Na coluna anterior, estávamos a tratar da adaptação stricto sensu, a qual é utilizada para resolver acidentes técnicos de conflitos de leis em situações transnacionais. Esses acidentes técnicos podem consistir em contradições (lógicas ou teleológicas) ou em incompatibilidades materiais. Já tratamos das contradições. Agora, passamos a cuidar das incompatibilidades materiais
No tocante às incompatibilidades materiais, elas consistem em hipóteses em que as normas convocadas a disciplinar uma situação transnacional geram, na prática, um resultado que denota uma incompatibilidade do conteúdo de ambas e a insuficiência dos critérios tradicionais de conflitos de normas. A adaptação stricto sensu é a via para afastar essa incompatibilidade material entre as normas.
O exemplo clássico é da comoriência1.
Suponha um pai português residente em Portugal, com um filho inglês residente na Inglaterra. Suponha que ambos morram em uma mesma ocasião, sem que se possa saber quem morreu em primeiro lugar (comoriência)2.
Para disciplinar a extinção da personalidade jurídica (momento da morte) e a sucessão mortis causa, deve-se aplicar a lei do domicílio do falecido, conforme elemento de conexão preponderante no caso. Assim, aplica-se a lei portuguesa para a extinção da personalidade e para a sucessão mortis causa do pai português. E aplica-se a lei inglesa para a extinção da personalidade e a sucessão mortis causa do filho inglês.
Acontece que esse critério tradicional de conflito de normas (a de elementos de conexão) acabará gerando uma incompatibilidade material entre as leis lusitana e inglesa.
É que, à luz da lei portuguesa, a comoriência faz presumir que a morte foi simultânea (extinção da personalidade jurídica). Desse modo, nenhum dos comorientes herdaria nada do outro (sucessão mortis causa). No exemplo acima, o pai português presumidamente teria morrido no mesmo momento do filho e, portanto, nenhum seria herdeiro do outro.
Todavia, a lei inglesa tem solução diferente para a extinção da personalidade jurídica no caso de comoriência. Ela faz presumir que o comoriente mais velho morreu em primeiro lugar3 (extinção da personalidade jurídica). Desse modo, o filho inglês teria morrido em segundo lugar.
E é aí que surge uma incompatibilidade material entre a lei portuguesa e a lei inglesa.
Pela lei inglesa, a presunção de precedência da morte do comoriente mais velho está umbilicalmente ligada à sua regra sucessória de que o comoriente mais novo poderá ser herdeiro daquele.
Já pela lei portuguesa, a presunção de morte simultânea dos comorientes está intrinsecamente conectada à sua regra sucessória de que nenhum dos comorientes será herdeiro um do outro.
As leis não são compatíveis no seu conteúdo quando são fracionadas para disciplinar aspectos diferentes de uma mesma situação jurídica transnacional.
Essa incompatibilidade material entre as duas normas exigiria que o jurista se valesse da adaptação stricto sensu para encontrar um resultado admissível e que sincronize as regras.
Problemas como esse ocorrem, porque cada ordenamento jurídico possui uma coerência lógica e sistemática interna. É um todo unitário dentro de si mesmo. Uma norma encontra justificativa em outra do mesmo ordenamento por serem frutos de um jogo de compensações de justiça do legislador. Praticamente nenhuma norma pode ser “isolada da ‘sintaxe’ desse todo sem perder a significação jurídico-material que lhe é própria”4.
Por isso, ao se deparar com problemas como esses, o direito internacional privado precisa dar uma solução por meio da técnica da adaptação stricto sensu. O objetivo do direito internacional privado é estender o “sentido de justiça material da legislação competente”5.
Esclarecemos que, no caso da União Europeia, o exemplo acima não seria aplicável, porque o art. 32º do Regulamento nº 650/2012[6] evitou, na raiz, essa incompatibilidade material. O referido dispositivo comunitário estabelece a presunção de morte simultânea no caso de comoriência e, portanto, os comorientes não serão herdeiros uns dos outros. Considerando, porém, que o Reino Unido não é mais Estado membro da União Europeia em razão do Brexit, o exemplo acima voltou a ser atual.
A realidade é que nem sempre é nítido definir quando há um caso de contradições (lógicas ou teleológicas) ou um de incompatibilidade material. Há hipóteses que misturam as duas situações. E nem nos parece tão relevante uma obsessão por categorização diante da proximidade entre as hipóteses. O que importa mesmo é identificar se o “simples jogo das normas de conflito” (as regras tradicionais de conflitos de normas) gera ou não um resultado impossível ou inadmissível. Se gerar, o caso é de o jurista valer-se da técnica de adaptação para corrigir esse resultado, interferindo no conteúdo material das regras.
Prosseguiremos tratando de exemplos de problemas práticos de adaptação stricto sensu na próxima coluna.
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1 PATRÃO, Afonso. A “adaptação” dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 92, 2016, p. 142.
2 A propósito, o art. 21º, item 1, do Regulamento (UE) nº 650/2012 indica a lei do local da residência habitual do falecido como a competente para regular a sucessão mortis causa.
3 Sec. 184 do Land Property Act, de 1925.
4 MACHADO, João Baptista. Problemas na aplicação do direito estrangeiro – adaptação e substituição. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 36, 1960, p. 338.
5 MACHADO, João Baptista. Problemas na aplicação do direito estrangeiro – adaptação e substituição. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 36, 1960, p. 338.
6 Confira-se (Regulamento (UE) nº 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho. Data: 4 de julho de 2012; disponível aqui):
Artigo 32.º
Comorientes
Sempre que duas ou mais pessoas cujas sucessões são regidas por leis diferentes morram em circunstâncias em que haja in certeza quanto à ordem em que os óbitos ocorreram e que essas leis regulem esta situação de forma diferente ou não a regulem, nenhuma destas pessoas tem direito à sucessão da outra ou das outras.