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Eleições municipais, LGPD e pandemia: uma combinação imprevisível

Eleições municipais, LGPD e pandemia: uma combinação imprevisível.

16/10/2020

Diante do cenário da nova lei 13.709/2018, a chamada Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que entrou em vigor em 18 de setembro de 2020, mudará muita coisa nas eleições municipais de 2020, adiadas para novembro devido à pandemia de coronavírus.

A LGPD, quando interpretada em vistas ao processo eleitoral, visa a coibir as fake news1, as deepfakes2e os disparos em massa, sobretudo mediante a atenção dispensada ao uso de dados pessoais dos eleitores. Isso porque já são comuns as ferramentas que simulam vozes em áudios, vídeos, além daqueles que são chamados robôs – bots (programas de automatização) – sendo que conseguem, por exemplo, atingir grupos de pessoas específicos do colégio eleitoral do candidato que as contrata, por meio de empresas que utilizam os dados pessoais de usuários do facebook e instagram,

Não obstante, as eleições municipais são, tradicionalmente, palco das primeiras aplicações de mudanças estruturais. Dessa vez, não será diferente, pois se sabe que o estado pandêmico altera gravemente, para além da data do pleito, as possibilidades de realização de campanha eleitoral. Além disso, a vigência da nova Lei Geral de Proteção de Dados tende a criar novos desafios para os candidatos, sobretudo, para aqueles desconhecidos do grande público.

As intersecções possíveis entre os temas eleitorais e a proteção de dados são inúmeras. Fala-se, principalmente, na Resolução 23.610/2019 do TSE, que perfaz o assunto em seus dispositivos, dentre os quais, destacam-se:

Art. 31. É vedada às pessoas relacionadas no art. 24 da Lei nº 9.504/1997, bem como às pessoas jurídicas de direito privado, a utilização, doação ou cessão de dados pessoais de seus clientes, em favor de candidatos, de partidos políticos ou de coligações.

§ 1º É proibida às pessoas jurídicas e às pessoas naturais a venda de cadastro de endereços eletrônicos, nos termos do art. 57- E, § 1º, da Lei nº 9.504/1997.

§ 4º Observadas as vedações do caput deste artigo, o tratamento de dados pessoais, inclusive a utilização, doação ou cessão destes por pessoa jurídica ou por pessoa natural, observará as disposições da Lei nº 13.709/2018 (LGPD) (Lei nº 9.504/1997, art. 57-J). (destaques nossos).

A medida possui íntima relação com os ocorridos nos recentes pleitos em toda a comunidade internacional, sobretudo com o método utilizado pela Cambridge Analytica - a captação maciça de dados pessoais, como preferências pessoais e, a partir de tal, a personalização da propaganda nas redes, de modo a atingir os usuários em sua "bolha"3.

Ainda que, a priori, tal relação possa não despertar problematização, basta um olhar atento aos resultados da crescente divisão popular e polarização política nas democracias modernas. O ambiente criado favorece a circulação de desinformação a partir da apresentação tautológica de uma “realidade virtual” personalizada que agrada o usuário e o aproxima do candidato, enquanto cria uma barreira intransponível para o contato com os outros, impossibilitando que as informações cheguem de maneira democrática.

A LGPD, portanto, contribuirá para coibir tais práticas por meio da obrigatoriedade do consentimento do usuário em hipóteses de captação de dados pessoais, por exemplo, para que este faça parte da listagem de disparos propagandísticos em massa como já mencionado.

É importante esclarecer que, na LGPD, não se proibiu a coleta de dados, o que se lê é a exigência do consentimento expresso do eleitor, com esclarecimento da finalidade para práticas de utilização dos dados pessoais. Trata-se de instituto novo e que carece de mais regulamentações por parte do legislador, da futura Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) e de esclarecimentos pelas resoluções do Tribunal Superior Eleitoral como explorado por Cíntia Rosa Pereira de Lima e Maria Eduarda Sampaio de Sousa na Coluna Migalhas de Proteção de Dados "LGPD e combate às fake news"4.

O PL 2630, polêmico projeto de 'Lei das Fake News', prevê, em seu texto inicial, tratamento específico para a disseminação de mensagens em massa, sobretudo em período de propaganda eleitoral, emergência ou calamidade pública, determinando, nessas situações, a limitação de encaminhamento de mensagem privada a um usuário ou grupo, conforme o §1º do art. 135 (do texto inicial).

Essa medida vai ao encontro da Resolução 23.610/2019 do TSE. São diversas maneiras de se enfrentar o problema da desinformação, para além da mera problemática da coleta de dados. Em todo caso, fomentam-se boas práticas no ambiente virtual, como a exigência de consentimento, a transparência e a vedação às contas inautênticas.

Por esses motivos que a legislação eleitoral no Brasil é reconhecida por seu alto nível de intervenção, com inúmeras regras para realização da propaganda, como as legislações sobre comício, aparições midiáticas e regulamentações de audiovisual. Ainda, a campanha eleitoral terá duração de, aproximadamente, 45 dias6, sem possibilidade de doações financeiras provenientes de pessoa jurídica, proibidas pelo STF em 2015.

