1. Introdução
Este artigo discute o teto indenizatório no caso de responsabilidade civil por transporte aéreo internacional. Trata-se de tema relevante por ter sido fruto de harmonização jurídica entre os países signatários da Convenção de Montreal.
O tema agitou intensamente a jurisprudência. Mas já podemos enxergar uma orientação estabilizada pelo STF, a qual apontaremos neste artigo.
Desde logo, cabe um alerta: Não trataremos de transporte aéreo nacional, e sim de internacional. O transporte aéreo nacional está fora do âmbito normativo da Convenção de Montreal. Logo, o teto indenizatório abaixo abordado apenas se aplica a transporte aéreo internacional.
Passamos a aprofundar o tema.
2. Indenização em transporte aéreo internacional de pessoas e de carga
Em transporte aéreo internacional de pessoas e de carga, a indenização a ser paga pelo transportador sujeita-se ao teto previsto no art. 22 da Convenção de Montreal (decreto 5.910/06), que sucedeu a Convenção de Varsóvia (decreto 20.704/31). Segundo o art. 22, itens “2” e “3”, dessa Convenção, esse teto pode ser flexibilizado no caso de o dano ter recaído sobre a bagagem do passageiro ou sobre a carga transportada, desde que, no momento da entrega da coisa, tenha sido declarado expressamente o seu valor e tenha sido pago o acréscimo de preço eventualmente cobrado.
A ideia é, em voos internacionais, dar previsibilidade financeira ao transportador diante de um risco inerente à sua atividade, permitindo-lhe contratar seguro e repassar o gasto com o pagamento do prêmio desse seguro ao preço final cobrado do transportado. Se o cliente quiser uma indenização superior, cabe-lhe fazer a declaração do valor da coisa transportada e pagar eventual acréscimo de preço exigido pelo transportador. Esse acréscimo, na prática, será o repasse do custo adicional com a contratação de seguro. Trata-se de regra adotada por diversos países signatários da Convenção de Montreal.
Trata-se de convenção importante para saúde financeira das empresas de transporte aéreo, ao permitir o adequado planejamento financeiro mediante a contratação de seguros e a correlata formação do preço final do serviço. Sem essa previsibilidade, as empresas de transporte aéreo ficariam sujeitas a uma situação de imprevisibilidade financeira diante dos diversos valores indenizatórios que poderiam ser arbitrados pelo Poder Judiciário de diferentes países, o que acabaria por inviabilizar a atividade econômico ou por estimular um aumento excessivo do preço do serviço de transporte.
Alertamos que o entendimento acima também vale para transporte internacional aéreo de cargas, e não apenas de pessoas (STF, ED-ARE-ED-AgR-EDv-AgR-ED 1.372.360, rel. min. Carmén Lúcia, rel. para acórdão min. Gilmar Mendes, DJe 13/6/24). Assim, se uma empresa que contrata o transporte aéreo internacional de carga sem informar o valor dos bens transportados e consequentemente sem pagar eventual acréscimo de preço por conta do seguro não terá direito a indenização por dano material em importe superior ao teto da Convenção de Montreal. O art. 22, itens “2” e “3”, dessa convenção só flexibilização o teto indenizatório para a hipótese de haver essa declaração especial de valor dos bens e eventual pagamento do preço adicional do serviço.1
O STF somente afasta o teto indenizatório supracitado em uma hipótese: Indenização por dano moral. Isso, porque o art. 22 da Convenção de Montreal não faz qualquer menção aos danos morais. No caso de dano moral, aplicam-se as leis nacionais, inclusive o CDC (STF, Tema 210; RE 1.394.401/SP, Pleno e RE 636.331/RJ, rel. min. Gilmar Mendes, j. 25/5/17). O texto constitucional dispõe expressamente sobre o tema (art. 178, caput, CF).
Nesse sentido, o STF admitiu a condenação da empresa aérea Lufthansa ao pagamento de R$ 12.000,00 a título de indenização por dano moral causado pelo atraso de voo e extravio de bagagem em transporte aéreo internacional. Não aplicou o limite de valores das convenções internacionais supracitadas (STF, RE 1.394.401/SP, Pleno). O STJ segue a mesma linha (STJ, REsp 1842066/RS, 3ª Turma, rel. ministro Moura Ribeiro, DJe 15/6/20).
