A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) prevê duas figuras como agentes de tratamentos de dados: o controlador e o operador1. O controlador é a pessoa responsável pelas decisões referentes ao tratamento de dados2. O operador é quem realiza o tratamento de dados em nome do controlador3.
A partir do art. 42, a lei estabelece as regras de responsabilidade civil para os dois agentes. A diferença de responsabilidade em relação a outros sujeitos de dados é justificada pela diferença de poder e competência de atuação4.
Estabelece-se também que a responsabilidade do agente ou controlador ocorreria por descumprimento da violação da legislação da proteção de dados. Contudo, quando da fixação de quais as espécies de danos indenizáveis, o legislador poderia ter sido mais preciso.
O caput do art. 42 menciona a responsabilidade por danos materiais, morais, individuais e coletivos5. Essas expressões podem parecer banais, mas os conceitos empregados não foram técnicos.
O termo dano é ambíguo e pode representar dois momentos da análise do resultado da conduta. Essa percepção ficou evidente com o termo empregado pelo direito italiano "dano injusto"6. A previsão italiana tem uma carga normativa extremamente relevante por deslocar o ilícito da conduta para resultado danoso. No Brasil, essa concepção gerou a discussão sobre a presença de dois momentos de análise do fenômeno danoso: o dano-evento e o dano-prejuízo.
O dano-evento é a violação de um direito ou de um interesse juridicamente relevante no resultado da conduta. Essa hipótese não afasta o ilícito na conduta, mas exige a violação no seu resultado7.
A violação das normas de LGPD representa um ilícito na conduta, mas, se não existir também violação do direito no resultado, não há dano indenizável. Um exemplo de dano indenizável seria a violação da LGPD que, no resultado, violou também um direito à honra. Essa hipótese permitiria indenização por dano moral. Contudo, sem que se caracterize violação à honra, por exemplo, não há que se falar em responsabilidade civil. Será possível sanções de natureza administrativa, tutela de natureza inibitória, mas indenização, sem a violação do direito no resultado da conduta, não será possível.
O dano-prejuízo é representado pela consequência patrimonial ou extrapatrimonial correlata ao dano-evento8.
É preciso compreender também que o pensamento jurídico em geral, principalmente no direito privado, pressupõe um forte cunho dicotômico em que basta a definição de algo que o "contra-algo" ocorra por exclusão9.
Feitas as apresentações iniciais, o art. 42 da LGPD apresenta quatro espécies de danos: danos materiais, morais, individuais e coletivos. Pela redação, deduz-se que o legislador pretendeu estabelecer duas dicotomias: a) danos patrimoniais e danos morais; b) danos individuais e danos coletivos.
Os danos materiais representam uma definição a partir do momento "dano-prejuízo", representam o resultado danoso suscetível de avaliação econômica. O contraposto dicotômico do dano material é o dano extrapatrimonial10.
O dano moral é apenas uma das espécies de dano extrapatrimonial. A doutrina e a jurisprudência definem dano moral como o dano extrapatrimonial decorrente da violação do direito da violação de um direito da personalidade. Sua definição, portanto, parte do direito violado (dano-evento) e não de sua consequência. Logo, o dano moral não é contraposto ao dano material por utilizar critério de definição e identificação completamente distinto. Dessa forma, o art. 42 da LGPD, quando diz dano material e dano moral, em verdade, quer dizer dano material e dano extrapatrimonial.
A segunda dicotomia também está mal empregada. Quando se pensa em dano individual, foca-se na consequência que atinge uma pessoa determinada ou determinável. Trata-se de uma definição, referente ao dano-prejuízo. No entanto, seu contraposto não é o dano coletivo. O dano coletivo é definido a partir do direito ou interesse violado. É a consequência da violação de um direito transindividual (difuso, coletivo em sentido estrito ou individual homogêneo)11. Logo, o dano coletivo representa outro critério de definição que parte de outro momento da análise do dano, o dano-evento.
O contraposto ao dano individual é o dano social. O dano social é uma categoria autônoma de dano que, da mesma forma que o dano individual, parte do dano-prejuízo12. Ele representa a consequência patrimonial ou extrapatrimonial que ultrapassa a esfera do indivíduo13. Essa espécie autônoma já foi debatida nas Jornadas de Direito Civil14, que consagraram sua autonomia conceitual em relação ao dano coletivo e foi reconhecida pelo STJ como categoria indenizável15.
Como se vê, o legislador da LGPD perdeu uma excelente oportunidade de precisão conceitual no tratamento do dano na responsabilidade civil ao disciplinar a matéria a partir de supostas dicotomias que não existem. Pela finalidade pretendida pelo legislador, o controlador e o operador de dados pessoais responderão por danos materiais, extrapatrimoniais, individuais e sociais. A utilização dessas expressões é mais precisa que a empregada e reflete o escopo pretendido pela legislação.
*Silvano José Gomes Flumignan é doutor, mestre e bacharel em direito pela USP. Professor permanente do mestrado profissional do CERS. Professor adjunto da UPE e da Asces/UNITA. Membro do IEA da Asces/UNITA. Procurador do Estado de Pernambuco. Advogado.
__________
1 Art. 5º da LGPD. Para os fins desta Lei, considera-se:
(...) IX - agentes de tratamento: o controlador e o operador.
