Um tema importantíssimo é saber se podemos ou não criar direitos reais?
Isso tem várias repercussões práticas. Uma delas é, por exemplo, saber se podemos inventar algum direito real sobre imóvel e promover o seu registro no cartório de imóveis.
Buscaremos aqui expor fundamentos históricos e fazer reflexões de direito comparado sobre o tema, a fim de respaldar os debates.
Segundo o princípio do numerus clausus1 (também chamado de sistema fechado de direito real, como na Holanda2), os direitos reais (property rights) são taxativos na lei: As partes não podem criar novos direitos reais nem modificar os já previstos direitos reais catalogados taxativamente em lei. É um marcante dogma, especialmente nos sistemas jurídicos da família do civil law.3
Em 1953, Vera Bolgar escreveu artigo intitulado "Why no Trust in the Civil Law?" e criticou a pouca abertura prática do sistema do numerus clausus4:
O princípio do numerus clausus, que não aparenta ter valor prático, poderia muito bem ser deixado para o museu da Jurisprudência dos Conceitos (Begriffsjurisprudenz).5
O sistema do numerus clausus é um dos obstáculos ao ingresso da figura do trust em vários países da família do civil law.6
Há uma visão tradicional de que o princípio do numerus clausus é característica apenas dessa família e de que ele seria desconhecido do common law. Mas essa afirmação não é precisa. Bram Akkermans, em um dos estudos mais aprofundados já realizados sobre o princípio do numerus clausus na Europa7, defende a existência desse sistema fechado na Inglaterra.8
Convém investigar o alcance, a origem e a justificação do princípio do numerus clausus.
Não há clareza quanto à origem da expressão numerus clausus. Costuma-se associar à Alemanha, especificamente aos pandectistas no século XIX. Para grande parte dos doutrinadores, o princípio do numerus clausus estava enraizado no pensamento jurídico alemão do século XIX.9
A limitação à autonomia privada em direitos reais integrou o modelo do direito de propriedade desenvolvido por Savigny e seus seguidores.10
Além da restrição à autonomia da vontade, esse modelo desenvolve um novo conceito abstrato, absoluto e total de propriedade. Exclui daí os bens incorpóreos. Promove a separação das regras de direito das coisas (law of property) em relação aos direitos obrigacionais bem como a proteção de terceiros adquirentes de boa-fé diante de vícios do título de transferência.11
O princípio do numerus clausus foi incorporado em 1900 ao projeto do BGB - Código Civil Alemão. Na exposição de motivos ao projeto do Código Civil alemão de 1888, já se fazia referência à expressão "número fechado" de direitos reais (die geschlossene Zahl).
A primeira vez que provavelmente mencionou-se a expressão numerus clausus foi em 1930 com Philipp Heck. Depois, em 1938, também se tem notícia do uso do termo por Franz Wieacker.12
A expressão reapareceu em várias publicações posteriores, como na Itália (no manual de direito privado de A. Torrente em 1952), nos EUA (como no art. de 1953 de Vera Bolgár e no título de resposta de Merryman13 ao referido art. de Bolgár).14
Na Holanda, a primeira referência à expressão "sistema fechado" de direitos reais deu-se em 1961 em uma notícia sobre as deliberações legislativas sobre a elaboração do Código Civil Holandês (Burgelijk Wetboek de 1992 – BW).
Apesar disso, há fontes holandesas que apontam que o princípio do numerus clausus já estava presente na Holanda no início do século XIX, especificamente em rascunhos do Código Civil Holandês elaborados peor Joan Melchior Kemper em 1816. Nesse esboço, havia a previsão textual de que só seriam considerados direitos in rem os assim indicados no código. Os demais direitos seriam pessoais. Esses rascunhos, porém, foram substituídos por códigos modelados com base no Código Civil Francês.
O Código Civil holandês (BW15), nascido em 183816, continha um catálogo não exaustivo de direitos reais (real rights). Por esse motivo, as cortes holandesas no século XIX consentiam com a maior liberdade das partes para criar tipos de direitos reais.
A doutrina holandesa do século XIX era mais receptiva ao princípio do numerus clausus do que as cortes. Dão exemplo disso os escritos de dois grandes juristas holandeses do século XIX: Diephuis e Opzoomer. Eles defendiam uma interpretação restritiva do BW em matéria de direitos reais. Faziam referência aos escritos do jurista francês Demolombe, que criticava a postura dos tribunais franceses em, no século XIX, favorecer demasiadamente a autonomia privada em matéria de direitos reais e que defendia a observância dos tipos jurídico-reais previstos pelo legislador.
Na Holanda, a linha perfilhada por Diephuis e Opzoomer no sentido da adoção do numurus clausus para os direitos reais enraizou-se no pensamento jurídico holandês até que a Suprema Corte Holandesa (Hoge Haad), em 1905, consagrou essa tendência no caso Blaauboer v. Berlips, sobre o qual deitaramos holofotes mais à frente.
Assim, a doutrina holandesa incorporou a maior restrição à autonomia privada nos moldes dos estudos dos pandectistas bem como seus conceitos de coisa, de liberdade de disposição da coisa e de proteção a terceiros adquirentes de boa-fé.
Em suma, o princípio do numerus clausus já estava presente no pensamento jurídico neerdelandês desde o início do século XIX. Todavia, foram os trabalhos de Savigny e dos pandectistas alemães no final desse século que deram corpo a esse princípio.
Continuaremos o tema na próxima coluna.
