Migalhas de IA e Proteção de Dados

ODRs e conflitos repetitivos nas relações de consumo

ODRs e conflitos repetitivos nas relações de consumo.

16/4/2021

Em demandas repetitivas e de baixa complexidade – o sistema de ODR (Online Dispute Resolution), dotado de grande flexibilidade, pode ajudar a superar obstáculos de mecanismos tradicionais, judiciais ou ADR (Alternative Dispute Resolution), sendo marcado sobretudo pela natureza adaptativa, com diversas experiências positivas no exterior, como na Prefeitura de NY, E-Bay e PAY-PAL, Wikipédia e AirBNB, dentre outras. Ocorre a análise jurimétrica dos consumidores nas plataformas, num processo de desjudicialização que se iniciou com abertura comercial da Internet, nos anos 1990, e, no Brasil, acentuou-se com o Código de Processo Civil de 2015, levando à parametrização de interesses.1 Como afirma Colin Rule, um dos precursores da matéria, o ODR combina a eficiência da solução alternativa de conflitos com a Internet.2

No Brasil, há diversos mecanismos sem dúvida bem-sucedidos, a serem fomentados, como o Reclame Aqui, Juspro, e-Conciliar, Vamos Conciliar, Mediação Online e Consumidor.gov.br, esta administrada pela Secretaria Nacional do Consumidor, pertencente à estrutura do Ministério da Justiça, que atua desde 2014 com bons resultados, tendo inclusive expandido recentemente sua base operacional.

Por um lado, a exaustão do modelo tradicional de resolução de conflitos é algo que não pode ser desconsiderado, de modo que o processo judicial, durante muito tempo, converteu-se na única resposta que se oferece para qualquer embaraço no relacionamento entre as partes. A procura pelo Judiciário foi tão excessiva que o congestionamento dos Tribunais inviabilizou o cumprimento de um comando fundante contido na Carta Cidadã, pela Emenda Constitucional 45/2004: a duração razoável do processo.3

Com o advento da recente Resolução 358, do CNJ, publicada no 02 de dezembro de 2020. Por meio da mencionada resolução, o Judiciário brasileiro começará a projetar sistemas informatizados de ODRs para a resolução de conflitos, voltados à tentativa de conciliação e mediação (SIREC), no formato de Tribunais online. A ideia é de caminhar além da primitiva ferramenta (mas com aparentes bons resultados) do consumidor.gov.

Demandas que não chegariam aos tribunais passam a ser manipuladas por tecnologias que fazem as vezes de um agente neutro, propondo alternativas e ações possíveis às partes, com redução de custos, simplicidade e celeridade.4

Porém, em certos casos, os mecanismos de solução de controvérsias podem agravar assimetrias de poder, atribuir responsabilidades e alocar custos de maneira indesejável do ponto de vista social, fugindo ao escrutínio público, com a criação de bancos de dados parametrizados, pelas legal techs, para a venda de ODRs, e o consequente Big Data envolvido para ganhos econômicos.

Algumas críticas feitas à ADR, do ponto de vista da assimetria, podem ser estendidas às ODRs. É verdade que, por ouro lado, embora se inspirem nos mecanismos alternativos de solução de conflitos, os ODRs não se limitam à sua transposição para o ambiente eletrônico.5 Na ausência de vedação legal,  a parte mais poderosa do ponto de vista  econômico, tecnológico e informacional  pode impor a ODR ao consumidor,  fornecedor, empregado, cliente etc.6 Existem dúvidas quanto à imparcialidade do mecanismo e preocupações com o desequilíbrio adicional de forças, concentração de informações pelo usuário habitual daqueles mecanismos. Tal preocupação é agravada pela opacidade das caixas-pretas dos algoritmos7 empregados nas soluções de conflitos.

Por um lado, nascidos como resposta a conflitos surgidos na Internet, são uma boa opção para que as partes solucionem suas contendas, com desde que se trate de interesses individuais disponíveis, com efetividade, com a   negociação assistida por uma quarta parte.

