Migalhas de Direito Privado Estrangeiro

Numerus clausus e direitos reais: Origem, histórico e experiência da Holanda, do Reino Unido e de outros países – Parte III

Para que um contrato seja considerado lease, o conteúdo deve condizer com a definição do termo, não bastando sua etiquetação. O caso Street v. Mountford é emblemático nesse sentido, destacando que a substância do contrato prevalece sobre sua rotulação.

25/6/2024

Damos seguimento ao que tratamos na coluna anterior.

No exemplo da companhia ferroviária, o fato de as partes etiquetarem o contrato como lease não é suficiente para que o pacto feito seja considerado um direito in rem. É preciso que o conteúdo do contrato condiga com o lease. Por exemplo, se o arrendatário (o leasee) não tiver o controle exclusivo do imóvel, não se trata de lease, ainda que o instrumento contratual tenha sido batizado como tal. Nesse ponto, Stevens cita esta famosa sentença do Lord Templeman no julgamento, pela Câmara dos Lordes do Reino Unido (United Kingdom House of Lords), do caso Street v. Mountford, em 19851:

A fabricação de um instrumento de cinco pontas para escavação manual é um garfo, mesmo se o fabricante, não familiarizado com a língua inglesa, insista em que pretendia fazer, e fez, uma pá.

O julgado Street v. Mountford é emblemático para distinguir o lease da licence e foi julgado pela Câmara dos Lordes do Reino Unido. Este órgão legislativo – que corresponde à câmara alta do parlamento britânico – exercia um papel jurisdicional para determinadas questões até o ano de 20092, quando, então, a Supremo Tribunal do Reino Unido3 (Supreme Court of the United Kingdom) absorveu-lhe a competência.

No caso4, a Roger Theodore Crispin Street concede licence a Wendy Mountford para ocupação de 2 quartos mediante pagamento de aluguéis mensais. Street poderia resilir o contrato mediante aviso prévio de 14 dias. O instrumento contratual foi intitulado como Licence Agreement e continha expressa declaração de que não se tratava de arrendamento (lease ou tenancy). A Câmara dos Lordes, porém, entendeu que, apesar do rótulo do instrumento contratual, havia um lease (ou tenancy): O importante é o conteúdo do contrato e a realidade fática da relação contratual, e não a sua etiqueta.

No Reino Unido, o lease (ou tenancy) é disciplinado pelo Landlord and Tenant Act 19545 e caracteriza-se pela concessão do uso exclusivo da coisa em troca de aluguel a ser pago pelo um inquilino (chamado, em inglês, de tentant, se aluga um imóvel inteiro, ou de lodger, se aluga um quarto de um imóvel).6 Pode ser por prazo determinado ou indeterminado (neste último caso, o locador – landlord ou owner – pode denunciar o contrato mediante aviso prévio). Não se trata de uma mera licença, ainda que o instrumento contatual o tenha assim rotulado (Street v. Mountford [1985] AC 809).

O lease não é um direito in personam, e sim um direito in rem. É um estate in land. Por isso, subsiste no caso de alienação da coisa a terceiros. Pode ser comprado ou vendido. No caso de locação comercial, se observados os requisitos da Part II of the Landlord and Tenant Act 1954, o inquilino (tenant) tem direito de permanecer no imóvel mesmo após o fim do prazo, salvo justas causas legais específicas.

A resilição do lease pelo arrendante (landlord) é mais difícil diante das proteções legais previstas no Landlord and Tenant Act 1954. Além da exigência de aviso prévio – que, a depender do tipo de lease, tem de ser de 6 meses –, o arrendante pode ter de provar judicialmente um dos permissivos legais e pode vir a ser obrigado a pagar compensações financeiras ao arrendatário (tenant).

O lease britânico distingue-se substancialmente do license. O licence (a licença) é um contrato de natureza pessoal por meio do qual alguém (o licensor) autoriza outrem (o licensee) a fazer algo, como ocupar um imóvel. Não confere direito in rem. Não subsiste no caso de alienação da coisa a terceiros. O beneficiário (licensee) tem posição jurídica precária.

Como o lease atrai diversas proteções legais em favor do inquilino, há proprietários que tentam rotular o instrumento contatual como licence como forma de burla a esse regime protetivo. Todavia, a Câmara dos Lordes, no julgado supracitado (Street v. Mountford, de 1985), censurou esse teatro textual.

Outras tentativas de burla ao regime protetivo do lease já foram reprimidas no Reino Unido, a exemplo do caso London College of Business v. Tareem, de 20087, julgado pela EWHC - England and Wales High ourt of Justice.

O London College of Business ocupou por muitos anos um imóvel ao abrigo de sucessivos acordos intitulados como licence e com previsão expressa de que não se poderia considerar existente aí um lease no sentido do Landlord and Tenant Act 1954.

Apesar de o acordo conter o direito de o proprietário poder acessar o imóvel em qualquer momento razoável, tal nunca ocorreu. Além disso, o London College of Business equipou o imóvel para o seu negócio, que foi efetivamente implementado. O acordo continha uma cláusula de rescisão por violação em tudo semelhante às cláusulas presentes em caso de lease. O Londo College of Business também tinha de pagar um valor a título de “taxa de serviço” (service charge).

Surgiu, então, uma controvérsia sobre o valor devido a título de taxa de serviço. O proprietário, então, tentou despejar o colégio por não ter pagado esse valor.

