripartite guidelines. Guideline for Good Clinical Practice E6 - R2)26; o Documento das Américas27 e o Guia de Inspeção em Boas Práticas Clínicas (BPC) referente a ensaios clínicos com medicamentos e produtos biológicos – Guia n. 36/2020 proposto pela Agencia Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA).
No cenário nacional, no que concerne normatização de pesquisas envolvendo seres humanos, não há lei específica28, mas a realização de pesquisas envolvendo os seres humanos deve respeitar os preceitos constitucionais, destacando-se o princípio norteador de todo o ordenamento, o princípio da dignidade da pessoa humana, os direitos fundamentais e sociais à saúde e a vedação de comercialização de partes do corpo, art. 199 §4ª. Também é regrado indiretamente por leis infraconstitucionais, entre elas o Código Civil Brasileiro, a lei 10.406/2002 e a lei 13.123/2015, que regula o acesso ao Patrimônio Genético.
O ano de 1988, marcado pela promulgação da Constituição Federal, também marca o início da regulamentação envolvendo pesquisa com seres humanos no país - a resolução 01/1988 (revogada), publicada pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS). Posteriormente, o marco regulatório brasileiro foi sendo alterado por duas diferentes vertentes:
1) No âmbito infralegal, as resoluções sobre pesquisa editadas Conselho Nacional de Ética em Pesquisa, via o Sistema CEP/CONEP, responsável pelo credenciamento dos CEPs no país e pela orientação de atividades em pesquisa clínica, destacamos: a Resolução 466/2012, que regula em geral a pesquisa envolvendo seres humanos na área da saúde; a Resolução 251/1997, que caracteriza as fases de pesquisa clínica e as Resoluções 441/2011 e 446/2012, relacionadas aos Biobancos.
2) As determinações da Agência Nacional de Vigilância Sanitário - ANVISA, por meio de Resoluções de Diretoria Colegiada (RDC), em particular destacamos a RDC 9/2011, RDC 10/2010 e RDC 38/2013. Estas resoluções são obrigatórias e o seu cumprimento deve ser observado por todos que realizem pesquisas clinicas no país.
Neste cenário, o processo de consentimento é exigido pelo sistema CEP/CONEP e também pela ANVISA nas situações de pesquisa clínica. Entendemos que este processo tem momentos essenciais: o primeiro concerne ao dever de informar à pessoa convidada para ser um participante de pesquisa, que deverá receber todas as informações para compreender as finalidades, os propósitos, os riscos, os benefícios, as condições e as salvaguardas à sua integridade física, moral e psicológica projetadas na pesquisa. A segunda é diretamente conectada ao acompanhamento do participante, durante e após a realização da pesquisa, para suporte e esclarecimento de quaisquer situações ou aspectos decorrentes da pesquisa. O terceiro relaciona-se ao estabelecimento de canais de comunicação adequados e seguros para fortalecer e ampliar os graus de entendimento do participante durante todo tempo em que este estiver envolvido com a pesquisa, e até mesmo após o seu término formal.
A capacidade de compreensão do participante deve ser ampla para que haja a validade do processo de consentimento. Ou seja, deve ser considerada a capacidade relacionada ao grau de desenvolvimento psicológico-moral e a capacidade jurídica.29 Portanto, a capacidade do participante deve ser avaliada e integrada durante todo assim como durante a realização da pesquisa, com a finalidade de avaliar as vulnerabilidades associadas. Para garantir a validade do processo, também deve ser considerada a forma utilizada para registrar o consentimento do participante, seja por meio de termo escrito e/ou de gravação de imagem e/ou voz.30
No que concerne a categoria jurídica do ato de consentimento, no contexto de pesquisa clínica, como diz Denise Oliveira Cezar, não tem natureza obrigacional ou contratual, mas sim pode ser para alguns um ato jurídico stricto sensu e para outros um negócio jurídico relacional, de natureza existencial, que nascerá com limites ao exercício da autonomia do participante às normas proibitivas, aos princípios de ordem pública e de bons costumes. Nas palavras da autora:
(...) é possível, que por meio de declarações, os titulares exerçam os seus direitos de personalidade, os quais poderão tomar a forma de atos jurídicos em sentido estrito ou negócios jurídicos, contanto não afetem o que têm de essencial.31
Denise Oliveira Cezar ressalta que a categoria dos negócios jurídicos relacionais, de natureza existencial, em um ambiente de ensaios clínicos, melhor caracteriza o consentimento do participante, pois estão presentes a liberdade de celebração e configuração; as declarações de vontade e os preceitos de autonomia privada; observa-se a função econômico-social das declarações e a integração a relações jurídicas de natureza relacional.
