Migalhas de Direito Privado Estrangeiro

Esvanecimento dos muros divisórios entre a família do common law e a do civil law – Parte I

A distinção tradicional entre família do common law e do civil law está menos clara. O direito inglês foi influenciado pelo direito romano desde a era romana na Britânia até hoje, desafiando a ideia de isolamento cultural.

15/7/2024

Apesar da tradicional distinção da família do common law com a do civil law, essa diferença é cada vez menos nítida. Essa dicotomia não é, de todo, adequada.

Ao contrário do mito da insularidade do direito inglês (segundo a qual o direito inglês teria-se desenvolvido em postura de isolacionismo cultural em relação ao direito da Europa continental), a Inglaterra, desde a conquista normanda1, manteve-se em interação com a cultura jurídica da Europa continental. Foi, pois, influenciada pelo direito romano.2

Houve, ainda, influência do direito romano ao tempo do domínio da Ilha pelos romanos nos anos 43 a 410 d.C.: A Ilha correspondia à província romana de Britânia (Britannia). Charles Phineas Sherman3 destacou que, nos séculos II e III, o direito romano avançou rapidamente pela Grã-Bretanha, fato atestado pelos juristas romanos Javolenus e Ulpiano. Registra que a Grã-Bretanha contou, ao longo de três anos, com altos tribunais romanos compostos por jurisconsultos ilustres, como Ulpiano, Paulus e Papiniano. Sobre esse episódio, Sherman faz esta metáfora: “Era como se a Suprema Corte dos EUA fizesse sessões no Alasca”4

A influência do direito romano na Grã-Bretanha também ocorreu no final do século VI com a reintrodução do cristianismo, com a conversão dos anglo-saxões.5

Juristas ingleses mantiveram essa conexão, com produções jurídicas marcantes na recepção e na adaptação da cultura jurídica da Europa continental. São os casos, por exemplo, de juristas ingleses, como Henry of Bacton (1210-1268), além de vários juízes.6

A fundação da Universidade de Oxford em 1090 também foi um marco no diálogo com o direito romano. Nos seus quadros de docentes, esteve o jurista italiano Vacarius (1120-1200), que lecionou direito justianeu. Esse estudo do direito romano nas universidades, porém, desempenhou uma influência mais restrita no direito inglês. É que, na prática, as jurisdições aplicavam mais os costumes. Na Inglaterra dessa época, juízes e advogados não precisavam de título universitário para atuar, o que colaborou para reduzir a intensidade da influência do direito romano.7 Isso, porém, não significa que não tenha havido essa influência romana no direito inglês.

No século XIII, Henry Bracton, em 1258, em latim, escreveu um dos principais tratados de direito inglês reconhecendo as influências do direito romano e expondo que o direito inglês era assentado no respeito a precedentes jurisprudenciais.8 O tratado foi conhecido como De Legibus et Consuetudinibus Angliae (Of The Laws and Customs os England).

Por conta desse tratado, Bracton é considerado um dos pais do common law inglês por ter sistematizado mais de 450 precedentes e por ter desenhado teoricamente o direito inglês. E, para tanto, Bracton valeu-se insistentemente do direito romano, pois tinha domínio da matéria: Bracton foi formado na Escola dos Glosadores. Isso, porém, não significa que Bracton tenha reconhecido o direito romano como um direito positivo na Inglaterra, mas apenas que havia pontes de conexão entre o direito inglês e o romano.9 Os estudos de Bracton marcaram profundamente o common law. Três séculos depois, mesmo Sir Edwart Coke – que era um defensor da tese mítica de isolacionismo cultural do common law em relação ao direito europeu continental – contraditoriamente teve de valer-se dos trabalhos de Bracton.10

Continuaremos na próxima coluna.

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1 No século XI, o exército normando liderado pelo duque Guilherme II da Normandia (Guilherme, o Conquistador) atravesso o Canal da Mancha e invadiu a ilha da Grã-Bretanha. Guilherme II reivindicava o trono por conta de seu parentesco com o falecido rei anglo-saxão Eduardo, o Confessor. Ainda que, à época da conquista, houvesse a defesa de que a conquista normanda tivesse resultado de um consenso com os saxões, a realidade é que se tratou de uma conquista armada, à base da força, por parte dos normandos, conforme se passou a reconhecer mais tarde (LIMONGI, Maria Isabel. O volume I da História da Inglaterra e o debate constitucional inglês: Hume contra a ideia de lei fundamental. In: Cadernos De Filosofia Alemã: Crítica E Modernidade, v. 20, n. 2, 2015, p. 54).

