Migalhas de Direito Privado Estrangeiro

Esvanecimento dos muros divisórios entre a família do common law e a do civil law – Parte II

A influência do direito romano sobre o direito inglês se destacou com a introdução da equity ao lado do common law, culminando na unificação pelo Judicature Acts de 1873 e 1875.

23/7/2024

Daremos seguimento à coluna anterior.

A influência do direito romano sobre o direito inglês ficou mais notável com o surgimento, ao lado do direito comum (common law), do outro sistema jurídico inglês: O da equity.

O sistema do common law exibiu sinais de insuficiência para lidar com as transformações sociais e com o surgimento de questões novas e complexas. Seu sistema era representado por três principais cortes (King’s Bench, Common Pleas e Exchequer), acessíveis por uma malha processual bem rigorosa e extremamente formal de ações e remédios. Seu forte apego aos precedentes petrificaram o sistema diante de situações mais complexas.

Como uma espécie de válvula de escape, passou-se a admitir o direito de petição diretamente ao rei para resolver questões não abrangidas pelo common law. Não havia nenhum procedimento a ser seguido. O rei e os seus conselheiros, então, passaram a julgar as petições por equidade. Essa tarefa passou a ser desincumbida pelo Lord Chancellor, que, até o reinado de Henrique VII (em meados do século XVI), sempre era um clérigo. Enquanto clérigo, suas decisões por equidade e a criação de procedimentos foram manifestamente influenciadas pelo direito canônico.1

Os sistemas do common law e da equity coexistiram até sua unificação nos anos de 1873 e 1875, com o Judicature Acts. A influência do direito romano foi evidente até essa unificação, especialmente no sistema da equity.2

Enfim, a influência do direito romano sobre o inglês existiu inequivocamente, ainda em intensidade e forma diferentes do que sucedeu no âmbito da civil law. A influência do direito romano foi mais limitada, como realça René David3 na sua obra “O Direito Inglês”, escrita na década de 1960.

Charles P. Sherman4 critica a postura de juristas ingleses que, apesar de valerem-se de institutos do direito romano com muita frequência, negam a origem, como se se tratasse de criação genuinamente inglesa. Critica o apego ao mito da insularidade do direito inglês.

A romanização do direito inglês foi ampla. Inúmeros princípios básicos do direito inglês em matéria de, por exemplo, Sucessões, Obrigações, Contratos, Direitos Reais, Provas, Posse, Responsabilidade Civil e outras advêm do direito romano. Até o famoso princípio de que “a casa de cada homem é seu castelo” (every man’s house is his castle”) foi importado pelo direito inglês dos romanos: Não tem origem anglo-saxã.5

Sob essa ótica, o direito inglês e o direito da europa continental não são, na sua essência, tão distintos assim. Ambos encontram pontos em comum por serem herdeiros (ainda que em diferentes intensidades) do direito romano. Não é, portanto, adequado o mito desenvolvido pelos próprios juristas ingleses de que o seu direito é totalmente apartado e que foi fruto de uma conquista nacional derivada do isolamento dos britânicos em relação ao direito da Europa continental.6

A influência do direito romano sobre o direito inglês é inegável, ainda que se tenha de reconhecer as particularidades decorrentes do modo pelo qual o direito inglês se desenvolveu. Além da interação cultural com os romanos durante o tempo de domínio romano sobre a ilha da Grã-Bretanha7, o domínio normando do século XI tornou inevitável a interface do direito inglês com a cultura jurídica romana. Aliás, no século XI, também houve interrelações do direito inglês com o romano por conta do reinado que o nórdico Canuto II exerceu sobre a Inglaterra, a Dinamarca e a Noruega concomitantemente.8

O próprio modo de pensar dos juristas ingleses (os common lawyers) não era tão diferente dos juristas continentais do medievo. O direito inglês aproximava-se do ius commune da Europa medieval e do direito romano clássico (direito europeu continental anterior à era das codificações). Em ambos os casos, os juristas raciocinavam mediante a análise de cada caso concreto a partir de um juízo prudencial, o que gerava um desenvolvimento gradual e casuístico do direito.9 Como lembra António Manual Hespanha, o direito inglês assumiu uma estrutura bem próxima ao agere per formulas do ius pretorium romano (Hespanha, 2012, p. 252).

Ao contrário do que se pensa, a edição de leis também ocorreu na Ilha. Aliás, os reis ingleses dos séculos XII e XIII foram os únicos soberanos europeus que legislaram com abundância em direito privado, com concessão de numerosos writs e com normas. Não se tratava de normas gerais e abstratas, mas, ao conceder writs, positivam o direito, à semelhança do que faziam os editos dos pretores romanos.10

Os precedentes jurisprudenciais na Inglaterra só passaram a ter efeitos formalmente vinculantes na segunda metade do século XIX. Essa noção de efeito vinculante já existia na Europa continental medieval para as decisões das cortes superiores (stylus curiae). As Ordenações Afonsinas, por exemplo, davam efeito vinculante às decisões da Casa de Suplicação. Como se vê, apesar de o common law ser associado ao prestígio aos precedentes jurisprudenciais, a europa continental europeia foi pioneira em valer-se de eficácia vinculante. Isso é mais um indicativo da proximidade do direito inglês ao direito europeu continental anterior à fase das codificações.11

