Na última sexta-feira,13, começou a segunda fase do Open Banking, isto é, agora será possível o compartilhamento de dados cadastrais e transacionais sobre serviços bancários (contas, crédito e pagamentos).
Com a digitalização da economia, que foi acentuada durante a pandemia de covid-191, observa-se uma mudança importante no mercado financeiro, o que vem sendo acompanhado pela Secretaria Nacional do Consumidor do Ministério da Justiça e Segurança Pública, como evidenciado, por exemplo, na Nota Técnica 48/20202.
O mercado digital maximizou a importância dos dados como ativos econômicos essenciais para garantir a entrada e a competição3. Os dados pessoais tornaram-se destaque nas discussões jurídicas atualmente, considerando a nova percepção do poder da tecnologia e o fato de que há possíveis espaços não cobertos por regulação que podem permitir que empresas – e até mesmo os próprios agentes públicos – possam violar a privacidade dos cidadãos4.
Quando isso é colocado na arena econômica, os dados tornam-se verdadeiras vantagens competitivas para os players que os possuem, isso porque conhecer os dados pessoais de consumidores permite ações estratégicas de alto impacto em determinados mercados (tais como personalização de ofertas, mapeamento de hábitos e antecipação de ações dos consumidores5), principalmente no mercado financeiro.
Além disso, a forma de utilização dos dados acentua a assimetria de informações entre empresas e consumidores, pois, apesar de ser o titular dos dados, o consumidor não é capaz de identificar os dados que cada empresa possui, nem como referidos dados são tratados e compartilhados. Nesse cenário, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) brasileira foi um passo importante, assim como a criação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD).
E alinhando a proteção de dados e o direito do consumidor, as autoridades competentes brasileiras (ou seja, ANPD e Senacon) também firmaram um Acordo de Cooperação Técnica6, visando o compromisso com a harmonização de condutas, o alinhamento estratégico e o fomento à segurança jurídica, em busca do bem-estar social.
Portanto, vemos a necessidade de tratar de forma interdisciplinar os assuntos. Essa análise perpassa ao movimento que observamos no mercado financeiro brasileiro, isto é, a implementação do sistema financeiro aberto ou, como é mais conhecido, o Open Banking. Em breve síntese, verifica-se, por meio do Comunicado n.º 33.455/2019 e da Resolução Conjunta n.º 01/2020 do Banco Central, que os principais objetivos da implementação do Open Banking em nosso país foram para aumentar a eficiência no mercado de crédito e de pagamento no Brasil, com a finalidade de promover um ambiente mais inclusivo e competitivo no âmbito dos negócios, de forma a preservar o sistema financeiro, bem como a proteção do consumidor.
Nesse sentido, o Open Banking, além de proporcionar que a regulação acompanhe a maior utilização pelos consumidores das tecnologias, torna-se uma ferramenta de grande importância para permitir a competitividade no setor, maximizando o bem-estar do consumidor brasileiro. Para que o sistema financeiro aberto fosse implementado de forma realmente a alavancar a competitividade, as instituições financeiras de grande porte, ou seja, aquelas classificadas como S1 e S2 pelo BC, devem participar em caráter obrigatório, de modo a não recair em apenas um inter banking.
Com o compartilhamento mais livre de informações sobre o consumidor – desde que ele tenha interesse nesse serviço e que dê o seu consentimento expresso – é possível que as instituições consigam obter informações essenciais para competir no mercado financeiro.
No momento em que se obtém informações sobre os consumidores, é possível identificar especificamente, por exemplo, os bons pagadores ou os consumidores com alto potencial de investimento e, assim, efetivamente criar propostas personalizadas para conquistar esse consumidor do banco rival. Ainda, para consumidores com pontuação baixa de crédito, será possível analisar o seu potencial atual de pagamento, mas não o seu histórico.
Tais aspectos são importantes, pois, até então, isso seria impossível. Isso porque o Banco não seria capaz de identificar o perfil de cada consumidor, ao menos não de forma tão precisa, a não ser que houvesse um relacionamento prévio com a instituição. Logo, gera-se um incentivo para a concorrência, ameniza-se a assimetria de informações, assim como diminui-se a barreira de entrada para novos agentes, acarretando potencial redução de custos dos serviços e do crédito, com oferecimento de juros mais baixos para os consumidores.
