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A LGPD é imprecisa na terminologia do dano na responsabilidade civil

A LGPD é imprecisa na terminologia do dano na responsabilidade civil.

8/1/2021

A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) prevê duas figuras como agentes de tratamentos de dados: o controlador e o operador1. O controlador é a pessoa responsável pelas decisões referentes ao tratamento de dados2. O operador é quem realiza o tratamento de dados em nome do controlador3.

A partir do art. 42, a lei estabelece as regras de responsabilidade civil para os dois agentes. A diferença de responsabilidade em relação a outros sujeitos de dados é justificada pela diferença de poder e competência de atuação4.

Estabelece-se também que a responsabilidade do agente ou controlador ocorreria por descumprimento da violação da legislação da proteção de dados. Contudo, quando da fixação de quais as espécies de danos indenizáveis, o legislador poderia ter sido mais preciso.

O caput do art. 42 menciona a responsabilidade por danos materiais, morais, individuais e coletivos5. Essas expressões podem parecer banais, mas os conceitos empregados não foram técnicos.

O termo dano é ambíguo e pode representar dois momentos da análise do resultado da conduta. Essa percepção ficou evidente com o termo empregado pelo direito italiano "dano injusto"6. A previsão italiana tem uma carga normativa extremamente relevante por deslocar o ilícito da conduta para resultado danoso. No Brasil, essa concepção gerou a discussão sobre a presença de dois momentos de análise do fenômeno danoso: o dano-evento e o dano-prejuízo.

O dano-evento é a violação de um direito ou de um interesse juridicamente relevante no resultado da conduta. Essa hipótese não afasta o ilícito na conduta, mas exige a violação no seu resultado7.

A violação das normas de LGPD representa um ilícito na conduta, mas, se não existir também violação do direito no resultado, não há dano indenizável. Um exemplo de dano indenizável seria a violação da LGPD que, no resultado, violou também um direito à honra. Essa hipótese permitiria indenização por dano moral. Contudo, sem que se caracterize violação à honra, por exemplo, não há que se falar em responsabilidade civil. Será possível sanções de natureza administrativa, tutela de natureza inibitória, mas indenização, sem a violação do direito no resultado da conduta, não será possível.

O dano-prejuízo é representado pela consequência patrimonial ou extrapatrimonial correlata ao dano-evento8.

É preciso compreender também que o pensamento jurídico em geral, principalmente no direito privado, pressupõe um forte cunho dicotômico em que basta a definição de algo que o "contra-algo" ocorra por exclusão9.

Feitas as apresentações iniciais, o art. 42 da LGPD apresenta quatro espécies de danos: danos materiais, morais, individuais e coletivos. Pela redação, deduz-se que o legislador pretendeu estabelecer duas dicotomias: a) danos patrimoniais e danos morais; b) danos individuais e danos coletivos.

Os danos materiais representam uma definição a partir do momento "dano-prejuízo", representam o resultado danoso suscetível de avaliação econômica. O contraposto dicotômico do dano material é o dano extrapatrimonial10.

O dano moral é apenas uma das espécies de dano extrapatrimonial. A doutrina e a jurisprudência definem dano moral como o dano extrapatrimonial decorrente da violação do direito da violação de um direito da personalidade. Sua definição, portanto, parte do direito violado (dano-evento) e não de sua consequência. Logo, o dano moral não é contraposto ao dano material por utilizar critério de definição e identificação completamente distinto. Dessa forma, o art. 42 da LGPD, quando diz dano material e dano moral, em verdade, quer dizer dano material e dano extrapatrimonial.

A segunda dicotomia também está mal empregada. Quando se pensa em dano individual, foca-se na consequência que atinge uma pessoa determinada ou determinável. Trata-se de uma definição, referente ao dano-prejuízo. No entanto, seu contraposto não é o dano coletivo. O dano coletivo é definido a partir do direito ou interesse violado. É a consequência da violação de um direito transindividual (difuso, coletivo em sentido estrito ou individual homogêneo)11. Logo, o dano coletivo representa outro critério de definição que parte de outro momento da análise do dano, o dano-evento.

O contraposto ao dano individual é o dano social. O dano social é uma categoria autônoma de dano que, da mesma forma que o dano individual, parte do dano-prejuízo12. Ele representa a consequência patrimonial ou extrapatrimonial que ultrapassa a esfera do indivíduo13. Essa espécie autônoma já foi debatida nas Jornadas de Direito Civil14, que consagraram sua autonomia conceitual em relação ao dano coletivo e foi reconhecida pelo STJ como categoria indenizável15.