Embora o julgado acima lide com transporte de pessoas, entendemos que ele também abrange transporte aéreo internacional de cargas. Trata-se de hipótese pouco usual, pois o mais comum é que se fale em dano moral em transporte áereo internacional de pessoas, em hipóteses de transtornos causados ao passageiro por danos a si ou à sua bagagem. Seja como for, teoricamente, seria possível discutir indenização por dano moral no caso de transporte internacional apenas de carga. Pense, por exemplo, no extravio de uma carga que consista no cadáver de um familiar.
Entendemos que, mesmo no caso de transporte internacional de carga, o teto indenizatório da Convenção de Montreal não será aplicável para o dano moral pelos mesmos motivos já citados acima. Afinal, o dano moral não está no âmbito normativo dessa convenção, que só trata de dano material, conforme textualmente afirmado pelo Ministro Gilmar Mendes no seu voto no julgamento do supracitado RE 636.331.
Nada impede, porém, que, em relações não consumeristas, as partes, por pacto expresso, imponham um limite de indenização por dano moral no caso de transporte de carga. Afinal de contas, não há motivos para considerar abusiva essa cláusula em transportes feitos por empresas, que, com a cláusula, alocarão os seus riscos. O art. 421-A do CC prestigia a alocação de riscos definida pelas partes.
Todavia, em relações de consumo, cláusula que limite a indenização por dano moral deve ser considerada abusiva à luz do art. 51 do CDC, ainda mais por estarmos a tratar de direitos da personalidade. O risco de, por conta de um acidente aéreo, causar a morte ou a incapacidade física de uma pessoa não pode ser limitado por uma cláusula contratual imposta à parte mais vulnerável contratualmente, o consumidor.
Cabe um alerta: Tudo o que foi exposto acima estende-se contra a seguradora que se sub-rogou nos direitos do segurado que sofreu o dano. Afinal de contas, trata-se de sub-rogação: O direito é o mesmo, mas sob nova titularidade. Suponha que uma empresa contrate o transporte de uma carga. Por cautela, essa empresa, pessoalmente, contrata um seguro para receber o valor integral no caso de extravio. Acontecendo o sinistro, a seguradora pagará à empresa a cobertura contratada e, assim, sub-rogar-se-á nos direitos indenizatórios dessa empresa contra o transportador. Com essa sub-rogação, a seguradora poderá exercer direito de regresso contra o transportador, pleiteando a indenização que seria devida ao segurado. Ora, nesse caso, o teto indenizatório da Convenção de Montreal será aplicado contra a seguradora nesse pleito regressivo.
Nesse sentido, em um caso de transporte internacional aéreo de carga, o STF restringiu ao teto indenizatório da Convenção de Montreal o valor a ser pago por uma importante transportadora aérea2 a uma seguradora3 que havia se sub-rogado nos direitos do dono da mercadoria avariada. Na ação de regresso proposta contra a transportadora, a seguradora pleiteava o reembolso do valor de R$ 248.916,22, que ela havia pagado ao dono da mercadoria a título de cobertura securitária. Todavia, o STF endossou o entendimento do TJ/SP nesse caso e limitou esse reembolso ao teto indenizatório do art. 22, item “3”, da Convenção de Montreal (STF, ED-ARE-ED-AgR-EDv-AgR-ED 1.372.360, rel. min. Carmén Lúcia, rel. para acórdão min. Gilmar Mendes, DJe 13/6/24; TJ/SP, apelação 1103637-14.2018.8.26.0100, 13ª Câmara de Direito Privado, rel. des. Nelson Jorge Júnior, DJe 13/2/20).
3. Conclusão
A pacificação, pelo STF, do tema acerca do limite indenizatória da indenização em transporte aéreo internacional é salutar para dar previsibilidade a esse importante mercado. Na prática, as empresas de transporte aéreo internacional apenas terão de estar preparadas para situações mais excepcionais de indenização por dano moral, já que inexiste teto indenizatório para esse caso. Trata-se, porém, de um risco que já é internalizado pelas empresas.
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1 Art. 22, item “2”, da Convenção de Montreal: “2. No transporte de bagagem, a responsabilidade do transportador em caso de destruição, perda, avaria ou atraso se limita a 1.000 Direitos Especiais de Saque por passageiro, a menos que o passageiro haja feito ao transportador, ao entregar-lhe a bagagem registrada, uma declaração especial de valor da entrega desta no lugar de destino, e tenha pago uma quantia suplementar, se for cabível. Neste caso, o transportador estará obrigado a pagar uma soma que não excederá o valor declarado, a menos que prove que este valor é superior ao valor real da entrega no lugar de destino.”
2 O nome da transportadora era Cargolux Airlines Internacional S.A.
3 O nome da seguradora era Seguros Sura S/A.