A qualificação do consentimento informado na pesquisa patrocinada de medicamentos como um negócio jurídico relacional, desta forma, apreende as características que revelam as semelhanças de família com o negócio jurídico, e também as suas peculiaridades jurídicas, com o que a interpretação do TCI, conquanto esteja sujeita às regras dos demais negócios, exige a prevalência de princípios adequados à natureza da relação jurídica.32
A irrenunciabilidade e indisponibilidade dos direitos de personalidade são elementos limitadores da liberdade e da autodeterminação do participante de pesquisa. Igualmente, os responsáveis pela pesquisa devem observar os direitos de personalidade do participante, sem submeter a qualquer influência de ordem hierárquica, ou a qualquer espécie de coerção, mesmo as de ordem econômica relacionadas a recebimentos de valores monetários elevados pela participação na pesquisa, ou recebimento de medicamentos ou tratamentos terapêuticos em ofensa a sua dignidade.33
A relação contratual - negócio jurídico de natureza patrimonial - é estabelecida entre os promotores e responsáveis pela pesquisa clínica, sejam patrocinadores e seus representantes, como as Organizações Representativas de Pesquisa Clínica (ORPC), ou, em inglês, Contract Reserch Organization (CRO), instituições que albergam a pesquisa, fundações de apoio e pesquisadores e suas equipes. O participante não é figurante no contrato, mas sim é pessoa diretamente interessada e afetada por esta relação contratual complexa, de natureza relacional.34
Assim, o consentimento do participante, registrado no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) ou por outra forma de documentação, é elemento objetivo de formalização do processo do consentimento, que deve integrar o projeto de pesquisa, diretamente ligado ao contrato de pesquisa. O registro do consentimento deverá conter de forma clara, inteligível todos os aspectos necessários para informar o participante da finalidade, riscos, benefícios, direitos, titularidade dos responsáveis, contatos necessários para fluência da comunicação com o pesquisador responsável ou seu representante e as instituições.
Em algumas situações, poderá conter também explanação de como os dados de pesquisa serão tratados, se anonimizados, pseudonimizados ou indentificados e se serão compartilhados com outros grupos de pesquisa e/ou com patrocinadores ou financiadores da pesquisa. Nestas situações, a declaração do participante será específica para autorizar o uso de dados de pesquisa, quando originados de dados pessoais, atendendo aos requisitos da LGPD, artigo 8º. Este Termo deverá estabelecer a finalidade, a necessidade, o delineamento, os contornos, os limites e as medidas de segurança para o tratamento e divulgação dos dados de pesquisa. Ressalta-se que os responsáveis pela pesquisa serão controladores conjuntos, conforme os critérios da LGPD, artigo 5º, inciso VI. (ver item 2 deste texto).
Igualmente, é importante frisar que há situações de pesquisa clínica, excepcionais, que poderá haver a liberação da obtenção do consentimento. Por exemplo, quando houver a impossibilidade de estabelecer o contato com o participante, ou seu representante. Nesta situação, o projeto de pesquisa não poderá gerar danos ao participante, deverá ser garantido o tratamento de dados e informações de forma segura, e deverá ser comprovado, a priori, os impactos sociais positivos e benefícios decorrentes da pesquisa para a sociedade. Isto também pode ocorrer em situações nas quais os dados de pesquisa estejam anonimizados desde a sua origem. Nestas, ou em outras situações excepcionais, os pesquisadores devem solicitar e justificar, no projeto de pesquisa, encaminhado ao CEP para avaliação, esta dispensa de obtenção do consentimento. A avaliação do CEP deverá analisar as circunstâncias e as justificativas na perspectiva metodológica e de adequação ética, de boas práticas clinicas, legais e regulatórias.