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1 No direito alemão, refere-se a Typengbundenheit com dois significados: um é de limitação ao dos números dos direitos reais (o que é conhecido como Typenzwang) e outro é com o de limitação do conteúdo do direito real (o que é chamado de Typenfixierung), conforme registra Bram Akkermans (AKKERMANS, Bram. The Principle of Numerus Clausus in European Property Law. Oxford: Intersentia Antwerp, 2008, pp. 6-7).
2 No Direito Holandês, é mais comum referir-se a sistema fechado de direitos reais (het gesloten system van het goederenrecht).
3 STRUYCKEN, T.H.D. The Numerus Clausus and Party Autonomy in the Law of Property. In: WESTRIK, Roel; VAN DER WEIDE, Jeroen. Party Autonomy in International Property Law. Munich/Germany: European Law Publishers, 2011, p. 59.
4 Tradução livre (apud STRUYCKEN, T.H.D. The Numerus Clausus and Party Autonomy in the Law of Property. In: WESTRIK, Roel; VAN DER WEIDE, Jeroen. Party Autonomy in International Property Law. Munich/Germany: European Law Publishers, 2011, p. 1999).
5 A lembrança da Jurisprudência dos Conceitos deve-se à acusação que esse movimento sofreu de distanciamento em relação à realidade, por conta da sua busca por uma orientação matemática do Direito. Para a Jurisprudência dos Conceitos, o direito não teria lacunas e poderia ser reduzido a sistemas conceituais lógicos (pyramid of concepts). A nova lei poderia deduzida logicamente de conceitos jurídicos superordenados, os quais podem ser identificados por meio de um raciocínio indutivo (método de inversão). A Jurisprudência dos Conceitos é acusada de ingenuidade epistemológica e lógica, de afastamento da realidade, de ofuscação de valores, de desconsideração do direito supradispositivo e de superestimação do método puramente dogmático (HAFERKAMP, Hans-Peter. Begriffsjurisprudenz/Jurisprudence of Concepts. Publicado em 6 de abrol de 2011 (Disponível aqui).
6 Sobre a difusão do trust pelo mundo, Kenneth G. C. Reid faz interessante abordagem em artigo integrante de obra sobre os caminhos a um Código Civil chinês, obra essa anterior ao mais recente Código Civil chinês (REID, Kenneth G. C. Conceptualizing the Chinese Trust: Some Thoughts from Europe. In: CHEN, Lei; VAN RHEE, C.H. Towards a Chinese Civil Code: Comparative and Historical Perspective. Leiden/The Netherlands; Boston/EUA: Publishers and Martinus Nijhoff Publishers, 2012, pp. 209-234). Ainda sobre o trust, ver: KOESSLER, James. Is there room for the trust in a civil law system? The French and Italian perspective. Publicado em março de 2012 (Disponível aqui).
7 Outro estudo de aprofundado sobre o numerus clausus, embora com foco nos direitos reais mobiliários, é de Bénédict Foëx (FOËX, Bénédict. Le numerus clausus des droit réels em matiére mobilière. Lausanne: Payot, 1987).
8 AKKERMANS, Bram. The Principle of Numerus Clausus in European Property Law. Oxford: Intersentia Antwerp, 2008, pp. 387-396.
9 Robert Stevens trata disso.
10 O Pandectismo, também chamado de Jurisprudência dos Conceitos, recebeu esse nome pelo fato de os manuais dos autores integrantes da Escola Histórica do Direito intitularem-se pandectas como referência às Pandectas de Justiniano. A Escola Histórica entendia que o direito nasce do espírito do povo (Volksgeist, em alemão), ou seja, nas palavras de Savigny, das “forças silenciosas, e não do arbítrio do legislador” (Morais, 2021, p. 19; Cury e Marçal, 2009). A Escola Histórica foi precursora do positivismo normativista que surgiu com a Jurisprudências dos Conceitos. Opunha-se ao jusnaturalismo. Ihering criticou a Jurisprudência dos Conceitos por sua abstração e formalismo e desenvolveu, em oposição, a Jurisprudência dos Conceitos.
11 Robert Stevens trata do tema.
12 STRUYCKEN, T.H.D. The Numerus Clausus and Party Autonomy in the Law of Property. In: WESTRIK, Roel; VAN DER WEIDE, Jeroen. Party Autonomy in International Property Law. Munich/Germany: European Law Publishers, 2011, pp. 59-60.
13 MERRYMAN, John Henry. Policy, autonomy, and the numerus clausus in Italian and American property law. In: The American Journal of Comparative Law, vol. 12, nº 2, Spring 1963, pp. 224-231.
14 STRUYCKEN, T.H.D. The Numerus Clausus and Party Autonomy in the Law of Property. In: WESTRIK, Roel; VAN DER WEIDE, Jeroen. Party Autonomy in International Property Law. Munich/Germany: European Law Publishers, 2011, p. 60.
15 Burgerlijk Wetboek, em holandês.
16 Ele sofreu uma substancial reforma em 1992, a ponto de se considerar que, em 1992, a Holanda recebeu um novo Código Civil. Assim, referindo-se à versão reformada do Código Civil holandês, encontram-se, na literatura jurídica, expressões como novo Código Civil Holandês (NBW, sigla de Nieuw Burgerlijk Wetboek, em holandês), BW (1992) ou simplesmente ao BW (sem indicação de ano). O marco temporal de 1992 é utilizado por convenção, mas, a rigor, desde 1970, foram sendo publicadas progressivamente as reformas de partes do Código Civil holandês, como lembra Liane Schmiedel.