Depreende-se disso uma grande dificuldade para que novos candidatos possam despontar no cenário político, com uma taxa alta de reeleição e perpetuação de nomes já conhecidos.

A forma como se delineará, juridicamente, a campanha eleitoral em respeito à proteção de dados, portanto, passará pela compreensão dos candidatos e de sua equipe acerca do que são dados pessoais sensíveis e dados pessoais e como será o tratamento dos dados no período de campanha.

O que são dados pessoais sensíveis? 

A própria LGPD define em seu art. 5º, inc. II, que dados pessoais sensíveis são: "dado pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural"7.

Portanto, os dados dos eleitores podem ser dados pessoais sensíveis no que se referem às preferências políticas e pautas ideológicas dos candidatos, às filiações partidárias, às páginas e perfis dos candidatos curtidas, etc.

O candidato que conhecer tais dados dos eleitores, por meio de uma equipe de marketing eleitoral, pode traçar sua campanha a fim de atingir públicos específicos e em grande quantidade. Acontece que a LGPD oferece proteção aos dados pessoais sensíveis e isso tem implicação direta numa campanha eleitoral, pois delimita o que pode ou não ser utilizado.

Vale ressaltar o exemplo problemático do sistema "Filiaweb", da Justiça Eleitoral, que disponibiliza a relação de filiados a partidos políticos, um dado sensível, sem necessidade de qualquer informação ou consentimento. Para tanto, questiona-se a validade de tal mecanismo com a vigência do novo dispositivo. Contrapõem-se transparência e direito à privacidade.

Essa limitação para a utilização de dados pessoais sensíveis exige o consentimento de cada usuário, e a LGPD dispõe, em seu art. 7,º as hipóteses em que pode haver tratamento de dados pessoais.

As eleições municipais de 2020 e a LGPD 

Com a campanha eleitoral em curso, o que se verifica é o aumento do marketing político dos candidatos nas redes sociais. Mesmo com a proibição do TSE aos disparos de mensagens em massa, o jornal Folha de São Paulo identificou ao menos 5 empresas vendendo o serviço de coleta de dados de perfis no facebook, instagram e whatsapp e oferecendo a candidatos8. Em razão disso, o Ministério Público eleitoral já anunciou abertura de investigação sobre o caso9.

No Brasil, há 91 milhões de usuários do Instagram10; aproximadamente ,141 milhões de usuários do facebook11 e, aproximadamente, 142 milhões de usuários do aplicativo whatsapp12. Acrescenta-se que, por mais que essas plataformas sejam distintas, pertencem ao mesmo grupo empresarial Facebook, possibilitando o compartilhamento de dados de um mesmo usuário que possua 2 ou mais plataformas da empresa.

Com tantos eleitores utilizando as redes sociais, sobretudo, neste período de isolamento social, é lógico e provável que os candidatos tracem seu marketing político com os dados do usuário, entretanto, essa prática, como entendeu o TSE, visa a burlar o processo eleitoral, impedindo que o eleitor reflita livremente sobre os candidatos, pois seria alvo de mensagens direcionadas quando utilizasse a sua rede. A prática ilegal na utilização de dados pessoais prevê multa de até R$50 milhões.

Ressalta-se, mais uma vez, que a problemática das eleições municipais é complexa. Para além das novas restrições previstas, o cenário de adiamento eleitoral e das outras restrições legais no sentido de coibir abusos, dificulta, em muito, a viabilidade de novos candidatos desconhecidos disputarem a eleição em pé de igualdade com aqueles já conhecidos e que já puderam ocupar cargos eletivos anteriormente.

É inevitável que surjam conflitos de interpretação na aplicação da LGPD nas lides eleitorais, tendo em vista muitas lacunas legais, o contexto de pandemia, o pioneirismo dos dispositivos legais e o tradicional protagonismo do Tribunal Superior Eleitoral em editar Resoluções que regulam a dinâmica das campanhas eleitorais.

Essa realidade deve ser levada em conta ao se analisar a extensão das restrições trazidas pela LGPD no que concerne a sua aplicação nas eleições. Assim, ao se exigir o consentimento do eleitor para o recebimento de informações sobre o candidato, para coletar de dados e para as demais operações possíveis; visa-se a estabelecer uma barreira entre o cidadãos e o possível representante, fato que pode tornar a democracia ainda mais indireta, impactando, negativamente, no Estado Democrático de Direito, mas que também auxilia na redução da manipulação do processo eleitoral pelo abuso na utilização de dados dos eleitores. Por conseguinte, deve-se buscar um equilíbrio entre estas duas forças (disputas eleitorais em que haja viabilidade de novos candidatos disputarem de forma equânime as eleições e proteção dos dados) para preservar os princípios democráticos de nosso Estado.

*Cristina Godoy Bernardo de Oliveira é professora doutora da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto – Universidade de São Paulo desde 2011. Academic Visitor da Faculty of Law of the University of Oxford (2015-2016). Pós-doutora pela Université Paris I Panthéon-Sorbonne (2014-2015). Doutora em Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da USP (2011). Graduada pela Faculdade de Direito da USP (2006). Líder do Grupo de Pesquisa Direito, Ética e Inteligência Artificial da USP – CNPq. Coordenadora do Grupo de Pesquisa "Tech Law" do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP). Associada fundadora do Instituto Avançado de Proteção de Dados – IAPD.

