Migalhas de Direito Privado Estrangeiro

Adaptação lato sensu de direitos estrangeiros com foco no Direito Privado – Parte VI (espécies)

Em colunas anteriores, explicamos a adaptação stricto sensu e a substituição. Passamos, agora, à transposição.

28/11/2023

Em colunas anteriores, explicamos a adaptação stricto sensu e a substituição. Passamos, agora, à transposição.

Transposição

Assim como a substituição, a transposição também envolve discussão de equivalência ou não entre dois institutos de direito material de leis distintas. A diferença está na causa. Na substituição, a causa é uma relação de prejudicialidade. Já, na transposição, a causa é a própria dinâmica da relação jurídica.

A transposição é mais um problema de direito comparado do que propriamente de direito de conflitos. É, grosso modo, buscar traduzir juridicamente um direito estrangeiro.

A transposição (recognition, em inglês) é a transformação de um direito em outro que deveria ter o mesmo efeito, conforme Bram Akkermans e Eveline Ramekers1.

Na transposição, responde-se à seguinte pergunta: o instituto jurídico da lei de um país pode ou não traduzir-se no instituto da lei chamada a regular certa situação jurídica transnacional? O instituto da lei estrangeira pode ou não ser transposto para o instituto da lei escolhida para regular a situação plurilocalizada?

Exemplos envolvendo deslocamento, para outro país, de coisas móveis oneradas por direitos reais costumam atrair debates de transposição. Cuida-se de hipóteses de conflitos móveis, as quais são férteis em discussões sobre transposição2.

Essas questões são mais comuns em direitos reais menores (os direitos reais sobre coisa alheia), especialmente os de garantia3. A doutrina costuma acenar que não é tão comum esses problemas envolvendo o direito real de propriedade, por se tratar de um direito admitido em quase todos os países do mundo4. Já manifestamos nossa ressalva pessoal quanto a essa afirmação, calçado no argumento de que, se o regime jurídico do direito de propriedade difere de um país para o outro, há necessidade de adaptação lato sensu (na modalidade da transposição), ainda que essa operação possa ser mais simplificada (ut item 2.3.2.5.).

Suponha um penhor de uma valiosa pintura situada na França, sem que haja a entrega da coisa. A lei francesa (que é a lei aplicável ao caso por força do elemento de conexão lex rei sitae) admite essa espécie de penhor.

Se essa pintura for levada a Portugal – cuja lei não admite penhor desacompanhada da entrega da coisa –, indaga-se: a garantia real será ou não extinta?

A pergunta surge pelo fato de que a lei que regula os direitos sobre a coisa é a da sua localização (lex rei sitae ou lex situs). Com o deslocamento da coisa para Portugal, a lei portuguesa passa a ser a competente para a regular os direitos reais. E essa lei não admite penhor sem entrega da coisa (tradição) nem admite a criação de direitos reais por vontade das partes (numerus clausus).

A resposta à pergunta depende do manuseio da técnica da transposição, por meio da qual será investigado se o penhor sem tradição pode ou não ser “traduzido” (transposto) em outro direito real previsto na lei portuguesa, de modo a conservar, em favor do credor pignoratício, uma garantia real sobre a coisa.

A transposição é a espécie de adaptação lato sensu destinada a viabilizar essa operação de Direito Internacional Privado.

Um outro caso de transposição merece averbação. A referência é o Colorado case, fruto de acórdão da Court of Appeal of England and Wales Colorado, de 12 de fevereiro de 19235. Trata-se de hipótese que se valeu da figura da transposição antes mesmo da publicação da principal e pioneira obra doutrinária sobre o tema da adaptação: a obra Règles Générales des Conflits de Lois, de Hans Lewald (1939).

O caso versava sobre definir uma hipoteca marítima (hypothèque maritime) constituída sob a égide da lei francesa. Pela lei francesa, o credor hipotecário - que era o banco Credit Maritime et Fluvial de Belgique – tinha prioridade em relação a outros credores na excussão da coisa.

O navio foi penhorado e vendido em hasta pública na Inglaterra por conta de ação judicial de cobrança dívidas da empresa proprietária da embarcação. A lei inglesa não previa essa hipoteca marítima.

Surgiu discussão acerca da prioridade creditória entre o credor hipotecário e outros credores (que haviam feito reparos no navio e não haviam sido pagos).

A Corte inglesa entendeu que, em relação à prioridade creditória, deveria ser aplicada a lei inglesa em respeito à lex rei sitae e à lex fori.

E, para tanto, é preciso traduzir (transpor) a hipoteca marítima francesa para uma figura próxima do direito inglês. É preciso, pois, realizar uma transposição.

E, ao realizar essa transposição, a hipoteca marítima francesa deve ser considerar como um direito de garantia com prioridade creditória em relação a outros credores. Deve ser considerada como uma figura com prioridade creditória similar a um penhor marítimo (maritime lien) ou uma hipoteca inglesa (English mortgage).

Portanto, feita a transposição da hipoteca marítima francesa para uma figura similar do direito inglês, é de reconhecer-se a prioridade creditória do banco Credit Maritime et Fluvial de Belgique na excussão da coisa.

Outros exemplos de aplicação da transposição merecem averbação.

Um deles é o Acórdão do Tribunal da Justiça Federal da Alemanha (Bundesgerichtbof - BGH) de 20 de março de 1963. Nesse caso, a Corte alemã transpôs um penhor de direito instituído à luz da lei francesa para uma propriedade fiduciária regida pelo direito alemão6.

Outro exemplo é o caso do Banco da Tanzânia, que já tratamos em outro artigo publicado nesta coluna.

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1 AKKERMANS, Bram; RAMAEKERS, Eveline. Free Movements of Goods and Property Law. In: Maastricht European Private Law Institute (M-EPLI) Working Paper 26/2011, European Law Journal, Forthcoming, May 28, 2011 (Disponível aqui. Acesso em 2 de fevereiro de 2022), p. 4.

2 PATRÃO, Afonso. A “adaptação” dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 150.

3 PATRÃO, Afonso. A “adaptação” dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 150.

4 PATRÃO, Afonso. A “adaptação” dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 150; LEWALD, Hans. Règles générales des conflits de lois. In: Recueil des cours, Tome 69, III, 1939, p. 129.

5 PATRÃO, Afonso. A “adaptação” dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 150; CASE BOOKS. Court of Appeal, 12 February 1923: The Colorado. Data: 12 February 1923 (Disponível aqui. Acesso em 2 de fevereiro de 2022).

6 PATRÃO, Afonso. A “adaptação” dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 150.

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Colunista

Carlos E. Elias de Oliveira é membro da Comissão de Reforma do Código Civil (Senado Federal, 2023/2024). Pós-Doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). 1º lugar em Direito no vestibular 1º/2002 da UnB. Ex-advogado da AGU. Ex-assessor de ministro STJ. Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e Registral. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário (único aprovado no concurso de 2012). Advogado, parecerista e árbitro. Instagram: @profcarloselias e @direitoprivadoestrangeiro.