É claro que a influência romana é recepcionada de diferentes formas entre os países. Nem mesmo os países da Europa continental receberam o direito romano da mesma maneira, do que dá prova haver manuais de direito comparado separando as famílias jurídicas romanas (nas quais se inclui o direito francês) das famílias jurídicas germânicas (nas quais se incluem o direito alemão). É o que sublinha Reinhard Zimmermann.12

Por exemplo, há diversas questões que são resolvidas de modo diferente entre os países a família do civil law. Comparando, por exemplo, o direito alemão com o francês, Zimmermann13 aponta algumas diferenças entre o Código Civil Alemão (BGB - Bürgerliches Gesetzbuch) e o Código Civil francês (Code Civil):

  1. “Segundo o BGB, o vendedor responde pela transmissão da propriedade do objeto vendido, enquanto que, no Code Civil, sua responsabilidade articula-se pela evicção”14 (Zimmermann, 2017, p. 19).
  2. O direito alemão especifica diversas modalidades de descumprimento da obrigação; o direito francês trata esse tema sob o conceito amplo de inexecução;
  3. A transmissão da propriedade do bem dá-se por meio do contrato no direito francês e por meio de um ato separado e abstrato no direito alemão;
  4. O direito francês não disciplina, de modo específico, a mora creditoris, ao contrário do direito alemão;
  5. A compensação ocorre ipso iure no direito francês e mediante declaração expressa no direito alemão.

Essas diferenças, porém, não eclipsam a existência de pontos em comum no modo de estruturação desses direitos, o que justifica o enquadramento dos direitos francês e alemão na família romano-germânica.

Além da influência do antigo direito romano pelas razões históricas supracitadas, o direito inglês manteve interação com as produções jurídicas da europa continental de cada época.

O moderno direito contratual inglês, por exemplo, foi delineado mediante robustos empréstimos de autores como Robert Joseph Pothier (1699-1772) e Jean Domat (1625-1696), o jurista holande^s Hugo Grocio (1583-1645), o jurista sui'c¸o Jean-Jacques Burlamqui (1694-1748) e os juristas alema~es Samuel Pufendorf (1632-1964) e Anton Friedrich Justus Thibaut (1772-1840). Reinhard Zimmermann15 lembra, entre outros exemplos, que a doutrina inglesa da frustração do fim do contrato deriva da cláusula rebus sic standibus, conceito romano desenvolvido na Europa continental.

A doutrina reconhece que, ao longo do tempo, a família do common law e a do civil law têm-se aproximado, com incorporação recíproca de características uma das outras. Há uma progressiva e gradual confluência das duas famílias, seja no âmbito do direito substantivo, seja sob a perspectiva metodológica e institucional.16

No direito inglês, por exemplo, identificam-se uma profusão de edição de leis (acts) e a postura dos juristas ingleses em apreciar conceitos da ciência jurídica, metodologia própria do civil law. É o caso, por exemplo, do Children and Families Act 2014, do Law of Property Act 1925, do Eviction Act 1977. Embora não haja códigos, esses acts acabam retratando uma aproximação à concepção do civil law.

Em sua obra de 1952 – “História do Direito Privado Moderno” (Privatrechtsgeschichte der Neuzeit) –, Franz Wieacker17 já indigitava essa mudança de estilo jurídico tanto nos Estados Unidos quanto na Inglaterra. Apontava para uma aproximação ao estilo abstrato e racional dos sistemas jurídicos do civil law, com uma “progressiva tendência para codificações parciais (consolidations) ou para as súmulas da jurisprudência em restatements oficiosos (USA)” e com “uma certa limitação do controle judiciário das funções públicas”.18

No direito dos países do civil law, verifica-se uma valorização dos precedentes jurisprudenciais e da regulação jurídica a partir dos casos concretos, metodologia afeta ao common law.19

Tanto na Inglaterra quando na Europa continental, o direito é delineado pelo legislador, pelos juízes e pela doutrina, ainda que o peso de cada um na produção jurídica possa oscilar entre cada nação.20

Esse raciocínio estende-se também ao Brasil, que, apesar de ser enquadrado na família do civil law, vem desenvolvendo fortemente concepções e metodologias próprias da família do common law, como a sobrevalorização dos precedentes jurisprudenciais e o casuísmo na produção jurídica.21

A própria dicotomia civil law e common law perdeu, ao menos em parte, o sentido prático. Ela permite apenas uma visão geral, como a de quem vê o mapa-múndi em uma escala cartográfica pequena (“pouco zoom”). Mais cirúrgico, nos estudos comparatista, é cotejar os sistemas jurídicos de cada país.