Além disso, ao permitir a transferência automática dos dados por meio do Open Banking, reduz-se a burocracia para mudanças de bancos e de instituições financeiras. Essa mudança é salutar para facilitar o processo de opções para o consumidor, especialmente em relação a produtos mais específicos, não aprisionando o consumidor em determinado banco.
Contudo, é também verdade que o sistema incentiva e, ao mesmo tempo, depende de uma maior educação financeira por parte dos consumidores, inclusive de modo a compreender quais são os produtos e serviços ofertados por cada um dos agentes. Observa-se, assim, que o Open Banking trará uma oportunidade para que os consumidores tenham maior conhecimento sobre o setor bancário e sobre como ele afeta as suas vidas.
Nesse sentido, é importante dar destaque às iniciativas da Escola Nacional de Defesa Consumidor (ENDC) da Senacon/MSP, por meio dos cursos ofertados e voltados à educação financeira. Assim como são importantes as iniciativas conjuntas das autoridades (Banco Central, Senacon/MJSP, ANPD, CVM, MEC, etc) que promovem iniciativas que trazem instrumentos de educação financeira à realidade do consumidor.
Instrumentos disruptivos como o Open Banking somente terão efetividade se forem utilizados e compreendidos pelos consumidores brasileiros de forma ampla e sem assimetrias de informação. As iniciativas de educação para o consumo são não apenas essenciais, como também estão alinhadas às melhores práticas da UNCTAC e OCDE, que incluem a educação financeira como instrumento essencial para a criação de autonomia dos consumidores e para a diminuição das assimetrias do mercado.
As autoridades devem trabalhar para incentivar condições de mercado que permitam ao consumidor exercer livremente suas escolhas para migrar para o fornecedor que melhor lhe atenda, garantindo o funcionamento da economia de mercado, ao mesmo tempo em que se protege seus dados e informações pessoais, nos termos do sistema lógico-normativo do ordenamento jurídico brasileiro. É neste contexto que a atuação conjunta das autoridades se faz tão necessária para garantir os inúmeros benefícios que o Open Banking traz, principalmente no que tange à proteção de dados pessoais, como tem feito a Senacon e a ANPD, por meio do ACT firmado em março de 2021.
Outro ponto importante é trazer confiança ao Sistema Nacional de Defesa do Consumidor sobre a segurança e os benefícios do sistema ao consumidor. Por esse ângulo, o Banco Central também tem se mostrado um grande colaborador da Senacon. Não somente em relação ao Open Banking, mas às diversas mudanças regulatórias que o órgão tem feito para aperfeiçoar o sistema financeiro, como o Pix. As ações conjuntas da Senacon com o SNDC e com o Bacen foram essenciais para desmistificar os novos instrumentos, aproximar o BACEN das lideranças que atuam na ponta para a defesa dos consumidores, assim como para aprimorar as propostas com base nas Notas Técnicas produzidas pela Senacon [2].
Para garantir a melhor experiência do consumidor, a atuação interinstitucional deve também imprimir estratégias efetivas de prevenção às fraudes financeiras, tal como a lançada na campanha iniciada em 11 de agosto - "Proteja seus dados. Não compartilhe" do Ministério da Justiça e Segurança Pública - com o apoio da ANPD. As instituições financeiras, em geral, têm grande preocupação com esse tipo de questão, em razão dos riscos da própria atividade. Portanto, é essencial que as medidas protetivas também sejam amplamente divulgadas para os consumidores para que eles se sintam seguros em relação a esse novo sistema.
Por enquanto, apenas as instituições financeiras autorizadas pelo BC podem atuar no sistema financeiro aberto, contudo, a tendência mundial demonstra que é apenas questão de tempo para que o Open Banking também esteja disponível para além do mercado financeiro, atingindo as gigantes da tecnologia. As big techs já possuem, em grande medida, a detenção dos dados pessoais - porém não financeiros - dos consumidores, devido a sua inserção, que já é sólida no mercado digital. Futuramente, caso elas possuam os dados pessoais financeiros dos consumidores, podemos ver seu poder de mercado se expandir. Não sem razão, este é um tema sob o radar das autoridades do mundo todo.