Como se vê, o legislador da LGPD perdeu uma excelente oportunidade de precisão conceitual no tratamento do dano na responsabilidade civil ao disciplinar a matéria a partir de supostas dicotomias que não existem. Pela finalidade pretendida pelo legislador, o controlador e o operador de dados pessoais responderão por danos materiais, extrapatrimoniais, individuais e sociais. A utilização dessas expressões é mais precisa que a empregada e reflete o escopo pretendido pela legislação.

*Silvano José Gomes Flumignan é doutor, mestre e bacharel em direito pela USP. Professor permanente do mestrado profissional do CERS. Professor adjunto da UPE e da Asces/UNITA. Membro do IEA da Asces/UNITA. Procurador do Estado de Pernambuco. Advogado.

__________

1 Art. 5º da LGPD. Para os fins desta Lei, considera-se:

(...) IX - agentes de tratamento: o controlador e o operador.

Ressalta-se que Cíntia Rosa Pereira de Lima entende que o encarregado também seria agente de tratamento (Agentes de tratamento de dados pessoais (controlador, operador e encarregado pelo tratamento de dados pessoais. In: LIMA, Cíntia Rosa Pereira de (coord.). Comentários à lei geral de proteção de dados. São Paulo: Almedina, 2020, p. 279).

2 Art. 5º, VI, da LGPD. Controlador: pessoa natural ou jurídica, de direito público ou privado, a quem competem as decisões referentes ao tratamento de dados pessoais.

3 Art. 5º, VII, da LGPD. Operador: pessoa natural ou jurídica, de direito público ou privado, que realiza o tratamento de dados pessoais em nome do controlador.

4 AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Novos estudos e pareceres de direito privado. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 408-409. "Na verdade, aprofundando teoricamente esse ponto, é nossa opinião que o poder sobre algo ou alguém é sempre um pressuposto da responsabilidade. Os pais têm poder sobre os filhos menores e, por isso, respondem por seus atos; o Estado tem poder sobre os presos e, assim, responde pelo que acontece no cárcere; as empresas têm poder sobre suas atividades e, por causa disso, respondem objetivamente etc. A responsabilidade resulta do poder".

5 Art. 42, caput, da LGPD. O controlador ou o operador que, em razão do exercício de atividade de tratamento de dados pessoais, causar a outrem dano patrimonial, moral, individual ou coletivo, em violação à legislação de proteção de dados pessoais, é obrigado a repará-lo.

6 BERGSTEIN, Laís. Pequenos grandes danos: a relevância da tutela coletiva do consumidor face aos danos de pequena expressão econômica. In: Revista de Direito do Consumidor, vol. 129, p. 341-368 (acesso online p. 1-23), Maio-Jun./2020, p. 4 "Diante de uma vasta gama de interesses que não mais se acomodam no conceito tradicional de ato ilícito, formou-se na pós-modernidade a compreensão de que a reparação de danos deve estar mais ligada à noção de dano injusto." No direito italiano também é o dano injusto que enseja a responsabilidade civil. O art. 2043 do Código Civil italiano, ao tratar do risarcimento per fatto illecito, estipula que: "Qualquer ato malicioso ou pernicioso, que causa danos injustos aos outros, obriga aquele que o fez a compensar o dano".

7 AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Estudos e pareceres de direito privado. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 33-34; FLUMIGNAN, Silvano José. Dano-evento e dano-prejuízo. Dissertação de Mestrado. São Paulo: USP, 2009, p. 204; MENDONÇA, Diogo Naves. Análise econômica da responsabilidade civil: o dano e a sua quantificação. São Paulo: Atlas, 2012, p. 74; REINIG, Guilherme Henrique Lima. A teoria da causalidade adequada no direito civil alemão. In: Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 18, p. 215-248 (acesso online p. 1-25), Jan.-Mar./2019, p. 19.

8 AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Ob. Cit., p. 33-34; FLUMIGNAN, Silvano José. Ob. Cit., p. 204; MENDONÇA, Diogo Naves. Ob. Cit., p. 74; REINIG, Guilherme Henrique Lima. Ob. Cit., p. 19.

[9] FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 132-133.