A ética da responsabilidade social, expressa que a garantia do progresso da ciência e da tecnologia, em um espírito de cooperação, de difusão das informações científicas e de estímulo à livre circulação e utilização do conhecimento, somente se justifica se houver a proteção do participante como interesse primário. Esta proteção não pode ser um elemento secundário a outros interesses, sejam eles científicos, políticos ou econômicos.35
Contudo, para que isso seja possível, é fundamental a transmissão adequada das informações e conhecimentos ao participante sobre a natureza, a finalidade, as etapas de desenvolvimento do projeto e sua prospectiva; assim como, as expectativas derivadas da pesquisa. O dever de informar do pesquisador e o direito de ser informado do participante da pesquisa, sob o fundamento no princípio da confiança, são elementos essencialmente relevantes ao processo de consentimento.36-37
Processo de consentimento na LGPD
O consentimento da LGPD é uma de suas bases legal de tratamento, devendo ser considerado em políticas de proteção de dados e privacidade, mas não apenas como um processo de "faz de conta".38 Neste sentido, será fundamental elencar três premissas postas na Lei Geral de Proteção de Dados, Lei 13.709/2018, diretamente relacionados às pesquisas envolvendo seres humanos na área da saúde:
1) o tratamento de dados pessoais (artigo 5º, inciso X) poderá ser realizado em situações de pesquisas, desde realizadas por órgão de pesquisa, artigo 5º, inciso XVIII (órgão de pesquisa: órgão ou entidade da administração pública direta ou indireta ou pessoa jurídica de direito privado sem fins lucrativos legalmente constituída sob as leis brasileiras, com sede e foro no País, que inclua em sua missão institucional ou em seu objetivo social ou estatutário a pesquisa básica ou aplicada de caráter histórico, científico, tecnológico ou estatístico);
2) a LGPD dispensa o consentimento, art. 8º, quando outras bases legais legitimarem o tratamento de dados, previstos no artigo 7º e 11. Dentre as situações de dispensa do consentimento, em situação envolvendo a área da saúde, destacamos do artigo 7º, os incisos IV (para a realização de estudos por órgão de pesquisa, garantida, sempre que possível, a anonimização dos dados pessoais) e VII (para a proteção da vida ou da incolumidade física do titular ou de terceiro) e do artigo 11, o inciso II, letra “a” (realização de estudos por órgão de pesquisa, garantida, sempre que possível, a anonimização dos dados pessoais sensíveis) e a letra "e" (proteção da vida ou da incolumidade física do titular ou de terceiro).39
3) a LGPD autoriza no seu artigo 13 e parágrafos, o tratamento de dados pessoais para a realização de “estudos em saúde pública”, diz o artigo que os órgãos de pesquisa poderão ter acesso a bases de dados pessoais, que serão tratados exclusivamente dentro do órgão e estritamente para a finalidade de realização de estudos e pesquisas e mantidos em ambiente controlado e seguro. Este ambiente seguro deve ser de responsabilidade do controlador ou controladores (artigo 5º, inciso VI), que no caso das pesquisas clinicas são os pesquisadores e demais responsáveis pela pesquisa. As práticas de segurança devem estar previstas em regulamento específico e devem incluir, sempre que possível, a anonimização ou pseudonimização dos dados.
Partindo destas premissas legais, gostaríamos de focar em dois aspectos: i) a finalidade e a forma do processo de consentimento exigido pela LGPD são distintas dos necessários para a realização de pesquisas envolvendo seres humanos e ii) estes processos de consentimento não têm os mesmos efeitos jurídicos, nem são excludentes. Ambos podem ser necessários, conjuntamente ou não, de acordo com o caso concreto.
A finalidade e a forma do processo de consentimento informado exigido pela LGPD, no seu artigo 8º, são distintos do processo de consentimento necessário para a realização de pesquisas com seres humanos. O consentimento na LGPD é uma das bases legitimas de tratamento de dados pessoais e dados pessoais sensíveis, portanto os seus efeitos estão circunscritos a autorização do titular para o tratamento de dados e informações pessoais, em respeito aos seus direitos de personalidade e ao princípio da autodeterminação informativa. Portanto, entendemos que o consentimento na LGPD é um ato jurídico stricto sensu, pois sua forma, finalidade e efeitos estão previamente previstos em lei.