Na prática, boa parte das ODRs mais bem sucedidas são aquelas geridas pelas instituições nas quais os conflitos se originam, e naquelas que emprestam conhecimento especializado para sua resolução, como  plataforma de e-commerce, câmara de comércio, dotadas de conhecimento especializado  crucial para apurar o design das ODRs.8

Mediante o uso das ODRs, é possível antecipar, até o início do conflito, mediante o uso de computador, perante comunicação anônima, a administração de dados em volume e velocidade superiores, com comunicação interativa, demandando-se larga escala, perante qualquer ambiente. Isso leva à diminuição de custos e de tempo, numa atuação em outros momentos, prevenindo ou influenciando o conflito a fim de evitar sua escalada, de forma confidencial, sem exposição a terceiros.9

No entanto, a tecnologia não é neutra, e os procedimentos assim gerados podem ser persuasivos, induzindo a certas escolhas ou excluindo ou omitindo opções. As tecnologias refletem os preconceitos e premissas dos seus desenvolvedores, podendo determinar resultados simplesmente por sua formatação, podendo conduzir a ilegalidades ou abusividades.10

A tecnologia pode favorecer, por exemplo, o acobertamento de atos ilícitos. A indução das partes a certos procedimentos ou composição pode ferir diretrizes éticas e de ordem pública. Deve-se focalizar a transparência dos mecanismos de ODR. Até que ponto existe confidencialidade ou neutralidade?

Segundo Dierle Nunes e Camila Mattos Paolinelli:

"De todo modo, mesmo integradas ao sistema, é imprescindível que se examine, conforme dito, que o sistema de ODR tenha um desenvolvedor desinteressado. A utilização de ODRs criadas pelo setor privado, ainda que integradas ao sistema público de justiça, pode acentuar disparidades materiais entre os litigantes, tendo em vista que a plataforma é criada por um deles que detém todas as informações sobre o sistema.

Com poder econômico e informacional, além da habitualidade das demandas (pois participará de todas), o litigante habitual alimentará o sistema com dados (quase que diários) que o favorecerão, desequilibrando os resultados, quase sempre. Ainda que a plataforma de ODR utilizada, seja desenvolvida pelo judiciário como “parte integrante” do sistema, a depender do sistema utilizado, alimentado pelos dados gerados em decorrência do grande número de demandas, os resultados apresentados na resolução dos litígios também poderão ser tendenciosos e direcionados a beneficiar litigantes habituais (em face das potencialidades de vieses do modelo algorítmico)".

Nesse aspecto, talvez o grande desafio seja o de criar uma propedêutica processual amparada em direitos fundamentais que permita rigoroso controle dos resultados enviesados. A arquitetura de escolha da plataforma pode induzir comportamentos e é necessário observar, de perto, quais tipos de comportamentos são estes. A crença na autonomia da vontade foi jogada por terra pela captologia (tecnologia que manipula), e, por isso, a importância de se fortalecer mecanismos que permitam participação informada e controle nos resultados.11

Em qualquer caso, há alguns limites que não podem ser ultrapassados, em nome dos valores que eleitor primordialmente na Constituição da República, em especial:

1 - A integridade da jurisprudência dos Tribunais Superiores na promoção aos vulneráveis (consolidando temas já julgados no sentido de servirem como precedentes poderosos contra a prática de recursos procrastinatórios - o tema 1075 - 'limites territoriais' da coisa julgada coletiva bem demonstrou essa falha)12. Problemas envolvendo consumidores com fragilidades aguçadas, como idade, pobreza, analfabetismo, levando à denominação hipervulnerabiilidade13, e somadas à crise própria do estado pandêmico, devem ser ainda levados em conta. O direito privado deve necessariamente reconhecer a fraqueza de certos grupos da sociedade, que se apresenta como ponto de encontro entre a função individual, que tradicionalmente lhe é reconhecida, e sua função social, afirmada no direito solidário privado que emerge da Constituição.14

2 - A garantia do  Acesso à Justiça como direito fundamental , evitando-se as seguidas tentativas de impor obstáculos de acesso ao Judiciário e à ordem jurídica justa através de modelos alternativos de solução de conflitos extrajudiciais, especialmente aqueles da plataforma digital, na forma do Art. 5º, XXXV – da Constituição da República: "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito" – , o que obsta a imposição dos ODRs como condição da ação, ao contrário do que tem decidido parte do Poder Judiciário, sob pena de vedação ao retrocesso.  O uso facultativo das plataformas mostra-se benéfico, como uma opção a mais, de modo a descongestionar o Poder Judiciário, trazendo ganhos, do ponto de vista da eficiência, mas sem jamais descuidar de todos os direitos fundamentais envolvidos;

3 -  A transparência quanto aos algoritmos adotados para manuseio de inteligência artificial quanto à matéria de relações de consumo.