Ressalta-se que Cíntia Rosa Pereira de Lima entende que o encarregado também seria agente de tratamento (Agentes de tratamento de dados pessoais (controlador, operador e encarregado pelo tratamento de dados pessoais. In: LIMA, Cíntia Rosa Pereira de (coord.). Comentários à lei geral de proteção de dados. São Paulo: Almedina, 2020, p. 279).
2 Art. 5º, VI, da LGPD. Controlador: pessoa natural ou jurídica, de direito público ou privado, a quem competem as decisões referentes ao tratamento de dados pessoais.
3 Art. 5º, VII, da LGPD. Operador: pessoa natural ou jurídica, de direito público ou privado, que realiza o tratamento de dados pessoais em nome do controlador.
4 AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Novos estudos e pareceres de direito privado. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 408-409. "Na verdade, aprofundando teoricamente esse ponto, é nossa opinião que o poder sobre algo ou alguém é sempre um pressuposto da responsabilidade. Os pais têm poder sobre os filhos menores e, por isso, respondem por seus atos; o Estado tem poder sobre os presos e, assim, responde pelo que acontece no cárcere; as empresas têm poder sobre suas atividades e, por causa disso, respondem objetivamente etc. A responsabilidade resulta do poder".
5 Art. 42, caput, da LGPD. O controlador ou o operador que, em razão do exercício de atividade de tratamento de dados pessoais, causar a outrem dano patrimonial, moral, individual ou coletivo, em violação à legislação de proteção de dados pessoais, é obrigado a repará-lo.
6 BERGSTEIN, Laís. Pequenos grandes danos: a relevância da tutela coletiva do consumidor face aos danos de pequena expressão econômica. In: Revista de Direito do Consumidor, vol. 129, p. 341-368 (acesso online p. 1-23), Maio-Jun./2020, p. 4 "Diante de uma vasta gama de interesses que não mais se acomodam no conceito tradicional de ato ilícito, formou-se na pós-modernidade a compreensão de que a reparação de danos deve estar mais ligada à noção de dano injusto." No direito italiano também é o dano injusto que enseja a responsabilidade civil. O art. 2043 do Código Civil italiano, ao tratar do risarcimento per fatto illecito, estipula que: "Qualquer ato malicioso ou pernicioso, que causa danos injustos aos outros, obriga aquele que o fez a compensar o dano".
7 AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Estudos e pareceres de direito privado. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 33-34; FLUMIGNAN, Silvano José. Dano-evento e dano-prejuízo. Dissertação de Mestrado. São Paulo: USP, 2009, p. 204; MENDONÇA, Diogo Naves. Análise econômica da responsabilidade civil: o dano e a sua quantificação. São Paulo: Atlas, 2012, p. 74; REINIG, Guilherme Henrique Lima. A teoria da causalidade adequada no direito civil alemão. In: Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 18, p. 215-248 (acesso online p. 1-25), Jan.-Mar./2019, p. 19.
8 AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Ob. Cit., p. 33-34; FLUMIGNAN, Silvano José. Ob. Cit., p. 204; MENDONÇA, Diogo Naves. Ob. Cit., p. 74; REINIG, Guilherme Henrique Lima. Ob. Cit., p. 19.
[9] FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 132-133.
10 Antônio Junqueira de Azevedo discorda da definição de dano moral como o decorrente da violação de um direito da personalidade. Posto isso, o autor identifica o dano moral como contraposto ao dano material, definindo-o por exclusão (Ob. Cit. p. 378 "O dano moral, por sua vez, é, na verdade, o não-patrimonial; deve ser conceituado por exclusão e é todo aquele dano que ou não tem valor econômico ou não pode ser quantificado com precisão"). Contudo, como é consagrado na doutrina que o dano moral é o decorrente da violação de um direito da personalidade (SCHREIBER, Anderson. Direitos da personalidade. Rio de Janeiro: Atlas, 2011, 16), essa definição não seria possível.
11 BESSA, Leonardo Roscoe. Dano moral coletivo e seu caráter punitivo. In: Revista dos Tribunais, vol. 919, p. 515-528 (acesso online p. 1-10), Maio/2012, p. 6; 10. "Os tribunais brasileiros, com frequência, tem reconhecido a possibilidade jurídica de condenação por dano moral coletivo em face de ofensa a direito metaindividual. (...) Destaque-se, para finalizar estas considerações, que o denominado dano moral coletivo não se confunde com a indenização decorrente de tutela de direitos individuais homogêneos. Constitui-se em hipótese de condenação judicial em valor pecuniário com função punitiva em face de ofensa a direitos difusos e coletivos".
12 AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Ob. Cit., p. 377 e ss.
13 FLUMIGNAN, Silvano José Gomes. Uma nova proposta para a diferenciação entre o dano moral, o dano social e os punitive damages. In: Revista dos Tribunais, vol. 958, p. 119-147 (acesso online p. 1-23), Ago./2015, p. 7.
14 Enunciado nº 456 da V Jornada de Direito Civil do CJF. A expressão "dano" no art. 944 abrange não só os danos individuais, materiais ou imateriais, mas também os danos sociais, difusos, coletivos e individuais homogêneos a serem reclamados pelos legitimados para propor ações coletivas.
15 STJ, Rcl 12.062/GO, Rel. Ministro Raul Araújo, Segunda Seção, julgado em 12/11/2014, DJe 20/11/2014.