Para tratar dados de saúde, o consentimento da LGPD poderá ser dispensado para realização de assistência, proteger a integridade física e/ou de saúde do titular ou mesmo tratar o dado do titular em situações de pesquisa.40 Entretanto, é importante que se diga, que dispensar o consentimento para tratamento de dados pessoais, nas situações previstas pela LGPD, não implica em ignorar os seus princípios e regras de direitos, em particular os princípios (artigo 6º) e os direitos dos titulares (dos artigos 17 ao 22).41
A dispensa do consentimento no caso de pesquisas pela LGPD, não altera as responsabilidades inerentes aos promotores e responsáveis pela pesquisa clínica (sejam patrocinadores, instituições envolvidas e pesquisadores responsáveis) em promover ambiente seguro para o tratamento de dados pessoais e dados pessoais sensíveis relacionados aos participantes no desenvolvimento da pesquisa. Aliás, os responsáveis da pesquisa, como controladores e/ou controladores conjuntos, devem elaborar e desenhar o projeto de pesquisa clinica contendo formas de tratamento e governança dos dados pessoais dos participantes para garantir a sua autodeterminação, inclusive para garantir a retirada do seu consentimento do participante ou o adequado compartilhamento ou mesmo o descarte dos dados.
Assim, devem ser previstas e organizadas no projeto e no contrato de pesquisa, por meio de cláusulas especificas, a definição dos obrigados e de medidas de segurança concretas, conforme exigidas pela LGPD para o tratamento dos dados pessoais dos participantes de pesquisa. Também devem ser estabelecidos controles e mecanismos para auditar as bases de dados e, sempre que possível, utilizar a pseudonimização ou outras técnicas de proteção dos dados de pesquisa que oriundos de dados e informações pessoais dos participantes.
Portanto, os processos de consentimento não são excludentes, mas sim poderão ser necessários conjuntamente. Assim, a dispensa do consentimento pela LGPD, nas situações de pesquisa clinica, não elimina a exigência do processo de consentimento nos projetos de pesquisa clínica, visando a atender preceitos éticos, legais e regulatórios e às diretrizes de boas práticas clínicas, que devem ser avaliados pelo CEP.
Neste contexto, quando necessário também o consentimento da LGPD, este deve respeitar os requisitos do artigo 8º e poderá ser nominado como "termo de autorização para uso de dados de pesquisa" – inclusive constando em algumas situações como cláusulas contratuais “destacadas” (artigo 8º, § 1º). O termo poderá ser exigido quando houver situações em que os dados, identidade e informações dos participantes de pesquisa clínica tenham que ser divulgadas além dos limites previstos no projeto ou protocolos de pesquisa ou por situações particulares; como por exemplo, quando houver publicização das pesquisas em mídias sociais e jornalísticas; artigos científicos, congressos, ou para eventuais desenvolvedores de produtos e/ou tecnologias originadas das pesquisas, entre outras situações a serem analisadas em situações concretas.
Considerações Finais
O consentimento do participante de pesquisa clínica deve atender a todos os requisitos formais e de conteúdo, como a clareza e legibilidade na linguagem, esclarecimento dos riscos e benefícios, possíveis eventos adversos, direitos, canais de contato, entre outros.
O consentimento previsto na LGPD, a princípio, não será exigido nos casos de pesquisas clínicas ou pesquisas em saúde pública, pois estas situações têm base legal própria, previstas na LGPD, para tratamento de dados pessoais. Da mesma forma, medidas de segurança devem ser tomadas pelos controladores dos dados de pesquisa, que são os responsáveis pela pesquisa, para garantir os níveis de proteção, prevenção, segurança, controle, gestão e verificação de dados e informações dos participantes, exigidas pela LGPD.
No entanto, poderão ocorrer situações, dependendo da finalidade e uso dos dados pessoais previstos no projeto de pesquisa, em que seja necessário que o participante de pesquisa também forneça o consentimento previsto na LGPD, registrado em "termo de autorização para uso de dados de pesquisa".
O ato de consentir deve ser reconhecido e examinado em cada uma das situações empregadas, para que a "concha a do marisco abondonado" recepcione as características jurídicas adequadas, considerando a diversidade das situações para proteger e garantir ao participante de pesquisa o respeito aos seus direitos.