Especialmente quanto a este último ponto, na Lei Geral de Proteção de Dados, convém não descuidar, dentre os princípios das atividades de tratamento de dados pessoais (artigo 6º.), da transparência (VI), livre acesso (IV), não discriminação (IX), responsabilização e prestação de contas (X).  Fórmulas matemáticas (“black boxes”) são usadas deliberadamente mais para confundir do que clarificar, tendo em vista a opacidade das armas de destruição matemática - termo cunhado por Cathy o'Neil15 - , desenhadas para serem opacas e invisíveis e temperadas pelo molho secreto do algoritmo. Modelos programados por algoritmos, embora possam trazer também grandes benefícios, afetam negativamente a vida de milhões de pessoas, de maneira inapelável e injusta na sociedade contemporânea, frequentemente de maneira não informada e contrária ao seu consentimento.

*Guilherme Magalhães Martins é promotor de Justiça titular da 5ª Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva do Consumidor e do Contribuinte da Capital – Rio de Janeiro. Professor associado de Direito Civil da Faculdade Nacional de Direito – UFRJ. Professor permanente do Doutorado em Direitos, Instituições e Negócios da Universidade Federal Fluminense. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da UERJ.  Associado fundador do Instituto Avançado de Proteção de Dados – IAPD.

__________

1 Acerca do tema, indicam-se as seguintes obras: RULE, Colin. Online Dispute Resolution for Business; B2B, E-commerce, consumer, employment, insurance, and other commercial conflicts. San Francisco: Jossey Bass, 2002. p.28-29 KATSH, Ethan; RABINOVICH-EINY, Oina. Digital Justice; Technology and the Internet of Disputes. Oxford: Oxford University Press, 2017. p.10.

2 RULE, Colin. Online Dispute Resolution for Business, op.cit, p.03

3 NALINI, José Renato. É urgente construir alternativas à justiça. In: ZANETI Jr., Hermes; CABRAL, Trícia Navarro Xavier. Justiça Multiportas; Mediação, Concilação, Arbitragem e outros meios adequados de solução de conflitos. 2.ed. Salvador: Juspodium, 2018. p.31.

4 ARBIX, Daniel do Amaral. Resolução online de controvérsias; tecnologias e jurisdições. Tese de Doutorado apresentada à Faculdade de Direito da USP. São Paulo, 2019. p.02.

5 ALBERNOZ, M.M. Online Dispute Resolution(ODR) para o comércio eletrônico em termos brasileiros. Direito.UnB – Revista de Direito da Universidade de Brasília. v.3, n .1, p., 2019. Disponível aqui. p.13 Acesso em: 15.04.2021.

6 ARBIX, Daniel do Amaral. Resolução online de controvérsias, op. cit, p.44 ALBERNOZ, M.M. Online Dispute Resolution(ODR) para o comércio eletrônico em termos brasileiros. Direito.UnB – Revista de Direito da Universidade de Brasília. v.3, n .1, p., 2019. Disponível aqui. Acesso em: 15.04.2021.

7 PASQUALE, Frank. The black box society: the secret algorithms that control money and information. Cambridge: Harvard University Press, 2015.p.09.

8 ARBIX, Daniel do Amaral. Resolução online de controvérsias, op. cit, p.72

9 ARBIX, Daniel do Amaral. Resolução online de controvérsias, op. cit, p.74

10 ARBIX, Daniel do Amaral. Resolução online de controvérsias, op. cit, p.32

11 NUNES, Dierle; PAOLINELLI, Camila Mattos. Novos designs tecnológicos no sistema de resolução de conflitos: ODRs, e-acesso à justiça e seus paradoxos no Brasil. Revista de Processo. v.314, p.395-425, abril 2021.

