Migalhas de Direito Privado Estrangeiro

Conflito de leis sucessórias na União Europeia: O caso do acórdão Kubicka – lei alemã vs lei polonesa

Situações transnacionais podem gerar conflitos de leis. Se, por exemplo, uma pessoa faz um testamento em um país envolvendo imóvel situado em outro, poderá haver conflitos das leis.

5/3/2024

Situações transnacionais podem gerar conflitos de leis. Se, por exemplo, uma pessoa faz um testamento em um país envolvendo imóvel situado em outro, poderá haver conflitos das leis.

Cuidaremos aqui de um interessante caso ocorrido na União Europeia sobre esse tema, com o objetivo de deixar espaço para reflexões a casos que possam vir a ocorrer envolvendo problemas transnacionais no Brasil. O caso envolveu a necessidade de utilização da técnica de adaptação de direito real estrangeiro, já tratado nesta coluna.

De fato, a adaptação de direitos reais estrangeiros em decorrência de transferência por sucessão mortis causa nos termos do Regulamento Europeu das Sucessões1 foi tratada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) poucas vezes. O principal acórdão sobre a matéria é o Acórdão Kubicka (processo nº C-218/2016)2, o qual merece relato para ilustração casuística da figura.

O acórdão envolve conflito entre a lei alemã e a lei polonesa.

A cidadã polonesa Aleksandra Kubicka morava na cidadã alemã de Francoforte do O'der. Dirigiu-se à cidade polonesa de Slubice para lavrar um testamento público3 perante uma notária polonesa. No testamento, a Sra. Kubicka deixou a seu marido, a título de legado vindicatório (per vindicationem), a fração ideal que titularizava sobre um imóvel situado na Alemanha.

A lei polonesa acolhe dois tipos de legado: o vindicatório e o obrigacional (arts. 968º e 981º, nº 1, do Código Civil Polonês – Kodeks Cywilny)4.

Em relação ao legado vindicatório, é exigido testamento por escritura pública. Esse tipo de legado é caracterizado por acarretar a transmissão imediata da propriedade ao legatário quando da morte do testador (art. 981, n. 1, do Código Civil Polonês – Kodeks Cywilny). Nesse caso, o legatário passa a ser titular do direito real de propriedade sobre o legado no momento da morte do testador.

Já o legado obrigacional (per damnationem) pode ser formalizado por qualquer tipo de testamento e é caracterizado pelo fato de o herdeiro receber o dever de transferir o legado ao legatário (art. 968 do Código Civil Polonês – Kodeks Cywilny). No legado obrigacional, a transmissão da propriedade não ocorre com a morte, e sim com um ato postetrior dos herdeiros: estes recebem a propriedade quando da morte e, posteriormente, “pagam” os legatários, transferindo-lhes o legado. Nesse caso, o legatário, quando da morte, é titular de um direito pessoal (obrigacional) em exigir dos herdeiros a entrega da coisa legada5.

O problema é que o imóvel objeto do legado vindicatório está situado na Alemanha e, nesse país, o legado vindicatório não é admitido. O § 2174 do Código Civil Alemão (BGB) só permite o legado obrigacional (per dammanationem). Considerando que, para direitos reais, deve-se aplicar a lei do lugar da coisa (lex rei sitae), surge a discussão: deve ou não ser admitido o legado vindicatório previsto na lei polonesa em relação a imóvel situado na Alemanha?

O fato é que a Sra. Kubicka, objetivando evitar discussões jurídicas, escolheu a lei polonesa para reger a sucessão mortis causa. O notário polonês, todavia, recusou-se a lavrar o testamento. Entendeu que a lei alemã necessariamente teria de ser aplicada ao caso por se tratar de questão envolvendo direito real sobre imóvel, tudo à luz do elemento de conexão da lex rei sitae.

Irresignada, a Sra. Kubicka, após recusa do notário polonês em reconsiderar sua decisão, recorreu ao Tribunal Regional de Gorzów Wielkopolski6. Essa Corte polonesa deflagrou um processo de reenvio prejudicial perante o Tribunal de TJUE para obter uma interpretação adequada do Regulamento Europeu das Sucessões.

O TJUE entendeu que, na espécie, não se estava tratando de regra de direito real, e sim de direito sucessório. A qualificação dada ao fato não foi de direito real, e sim de direito sucessório. A Corte europeia esclarece que, em termos de direitos reais, o que está em discussão é o direito real de propriedade, o qual é conhecido tanto no direito polaco quanto no direito alemão.