*Márcia Santana Fernandes é doutora em Direito (UFRGS) e pós-doutora em Medicina (UFRGS). Advogada - Sócia no escritório Santana Fernandes Advocacia e Consultoria. Professora e coordenadora Adjunta do Mestrado Profissional em Pesquisa Clínica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA). Pesquisadora Associada do Laboratório de Pesquisa em Bioética e Ética na Ciência do Centro de Pesquisas (LAPEBEC) do HCPA. Professora Colaboradora do PPG/Dir-PUCRS. Membro do Conselho do Instituto de Estudos Culturalistas – IEC. Research Fellow no UZH Digital Society Initiative - Universidade de Zurique, Suíça. Diretora de Privacidade e Proteção de Dados da ÁXIOS - Educação e Consultoria em Ética Ltda. Associada Fundadora do IAPD – Instituto Avançado de Proteção de Dados. Instagram = @marciasantanafernandes. Twitter = @msfernandes.
**José Roberto Goldim é biólogo, doutor em Medicina e consultor em Bioética. Chefe do Serviço de Bioética do HCPA. Professor Titular da Escola de Medicina da PUCRS. Professor Colaborador da Faculdade de Medicina da UFRGS. Professor do Mestrado Profissional em Pesquisa Clínica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA). Pesquisador responsável do Laboratório de Pesquisa em Bioética e Ética na Ciência do Centro de Pesquisas (LAPEBEC) do HCPA. Research Fellow no UZH Digital Society Initiative - Universidade de Zurique, Suíça. Diretor Sócio da ÁXIOS - Educação e Consultoria em Ética Ltda. Associado Fundador do IAPD – Instituto Avançado de Proteção de Dados. Instagram = @jrgoldim
__________
1 HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles; MELLO FRANCO, Francisco Manoel de Mello. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 1ª Edição, 2001, p. 807.
2 MARTINS-COSTA, Judith. A concha do marisco abandonado e o nomos; in Narração e Normatividade – Ensaios de Direito e Literatura, MARTINS-COSTA, Judith (Cood.); São Paulo: Editora GZ, 2013, pgs. 8-11.
3 TEIXEIRA DE FREITAS, Augusto. Consolidação das Leis Civis, 3ª Edição; p. XXXII, Rio de Janeiro, 1876.
4 REALE, Miguel. A doutrina de Kant no Brasil (Notas à margem de um estudo de Clovis Bevilaqua). V. 42, p. 58-59. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 1947.
5 CEZAR, Denise Oliveira. Pesquisa com medicamentos – aspectos bioéticos. São Paulo: Editora Saraiva, 2012, p. 178 e seguintes.
6 HAICAL, Gustavo. A autorização no Direito Privado. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 2020. Recomendo esta obra a todos que desejem aprofundar a figura jurídica da autorização.
7 MARTINS-COSTA, Judith. A concha do marisco abandonado e o nomos; in Narração e Normatividade – Ensaios de Direito e Literatura, MARTINS-COSTA, Judith (Cood.); São Paulo: Editora GZ, 2013, pgs. 8-11.
8 MARTINS-COSTA, Judith. A concha do marisco abandonado e o nomos; in Narração e Normatividade – Ensaios de Direito e Literatura, MARTINS-COSTA, Judith (Cood.); São Paulo: Editora GZ, 2013, pgs. 8-11.
9 GOLDIM, José Roberto Goldim. O consentimento informado numa perspectiva além da autonomia. Revista AMRIGS, Porto Alegre, 46(3,4): 109-116, jul.-dez. 2002. Também acessível aqui.
10 Código Civil Brasileiro, lei 10.406/2002; Capítulo IV – Dos Defeitos do Negócio Jurídico; artigos 138 ao 156 e Capitulo V – Da invalidade do Negócio Jurídico.
11 WOLPE, Paul Root.The triumph of autonomy in American Bioethics: a sociological view. In: Raymond De Vires, Janardan Subedi. Bioethics and Society: constructing the ethical enterprise. Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 1998, p. 49.
12 GOLDIM, José Roberto Goldim. Consentimento, capacidade e alteridade. In: Giovana Benetti; André Rodrigues Corrêa; Márcia Santana Fernandes; Guilherme Monteiro Nitschke; Mariana Pargendler; Laura Beck Varela. (Org.). Direito, Cultura e Método - Leituras da obra de Judith Martins-Costa. 1ed.Rio de Janeiro: GZ Editora, 2019, v. 1, p. 169-181.