Além da supracitada aproximação entre as duas famílias, há muitas oscilações entre os países integrantes de cada uma das famílias. Entre os países do civil law, há países com tradição romanísticas, outros com tradição germânica e outras com tradição nórdica. Entre os países do common law, também há distinções estruturais, como entre o direito inglês e o direito norte-americano.22

No direito inglês, há institutos jurídicos de direito privado desenvolvidos de modo mais específico, a exemplo do trust, dos deveres fiduciários e da doutrina da consideration. Há também um maior peso à liberdade contratual diante de princípios intervencionistas, como o da função social. A ideia de codificação não granjeou muitos adeptos diante da crença de que, na verdade, regras abstratas não poderiam ser aptas a regular todo o direito de modo mais eficaz do que a análise dos casos concretos.23

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1 CABRAL, Gustavo César Machado. Ius Comune: uma introdução à história do direito comum do Medievo à Idade Moderna. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, pp. 104-106.

2 CABRAL, Gustavo César Machado. Ius Comune: uma introdução à história do direito comum do Medievo à Idade Moderna. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, p. 105-106.

3 DAVID, René. O Direito Inglês. Tradução: Eduardo Brandão; revisão técnica da tradução: Isabella Soares Micali. São Paulo: Martins Fontes, 2000, pp. 2-15.

4 SHERMAN, Charles P. The Romanization of English Law. In: The Yale Law Journal, vol. 23, n. 23, 1914, pp. 328-329.

5 SHERMAN, Charles P. The Romanization of English Law. In: The Yale Law Journal, vol. 23, n. 23, 1914, p. 324.

6 ZIMMERMANN, Reinhard. Derecho privado europeo. Buenos Aires/Argentina: Editora Astrea, 2017, pp. 18-23.

7 VIGIL NETO, Luis Inácio. De Legibus Et De Consuetudinibus /Estudos Sobre A História Do Direito Na Inglaterra / Studies On The History Of Law In England. In: Revista Jurídica – Unicuritiba, v. 23, n. 7, 2009 (Disponível aqui. Acesso em    26 de março de 2022).

8 SHERMAN, Charles P. The Romanization of English Law. In: The Yale Law Journal, vol. 23, n. 23, 1914, pp. 319-320.

9 ATAÍDE JR., Jaldemiro Rodrigues de. O Mito Da Insularidade do Common Law Inglês. Publicado em 12 de junho de 2019 (Disponível aqui. Acesso em 26 de março de 2022).

10 ATAÍDE JR., Jaldemiro Rodrigues de. O Mito Da Insularidade do Common Law Inglês. Publicado em 12 de junho de 2019 (Disponível aqui. Acesso em 26 de março de 2022)..

11 ATAÍDE JR., Jaldemiro Rodrigues de. O Mito Da Insularidade do Common Law Inglês. Publicado em 12 de junho de 2019 (Disponível aqui. Acesso em 26 de março de 2022)..

12 ZIMMERMANN, Reinhard. Derecho privado europeo. Buenos Aires/Argentina: Editora Astrea, 2017, p. 19.

13 ZIMMERMANN, Reinhard. Derecho privado europeo. Buenos Aires/Argentina: Editora Astrea, 2017, pp. 19-20

14 Tradução livre.

15 ZIMMERMANN, Reinhard. Derecho privado europeo. Buenos Aires/Argentina: Editora Astrea, 2017, p. 21.

16 Zimmermann lembra que “Basil Markesinis fala de uma ‘convergência gradual’, James Gordley de uma ‘diferença esvanescente’ entre common law e civil law” (ZIMMERMANN, Reinhard. Derecho privado europeo. Buenos Aires/Argentina: Editora Astrea, 2017).

17 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, pp. 573-574

18 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, p. 574.

19 ZIMMERMANN, Reinhard. Derecho privado europeo. Buenos Aires/Argentina: Editora Astrea, 2017, p. 22; Ataíde Jr., 2019.

20 ZIMMERMANN, Reinhard. Derecho privado europeo. Buenos Aires/Argentina: Editora Astrea, 2017, p. 23; ATAÍDE JR., Jaldemiro Rodrigues de. O Mito Da Insularidade do Common Law Inglês. Publicado em 12 de junho de 2019 (Disponível aqui. Acesso em 26 de março de 2022).

21 Pasqualotto, 2019.

22 DIAS, Daniel; ROSENVALD, Nelson; VENTURI, Thaís Goveia Pascoaloto; FORTES, Pedro. O Direito Privado na Common Law. Publicado em 10 de agosto de 2020 (Disponível aqui. Acesso em 10 de agosto de 2020).

23 DIAS, Daniel; ROSENVALD, Nelson; VENTURI, Thaís Goveia Pascoaloto; FORTES, Pedro. O Direito Privado na Common Law. Publicado em 10 de agosto de 2020 (Disponível aqui. Acesso em 10 de agosto de 2020).

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Colunista

Carlos E. Elias de Oliveira é membro da Comissão de Reforma do Código Civil (Senado Federal, 2023/2024). Pós-Doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). 1º lugar em Direito no vestibular 1º/2002 da UnB. Ex-advogado da AGU. Ex-assessor de ministro STJ. Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e Registral. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário (único aprovado no concurso de 2012). Advogado, parecerista e árbitro. Instagram: @profcarloselias e @direitoprivadoestrangeiro.