**Tiago Augustini de Lima é graduando em Direito na Faculdade de Direito de Ribeirão Preto - USP, bolsista PET e bolsista da Iniciação Científica PUB-USP.

***Pedro Sberni Rodrigues é graduando em Direito na Faculdade de Direito de Ribeirão Preto - USP.

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1 SOUSA, Maria Eduarda Sampaio de. Proteção de dados pessoais: LGPD e possibilidade de combate às fake News. Disponível aqui, último acesso em 15 de outubro de 2020.

2 BRASIL. Justiça Eleitoral. Disponível aqui. Acesso em 06 de outubro de 2020.

3 SOUSA, Maria Eduarda Sampaio de. LGPD e Eleições: Proteção dos Dados Pessoais dos Eleitores na era do Big Data. Disponível aqui, último acesso em 15 de outubro de 2020.

4 Disponível aqui, último acesso em 14 de outubro de 2020.

5 BRASIL. PL 2630/2020. Art. 13. Os provedores de aplicação que prestarem serviços de mensageria privada desenvolverão políticas de uso que limitem o número de encaminhamentos de uma mesma mensagem a no máximo 5 (cinco) usuários ou grupos, bem como o número máximo de membros de cada grupo de usuários para o máximo de 256 (duzentos e cinquenta e seis) membros. §1º Em período de propaganda eleitoral, estabelecido pelo art. 36 da lei 9.504 de 1997 e durante situações de emergência ou de calamidade pública, o número de encaminhamentos de uma mesma mensagem fica limitado a no máximo 1 (um) usuários ou grupos. Disponivel aqui, último acesso em 14 de outubro de 2020.

6 Disponível aqui, último acesso em 14 de outubro de 2020.

7 Cf. PEROLI, Kelvin. O que são dados pessoais sensíveis? Instituto Avançado de Proteção de Dados, Ribeirão Preto, 03 de novembro de 2019. Disponível aqui, último acesso em 14 de outubro de 2020.

8 Disponível aqui, último acesso em 14 de outubro de 2020.

9 Disponível aqui, último acesso em 14 de outubro de 2020.

10 Disponível aqui, último acesso em 14 de outubro de 2020.

11 Disponível aqui, último acesso em 14 de outubro de 2020.

12 Disponível aqui, último acesso em 14 de outubro de 2020.

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Coordenação

Cintia Rosa Pereira de Lima, professora de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP Ribeirão Preto – FDRP. Doutora em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP com estágio na Ottawa University (Canadá) com bolsa CAPES - PDEE - Doutorado Sanduíche e livre-docente em Direito Civil Existencial e Patrimonial pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (USP). Pó-doutora em Direito Civil na Università degli Studi di Camerino (Itália) com fomento FAPESP e CAPES. Líder e Coordenadora dos Grupos de Pesquisa "Tutela Jurídica dos Dados Pessoais dos Usuários da Internet" e "Observatório do Marco Civil da Internet", cadastrados no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq e do Grupo de Pesquisa "Tech Law" do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP). Presidente do Instituto Avançado de Proteção de Dados – IAPD - www.iapd.org.br. Associada Titular do IBERC - Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil. Membro fundador do IBDCONT - Instituto Brasileiro de Direito Contratual. Advogada.

Cristina Godoy Bernardo de Oliveira, professora doutora da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto – Universidade de São Paulo desde 2011. Academic Visitor da Faculty of Law of the University of Oxford (2015-2016). Pós-doutora pela Université Paris I Panthéon-Sorbonne (2014-2015). Doutora em Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da USP (2011). Graduada pela Faculdade de Direito da USP (2006). Líder do Grupo de Pesquisa Direito, Ética e Inteligência Artificial da USP – CNPq. Coordenadora do Grupo de Pesquisa "Tech Law" do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP). Membro fundador do Instituto Avançado de Proteção de Dados – IAPD.

Evandro Eduardo Seron Ruiz, professor Associado do Departamento de Computação e Matemática, FFCLRP - USP, onde é docente em dedicação exclusiva. Atua também como orientador no Programa de Pós-graduação em Computação Aplicada do DCM-USP. Bacharel em Ciências de Computação pela USP, mestre pela Faculdade de Engenharia Elétrica da UNICAMP, Ph.D. em Electronic Engineering pela University of Kent at Canterbury, Grã-Bretanha, professor lLivre-docente pela USP e pós-Doc pela Columbia University, NYC. Coordenador do Grupo de Pesquisa "Tech Law" do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP). Membro fundador do Instituto Avançado de Proteção de Dados – IAPD.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Newton De Lucca, professor Titular da Faculdade de Direito da USP. Desembargador Federal, presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (biênio 2012/2014). Membro da Academia Paulista de Direito. Membro da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Membro da Academia Paulista dos Magistrados. Vice-presidente do Instituto Avançado de Proteção de Dados.