A tendência é que a inovação promova um ambiente com maior competitividade, além de promover a redução dos custos de transação. Assim, o Open Banking, ao ser utilizado conforme seu desenho institucional, tende a viabilizar opções ao consumidor e outras soluções inovadoras naturalmente maximizadas por um ambiente notadamente marcado por maior concorrência. Isto é ainda mais importante em um setor que figura entre os mais reclamados nas plataformas geridas pelo governo federal: o setor financeiro.
Portanto, é muito importante que as instituições financeiras estejam em compliance com a LGPD, uma vez que toda inovação precisa ser trabalhada à luz do CDC para garantir transparência e a melhor informação disponível, de forma clara e ostensiva, ao consumidor. Respeitados os ditames do CDC, podemos presumir que haverá compromisso com a melhor experiência de Open Banking ao consumidor.
A economia digital traz boas ofertas e um leque maior de soluções financeiras para o consumidor 4.0. É o momento de trabalharmos juntos para que essa experiência seja garantida, resguardando a segurança e o respeito aos direitos de privacidade, à confidencialidade, aos princípios e valores do CDC, assim como aos ditames da LGPD, no que diz respeito à integridade e à disponibilidade dos dados do Open Banking.
*Juliana Oliveira Domingues é professora doutora do curso de graduação e pós-graduação em Direito da USP. Foi Visiting Scholar na Georgetown University Law School (2018). É atualmente Secretária Nacional do Consumidor do Ministério da Justiça e Segurança Pública (Senacon) e Diretora regional da Academic Society for Competition Law (ASCOLA). Líder do Grupo de Pesquisa em Direito, Inovação e Fashion Law da FDRP/USP. Instagram: @profa.julianadomingues, linkedin e Twitter: profaJuliana.
**Tatyana Chiari Paravela é mestranda e bacharel em Direito pela USP. Advogada. Linkedin.
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1 Pesquisa realizada pela UNCTAD aponta como o cenário de consumo digital segue fortalecido pela pandemia de COVID-19. Os consumidores passaram a usar mais o ambiente virtual para realizar compras e obter notícias. Ainda, os consumidores de países emergentes foram os que mais realizaram compras on-line. In: UNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT. COVID-19 has changed online shopping forever, survey shows. UNCTAD, 08 de outubro de 2020. Disponível aqui. Acesso em maio de 2021. O Brasil, por exemplo, subiu 10 posições no ranking de e-commerce da UNCTAD de 2019 para 2021. In: MOREIRA, Assis. Brasil sobe 10 posições em índice de e-commerce da Unctad. Valor Investe, 17 de fevereiro de 2021. Disponível aqui. Acesso em maio de 2021.
2 Veja-se, a exemplo, Nota Técnica n.º 48/2020/CGEMM/DPDC/SENACON/MJ, elaborada pela Senacon em 2020, antes mesmo do sistema financeiro aberto entrar em operação, com o objetivo de esclarecer os objetivos do Open Banking, produzindo conclusões recomendações sobre o assunto.
3 Como definiu o The Economist em 2017, “The word’s most valuable resource is no longer oil, but data”. Disponível aqui. Acesso em: 21 de maio de 2021.
4 BRAUN, Daniela. Senacon investiga Serasa pelo vazamento de dados de 223 milhões de brasileiros. Valor Econômico. Disponível aqui. Acesso em: 25 de março de 2021.
5 Sobre o uso de dados para oferecimento de ofertas personalizadas, veja-se Lina Khan in "Amazon's Antitrust Paradox", onde a autora sugere que a utilização de dados pode auxiliar as empresas (detentoras dos dados) a personalizar ofertas, mapear hábitos e antecipar ações dos consumidores que, por muitas vezes, acaba sendo uma relação com assimetria de informação. Artigo Publicado na Yale Law Journal, Volume 126, número 3, edição de janeiro de 2017, páginas 564-907. Disponível aqui. Acesso em 29/07/2020.
6 Em síntese, conforme informações extraídas do site do Governo Federal: "O acordo prevê ações conjuntas nas áreas de proteção de dados pessoais e defesa do consumidor e vão incluir intercâmbio de informações, uniformização de entendimentos, cooperação quanto a ações de fiscalização, desenvolvimento de ações de educação, formação e capacitação e elaboração de estudos e pesquisas. Ademais, um canal efetivo entre os diferentes órgãos que recebem denúncias sobre vazamentos de dados impulsiona uma rápida atuação do poder público na proteção dos direitos dos cidadãos." Disponível aqui. Acesso em: 21 de maio de 2021.