A Alta Corte Inglesa (England and Wales High ourt of Justice), todavia, à vista da realidade dos fatos e da maior vulnerabilidade do colégio (que não teve assessoramento jurídico), decidiu que havia um lease, apesar de os sucessivos acordos terem sido etiquetados como licence. Em consequência, o tribunal rejeitou a demanda do proprietário, especialmente pelo fato de este não ter utilizado o procedimento legal devido para despejo por justa causa (acaso efetivamente houvesse uma justa causa no caso concreto).

A exposição dos casos acima sobre a diferença do lease e do licence ilustram que, mesmo no Reino Unido, a ideia de numerus clausus para os direitos reais está presente, ainda que sob a ótica da análise de distinção entre direitos in personam e direitos in rem.

É equivocado pensar que o princípio do numerus clausus em direitos reais é restrito aos sistemas jurídicos do civil law. Ele também está presente nos países do common law.

Embora poucos Códigos tratem textualmente do princípio do numerus clausus, ele é reconhecido principalmente na doutrina e na jurisprudência de vários países, como na Alemanha, na França, na Itália, na Holanda, na Argentina, na Colombia, no Chile, no Peru8, no Brasil9, no Japão, na Finlândia, na Áustria, em Portugal, na Suíça, na Suécia.10 Há, porém, particularidades a depender de cada país.

Na França, a legislação não foi pensada para o numerus clausus. O tema é controverso. Há juristas franceses que sustentam a prevalência da autonomia da vontade em matéria de direito real. E invocam o clássico caso Caquelard, de 1834.11 Luis Díez-Picazo averba que prevaleceria, na França, a tipologia de numerus apertus.12 A jurisprudência francesa, no entanto, inclina-se a prestigiar o numerus clausus, acatando os direitos reais previstos no Código Civil ou em outras leis. Há pouquíssimos casos em que se poderia discutir se houve ou não a criação de um novo direito real.

Na França, na área dos direitos reais de garantia, há forte presença de legislação especial. É, por exemplo, o caso da lei dubanchet (loi dubanchet), de 198013, que garante um direito de retenção da coisa em face de outros credores do adquirente.14

Na Itália, a doutrina majoritária defende que, após o Código de 1942, adotou-se o sistema de numerus clausus.15

São poucos os Códigos Civis que são expressos acerca do numerus clausus dos direitos reais. Um exemplo é a Argentina, conforme o art. 1884 do seu Codigo Civil y Comercial de la Nacion, que assim dispõe:

Artículo 1884. Estructura

La regulación de los derechos reales en cuanto a sus elementos, contenido, adquisición, constitución, modificación, transmisión, duración y extinción es establecida sólo por la ley. Es nula la configuración de un derecho real no previsto en la ley, o la modificación de su estructura.

A maior parte dos Código Civis lista direitos reais, mas não externa se o rol é ou não taxativo. Cabe à doutrina e à jurisprudência essa tarefa.

__________

1 Tradução livre do inglês (Robert Stevens).

2 O julgamento na Câmara dos Lordes era conduzido pelos Law Lords (os Lordes da Lei), que eram 12 juízes nomeados pelos membros da Câmara dos Lordes.

3 O Supremo Tribunal do Reino Unido foi criado em 2005, mas iniciou suas atividades judiciais em 2009. Atualmente é a última instância recursal em questões civis para todo o Reino Unido e, em questões penais, é a última instância apenas para casos procedentes da Inglaterra, País de Gales e Irlando do Norte. Para compreensão da história e do papel do Supremo Tribunal do Reino Unido. Disponível aqui.

4 [1985] 2 WLR 877, [1985] UKHL 4, [1985] AC 809 (United Kindgom House of Lords Decisions, 1985).

5 O inteiro teor do diploma inglês. Disponível aqui.

6 O procedimento de despejo é diferente: no caso de tenant, há necessidade um processo de eviction; no caso de lodger, basta chamar a polícia após notificação prévia (Coble, 2015).

7 London College of Business Ltd v Tareem Ltd & Anor [2018] EWHC 437 (Ch) (07 March 2018).

8 Fernando Gamarra-Alayza trata do tema levando em conta o direito alemão, francês, argentino, chileno, colombiano, mexicano e peruano. Realça que, no México, a disciplina cabe a cada entidade federativa e que, no Distrito Federal, o entendimento majoritário é que se adotou o sistema de numerus clausus.

9 Apesar de haver controvérsia, prevalece o entendimento de que se adotou, no Brasil, o numerus clausus.

10 DÍEZ-Picazo, Luis. Fundamentos del Derecho Civil Patrimonial III: Las relaciones jurídico-reales, el Registro de la Propiedade, la posesión. Navarra/Espanha: Editorial Aranzadi, 2008, p. 133.

11 Rafael Vanzella trata disso.

12 DÍEZ-Picazo, Luis. Fundamentos del Derecho Civil Patrimonial III: Las relaciones jurídico-reales, el Registro de la Propiedade, la posesión. Navarra/Espanha: Editorial Aranzadi, 2008, pp. 133-134.

13 Loi n°80-335 du 12 mai 1980.

14 Robert Stevens trata disso.

15 DÍEZ-Picazo, Luis. Fundamentos del Derecho Civil Patrimonial III: Las relaciones jurídico-reales, el Registro de la Propiedade, la posesión. Navarra/Espanha: Editorial Aranzadi, 2008, p. 133.

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Colunista

Carlos E. Elias de Oliveira é membro da Comissão de Reforma do Código Civil (Senado Federal, 2023/2024). Pós-Doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). 1º lugar em Direito no vestibular 1º/2002 da UnB. Ex-advogado da AGU. Ex-assessor de ministro STJ. Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e Registral. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário (único aprovado no concurso de 2012). Advogado, parecerista e árbitro. Instagram: @profcarloselias e @direitoprivadoestrangeiro.