2 ATAÍDE JR., Jaldemiro Rodrigues de. O Mito Da Insularidade do Common Law Inglês. Publicado em 12 de junho de 2019 (Disponível aqui. Acesso em 26 de março de 2022); ZIMMERMANN, Reinhard. Derecho privado europeo. Buenos Aires/Argentina: Editora Astrea, 2017, pp. 18-23; VIGIL NETO, Luis Inácio. De Legibus Et De Consuetudinibus /Estudos Sobre A História Do Direito Na Inglaterra / Studies On The History Of Law In England. In: Revista Jurídica – Unicuritiba, v. 23, n. 7, 2009 (Disponível aqui. Acesso em 26 de março de 2022); SHERMAN, Charles P. The Romanization of English Law. In: The Yale Law Journal, vol. 23, n. 23, 1914, pp. 318-329.

3 SHERMAN, Charles P. The Romanization of English Law. In: The Yale Law Journal, vol. 23, n. 23, 1914, p. 318. Chales P. Sherman (1874-1962) foi professor de direito romano e de direito canônico em diversas universidades, inclusive na Yale Law School.

4 SHERMAN, Charles P. The Romanization of English Law. In: The Yale Law Journal, vol. 23, n. 23, 1914, p. 318. A assimilação da cultura romana, com inclusão do direito, pelos habitantes da Bretanha ao tempo do domínio romano não foi tão intensa. As próprias origens das instituições inglesas são mais conectadas à influência germânica do que à romana. Entre as justificativas históricas, estão as invasões dos povos germânicos (especialmente dos Anglo-Saxões) à Bretanha, com o surgimento de sete reinos medievais: East Anglia, Essex, Kent, Mercia, Northumbria, Sussex e Wessex. Os senhores territoriais mantiveram-se com forte influência mesmo após a invasão normanda em 1066. O rei normando colaborou para uma maior centralização jurídica, com o surgimento de um direito comum britânico (o common law), que convivia com o direitoaplicada em cada unidade senhorial. Esse common law britânico não foi, porém, fruto de normas produzidas pelo rei, mas principalmente como resultado do sistema judicial, marcado pela eficácia territorial ampla das decisões das Cortes de common law. Por conta da importância dos precedentes jurisprudenciais, estes passaram a ser sistematizados e organizados nos chamados Year Books e nos Laws Reports, espécies de repositórios jurisprudenciais (CABRAL, Gustavo César Machado. Ius Comune: uma introdução à história do direito comum do Medievo à Idade Moderna. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, pp. 98-106).

5 SHERMAN, Charles P. The Romanization of English Law. In: The Yale Law Journal, vol. 23, n. 23, 1914, p. 318.

6 ZIMMERMANN, Reinhard. Derecho privado europeo. Buenos Aires/Argentina: Editora Astrea, 2017, pp. 18 e 20.

7 DAVID, René. O Direito Inglês. Tradução: Eduardo Brandão; revisão técnica da tradução: Isabella Soares Micali. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 3.

8 O outro principal tratado foi de Ranulf de Glanville (falecido em 1190), intitulado Tractatus de legibus et consuetudinibus regni Angliae (Treatise on the Laws and Customs of the Kingdom of England). Esse foi o primeiro grande tratado do direito inglês (Cabral, 2019, pp. 102-103).

9 Gustavo César Machado Cabral lembra que, na obra de Bracton, “a influência do Direito Romano foi patente a ponto de Maitland afirmar que a obra de Bracton era romanesca na forma e inglesa no conteúdo, o que implicava que o autor reconhecia o valor do método dos juristas formados no ius civile, mas pretendia construir um livro dedicado ao direito real da Inglaterra, meta que foi alcançada” (Cabral, 2019, p. 103).

10 SHERMAN, Charles P. The Romanization of English Law. In: The Yale Law Journal, vol. 23, n. 23, 1914, p. 326; VIGIL NETO, Luis Inácio. De Legibus Et De Consuetudinibus /Estudos Sobre A História Do Direito Na Inglaterra / Studies On The History Of Law In England. In: Revista Jurídica – Unicuritiba, v. 23, n. 7, 2009 (Disponível aqui. Acesso em 26 de março de 2022).

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Colunista

Carlos E. Elias de Oliveira é membro da Comissão de Reforma do Código Civil (Senado Federal, 2023/2024). Pós-Doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). 1º lugar em Direito no vestibular 1º/2002 da UnB. Ex-advogado da AGU. Ex-assessor de ministro STJ. Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e Registral. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário (único aprovado no concurso de 2012). Advogado, parecerista e árbitro. Instagram: @profcarloselias e @direitoprivadoestrangeiro.