10 Antônio Junqueira de Azevedo discorda da definição de dano moral como o decorrente da violação de um direito da personalidade. Posto isso, o autor identifica o dano moral como contraposto ao dano material, definindo-o por exclusão (Ob. Cit. p. 378 "O dano moral, por sua vez, é, na verdade, o não-patrimonial; deve ser conceituado por exclusão e é todo aquele dano que ou não tem valor econômico ou não pode ser quantificado com precisão"). Contudo, como é consagrado na doutrina que o dano moral é o decorrente da violação de um direito da personalidade (SCHREIBER, Anderson. Direitos da personalidade. Rio de Janeiro: Atlas, 2011, 16), essa definição não seria possível.

11 BESSA, Leonardo Roscoe. Dano moral coletivo e seu caráter punitivo. In: Revista dos Tribunais, vol. 919, p. 515-528 (acesso online p. 1-10), Maio/2012, p. 6; 10. "Os tribunais brasileiros, com frequência, tem reconhecido a possibilidade jurídica de condenação por dano moral coletivo em face de ofensa a direito metaindividual. (...) Destaque-se, para finalizar estas considerações, que o denominado dano moral coletivo não se confunde com a indenização decorrente de tutela de direitos individuais homogêneos. Constitui-se em hipótese de condenação judicial em valor pecuniário com função punitiva em face de ofensa a direitos difusos e coletivos".

12 AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Ob. Cit., p. 377 e ss.

13 FLUMIGNAN, Silvano José Gomes. Uma nova proposta para a diferenciação entre o dano moral, o dano social e os punitive damages. In: Revista dos Tribunais, vol. 958, p. 119-147 (acesso online p. 1-23), Ago./2015, p. 7.

14 Enunciado nº 456 da V Jornada de Direito Civil do CJF. A expressão "dano" no art. 944 abrange não só os danos individuais, materiais ou imateriais, mas também os danos sociais, difusos, coletivos e individuais homogêneos a serem reclamados pelos legitimados para propor ações coletivas.

15 STJ, Rcl 12.062/GO, Rel. Ministro Raul Araújo, Segunda Seção, julgado em 12/11/2014, DJe 20/11/2014.

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Coordenação

Cintia Rosa Pereira de Lima, professora de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP Ribeirão Preto – FDRP. Doutora em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP com estágio na Ottawa University (Canadá) com bolsa CAPES - PDEE - Doutorado Sanduíche e livre-docente em Direito Civil Existencial e Patrimonial pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (USP). Pó-doutora em Direito Civil na Università degli Studi di Camerino (Itália) com fomento FAPESP e CAPES. Líder e Coordenadora dos Grupos de Pesquisa "Tutela Jurídica dos Dados Pessoais dos Usuários da Internet" e "Observatório do Marco Civil da Internet", cadastrados no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq e do Grupo de Pesquisa "Tech Law" do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP). Presidente do Instituto Avançado de Proteção de Dados – IAPD - www.iapd.org.br. Associada Titular do IBERC - Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil. Membro fundador do IBDCONT - Instituto Brasileiro de Direito Contratual. Advogada.

Cristina Godoy Bernardo de Oliveira, professora doutora da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto – Universidade de São Paulo desde 2011. Academic Visitor da Faculty of Law of the University of Oxford (2015-2016). Pós-doutora pela Université Paris I Panthéon-Sorbonne (2014-2015). Doutora em Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da USP (2011). Graduada pela Faculdade de Direito da USP (2006). Líder do Grupo de Pesquisa Direito, Ética e Inteligência Artificial da USP – CNPq. Coordenadora do Grupo de Pesquisa "Tech Law" do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP). Membro fundador do Instituto Avançado de Proteção de Dados – IAPD.

Evandro Eduardo Seron Ruiz, professor Associado do Departamento de Computação e Matemática, FFCLRP - USP, onde é docente em dedicação exclusiva. Atua também como orientador no Programa de Pós-graduação em Computação Aplicada do DCM-USP. Bacharel em Ciências de Computação pela USP, mestre pela Faculdade de Engenharia Elétrica da UNICAMP, Ph.D. em Electronic Engineering pela University of Kent at Canterbury, Grã-Bretanha, professor lLivre-docente pela USP e pós-Doc pela Columbia University, NYC. Coordenador do Grupo de Pesquisa "Tech Law" do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP). Membro fundador do Instituto Avançado de Proteção de Dados – IAPD.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Newton De Lucca, professor Titular da Faculdade de Direito da USP. Desembargador Federal, presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (biênio 2012/2014). Membro da Academia Paulista de Direito. Membro da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Membro da Academia Paulista dos Magistrados. Vice-presidente do Instituto Avançado de Proteção de Dados.