12 Supremo Tribunal Federal, Plenário, j. 08.04.21, julgado mérito com repercussão geral no Recurso Extraordinário 1101937 : "Decisão: O Tribunal, por maioria, apreciando o tema 1.075 da repercussão geral, negou provimento aos recursos extraordinários e fixou a seguinte tese: "I - É inconstitucional a redação do art. 16 da Lei 7.347/1985, alterada pela Lei 9.494/1997, sendo repristinada sua redação original. II - Em se tratando de ação civil pública de efeitos nacionais ou regionais, a competência deve observar o art. 93, II, da Lei 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor). III - Ajuizadas múltiplas ações civis públicas de âmbito nacional ou regional e fixada a competência nos termos do item II, firma-se a prevenção do juízo que primeiro conheceu de uma delas, para o julgamento de todas as demandas conexas", nos termos do voto do Relator, vencido o Ministro Marco Aurélio. O Ministro Edson Fachin acompanhou o Relator com ressalvas. Impedido o Ministro Dias Toffoli. Afirmou suspeição o Ministro Roberto Barroso. Plenário, Sessão Virtual de 26.3.2021 a 7.4.2021.

13 TARTUCE, Fernanda. Igualdade e vulnerabilidade no processo civil. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p.253.

14 MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p.15.

 

15 O'Neil, Cathy. Weapons of Math Destruction: How Big Data Incraases Inequality and Threatens Democracy. London: Penguin Books, 2017. p.279-280.

 

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Coordenação

Cintia Rosa Pereira de Lima, professora de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP Ribeirão Preto – FDRP. Doutora em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP com estágio na Ottawa University (Canadá) com bolsa CAPES - PDEE - Doutorado Sanduíche e livre-docente em Direito Civil Existencial e Patrimonial pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (USP). Pó-doutora em Direito Civil na Università degli Studi di Camerino (Itália) com fomento FAPESP e CAPES. Líder e Coordenadora dos Grupos de Pesquisa "Tutela Jurídica dos Dados Pessoais dos Usuários da Internet" e "Observatório do Marco Civil da Internet", cadastrados no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq e do Grupo de Pesquisa "Tech Law" do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP). Presidente do Instituto Avançado de Proteção de Dados – IAPD - www.iapd.org.br. Associada Titular do IBERC - Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil. Membro fundador do IBDCONT - Instituto Brasileiro de Direito Contratual. Advogada.

Cristina Godoy Bernardo de Oliveira, professora doutora da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto – Universidade de São Paulo desde 2011. Academic Visitor da Faculty of Law of the University of Oxford (2015-2016). Pós-doutora pela Université Paris I Panthéon-Sorbonne (2014-2015). Doutora em Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da USP (2011). Graduada pela Faculdade de Direito da USP (2006). Líder do Grupo de Pesquisa Direito, Ética e Inteligência Artificial da USP – CNPq. Coordenadora do Grupo de Pesquisa "Tech Law" do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP). Membro fundador do Instituto Avançado de Proteção de Dados – IAPD.

Evandro Eduardo Seron Ruiz, professor Associado do Departamento de Computação e Matemática, FFCLRP - USP, onde é docente em dedicação exclusiva. Atua também como orientador no Programa de Pós-graduação em Computação Aplicada do DCM-USP. Bacharel em Ciências de Computação pela USP, mestre pela Faculdade de Engenharia Elétrica da UNICAMP, Ph.D. em Electronic Engineering pela University of Kent at Canterbury, Grã-Bretanha, professor lLivre-docente pela USP e pós-Doc pela Columbia University, NYC. Coordenador do Grupo de Pesquisa "Tech Law" do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP). Membro fundador do Instituto Avançado de Proteção de Dados – IAPD.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Newton De Lucca, professor Titular da Faculdade de Direito da USP. Desembargador Federal, presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (biênio 2012/2014). Membro da Academia Paulista de Direito. Membro da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Membro da Academia Paulista dos Magistrados. Vice-presidente do Instituto Avançado de Proteção de Dados.