Entendeu que a divergência entre o direito polaco e o direito alemão dá-se não em relação ao direito real de propriedade, e sim quanto ao momento da transmissão do legado (o tempo da abertura da sucessão ou ato posterior do herdeiro). Isso é uma questão de direito sucessório, e não de direito real. Por consequência, o TJUE entendeu que não havia um problema de adaptação de direito real estrangeiro, o que afastava a discussão acerca da aplicação do art. 31º do Regulamento Europeu das Sucessões.

O TJUE reforçou esse entendimento com a lembrança de que, caso se entendesse diversamente, a sucessão mortis causa seria fragmentada em dois grupos: um regido pela lei alemã (bens situados na Alemanha) e outro pela lei polonesa (demais bens). Tal solução contraria o princípio da unidade da lei sucessória, adotada pelo Regulamento Europeu das Sucessões.

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1 Regulamento Europeu das Sucessões: Regulamento UE nº 650/2012.

2 Disponível aqui.

3 Testamento público é o formalizado por escritura pública lavrada por tabelião de notas.

4 A versão atualizada do Código Civil Polonês é disponível neste site oficial. Uma versão traduzida para o inglês está neste site. Sobre o assunto, transcreva-se este excerto do acórdão em pauta.

O artigo 981, n.º 1, do Kodeks Cywilny (Código Civil) dispõe:

"O testador pode determinar, por testamento lavrado sob a forma de instrumento notarial, que o bem objeto de um legado seja transmitido a determinada pessoa no momento da abertura da sucessa~o (legado vindicatório)."

Segundo o n.º 2, ponto 2, deste artigo 981, o objeto de tal legado poderá consistir, nomeadamente, numa quota-parte da propriedade sobre um bem imóvel, que constitua um direito de propriedade transmissível.

O artigo 968.º do Código Civil refere-se ao "legado obrigacional» no qual o testador pode escolher qualquer forma testamentária admissível, incluindo o testamento hológrafo. Neste tipo de legados, o herdeiro está obrigado a transmitir o direito sobre o bem ao legatário, podendo este último exigir também ao herdeiro a execução do legado.  

5 Com base no direito romano, há 4 espécies de legados:

a) Legado per vindicationem: a transferência do legado ao legatário dá-se de modo direto com a morte do autor da herança. O legatário passa a ter direito a uma ação reivindicatória. Conforme já expusemos, a Polônia admite essa espécie de legado, desde que seja contemplada em testamento por escritura pública. Também adotou esse tipo de legado o Brasil (art. 1.923 do Código Civil brasileiro), a Espanha (art. 882 do Código Civil espanhol), a Itália (art. 649 do Código Civil italiano), a França (art. 1.014 do Código Civil francês) e a Catalunha (art. 2713 do Código Civil catalão).

b) Legado per praeceptionem: legatário recebe o objeto antes da partilha. É uma subespécie do legado per vindicationem.

c) Legado sinendi modo: herdeiro não pode impedir legatário de escolher o objeto entre os integrantes do acervo hereditário.

d) Legado per dammnationem ou obrigacional: cria ao herdeiro o dever de transmitir o bem ao legatário. Este, com a morte, passa a ter um direito pessoal contra os herdeiros. Trata-se da espécie de legado adotada na Alemanha (§ 2174 do Código Civil alemão), na Áustria (§ 6491 do Código Civil austríaco), na Holanda (art. 117, Livro 4, do Código Civil holandês). A Polônia também admite esse tipo de legado, ao lado do legado per vindicationem.

6 Os arts. 81 e 83º, nº 2, do Código do Notariado Polonês (Prawo o notariacie, em polonês) impõem ao notário o dever de recusar-se a prática atos ilícitos, assegurado ao interessado recorrer ao próprio notário para reconsideração ou para remessa da queixa ao tribunal competente. Trata-se de um procedimento similar, no Brasil, ao procedimento de dúvida registral previsto no art. 198 da Lei de Registros Públicos (lei 6.015/1973).

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Colunista

Carlos E. Elias de Oliveira é membro da Comissão de Reforma do Código Civil (Senado Federal, 2023/2024). Pós-Doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). 1º lugar em Direito no vestibular 1º/2002 da UnB. Ex-advogado da AGU. Ex-assessor de ministro STJ. Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e Registral. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário (único aprovado no concurso de 2012). Advogado, parecerista e árbitro. Instagram: @profcarloselias e @direitoprivadoestrangeiro.