13 CEZAR, Denise Oliveira. Pesquisa com medicamentos – aspectos bioéticos. São Paulo: Editora Saraiva, 2012, p. 178 e seguintes.
14 MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-fé no Direito Privado – critérios para sua aplicação. São Paulo: Editora Marciel Pons, 2015, §21, p. 228-237.
15 Organização Mundial da Saúde (OMS), 2016, Clinical trials, acessado em 30 setembro de 2016.
16 Organização Mundial da Saúde (OMS), 2016, Clinical trials, acessado em 30 setembro de 2016.
17 Organização Mundial da Saúde (OMS), 2016, Clinical trials, acessado em 30 setembro de 2016.
18 Regulada pela lei 11.794/2008.
19 Goldim JR. A Avaliac¸ão E'tica da Investigação Científica de Novas Drogas: A Importância da Caracterização Adequada das Fases da Pesquisa. Rev HCPA. 2007;27(1):66–73.
20 GOLDIM, J. R. O consentimento informado e a adequação de seu uso na pesquisa em seres humanos. Tese (Doutorado em Medicina) - Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1999. p. 37.
21 DOYAL, L.; TOBIAS, J. S. Informed consent in medical research. London: BMJ Books, 2001. p. 15-19.
22 GOLDIM, J. R. O consentimento informado e a adequação de seu uso na pesquisa em seres humanos. Tese (Doutorado em Medicina) - Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1999. p. 31. "Vale destacar que o Código de Nuremberg foi o primeiro documento com repercussão internacional que estabeleceu padrões éticos mínimos aceitáveis para a realização de projetos envolvendo seres humanos."
23 ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Trials of war criminal before the Nuremberg Military Tribunals (Nuremberg Code). Control Council Law, Washington, v. 10, p. 181-182, 1949.
24 GOLDIM, José R.. Declaração de Helsinki I. Bioética. Acessível aqui.
25 Good Clinical Practice (GCP) - ICH guideline E6 (R2). Draft ICH principle.
26 Guideline for good clinical practice E6(R2) Current Step 4 version, 09 Nov 2016.
27 BOAS PRÁTICAS CLÍNICAS: DOCUMENTOS DAS AMÉRICAS. IV Conferência pan-americana para harmonização da regulamentação farmacêutica. 2-4 de Março de 2005.
28 CRONGRESSO NACIONAL, Câmara de Deputados do Projeto de Lei 7082/2017 para regular a pesquisa com seres humanos.
29 GOLDIM, J. R. O consentimento informado numa perspectiva além da autonomia. Revista da Amrigs, Porto Alegre, v. 46, n. 3-4, p.109-116, jul./dez. 2002. p. 110.
30 ALVES, Rainer G. de Oliveira.; FERNANDES, Márcia S.; GOLDIM, José Roberto. Autonomia, autoderterminação e incapacidade civil: uma análise sob perspectiva da Bioética e dos Direitos Humanos. R. Dir. Gar. Fund., Vitória, v. 18, n. 3, p. 239-266, set./dez. 2017.
31 CEZAR, Denise Oliveira. Pesquisa com medicamentos – aspectos bioéticos. São Paulo: Editora Saraiva, 2012, p. 205.
32 CEZAR, Denise Oliveira. Pesquisa com medicamentos – aspectos bioéticos. São Paulo: Editora Saraiva, 2012, p. 199-231.
33 GOLDIM, J. R. O consentimento informado e a adequação de seu uso na pesquisa em seres humanos. Tese (Doutorado em Medicina) - Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1999. p. 62. "A autonomia ocorre quando o indivíduo reconhece que as regras são mutuamente consentidas, as respeita e tem a noção de que podem ser alteradas."
34 CEZAR, Denise Oliveira. Pesquisa com medicamentos – aspectos bioéticos. São Paulo: Editora Saraiva, 2012, p. 178 e seguintes.
35 JONAS, H. Ética, medicina e ética. Lisboa: Vega-Passagens, 1994. p. 135.
36 O'NEILL, O. Autonomy and trust in bioethics. Cambridge: Cambridge University, 2002.
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