Damos continuidade ao tema tratado na coluna anterior.
4. Espécies de adaptação lato sensu
Em situações jurídico-transnacionais, é comum ocorrer o problema de um direito de um país (país de origem) não ser conhecido total ou parcialmente em outro (país de destino1).
Até o presente momento, empregamos a expressão “adaptação” em seu sentido amplo: a adaptação lato sensu. Há, porém, espécies desse tipo de adaptação, a saber:
a) adaptação stricto sensu2;
b) substituição; e
c) transposição.
Doutrina minoritária inclui a transposição dentro da substituição. Não é essa a melhor corrente Mais adequado é separar as figuras, apesar de haver certa proximidade entre elas3.
A adaptação4, em qualquer uma das suas espécies, é caracterizada por implicar uma aplicação parcial de uma lei estrangeira a uma situação plurilocalizada. Esse é o ponto em comum entre elas5. A diferença está nos tipos de problemas a serem enfrentados.
A adaptação lato sensu é empregada em situações de insuficiência das regras tradicionais de conflitos de normas em direito internacional privado. Estas não logram resolver todos os problemas conflituais. A adaptação é “o expoente paradigmático de algumas insuficiências do método conflitual”6. É uma amostra da necessidade de haver certa flexibilidade nas técnicas de soluções conflituais em direito internacional privado para obter resultados adequados.
5. Adaptação stricto sensu
A adaptação stricto sensu dá-se quando há um “acidente técnico”, na expressão de João Baptista Santos (1960, p. 328). O acidente técnico ocorre quando, para uma situação transnacional, duas leis de países diferentes são consideradas competentes para regulá-la e entram em conflito a ponto de gerar resultados impossíveis ou inadmissíveis7.
A adaptação stricto sensu é a técnica do direito internacional privado para conciliar essas duas normas que foram convocadas para regular a questão privada internacional e que, por si sós, acarretariam contradições (lógicas ou teleológicas) ou incompatibilidades materiais.
O objetivo da adaptação stricto sensu é encontrar uma congruência lógica ou teleológica diante da insuficiência dos métodos tradicionais de conflitos de normas, como os elementos de conexão. É corrigir o resultado inadmissível ou impossível que o “jogo de normas de conflito”8 acarreta em um caso concreto.
As contradições (lógicas ou teleológicas) e as incompatibilidades materiais são resultados impossíveis ou inadmissíveis que a adaptação stricto sensu busca desmanchar.
Cabe ao jurista tal tarefa em respeito à necessidade de preservar o vínculo natural que há entre os diversos ordenamentos jurídicos, dentro de uma ideia de unidade do sistema jurídico mesmo no plano internacional9.
O fato de inexistir uma regra de conflito para essa situação específica é irrelevante: cabe ao jurista preencher essa lacuna, adotando, por vezes, uma postura de legislador para ajustar o conteúdo material das normas estrangeiras envolvidas.
O jurista, porém, precisa ter cautela para não subverter as normas envolvidas. Tem de ser minimalista e cauteloso no manuseio da técnica da adaptação stricto sensu no caso concreto, com a acuidade própria de um neurocirurgião na fase mais sensível de uma operação no cérebro. João Baptista Machado10 destaca, in verbis:
Ao juiz não será lícito aceitar de braços cruzados um tal resultado: terá de o corrigir, ao decidir a hipótese litigiosa, procurando guardar respeito, na medida do possível, àquela interconexão de sentido que solidariza e argamassa as normas no ordenamento respectivo. Tem de preencher as lacunas que apareçam – tal como se lhe impõe para hipóteses internas –, tem de eliminar os contrassentidos e ajeitar a coatuação das diferentes leis, por forma a obter um “mosaico ilacunar” (Wengler) e harmônico.
Por isso se reconhece hoje em geral a necessidade de recorrer, em certos casos, a um procedimento de adaptação das normas materiais aplicáveis. Na expressão de Wengler, o juiz terá de proceder como se se tratasse de construir um automóvel com peças de marcas diferentes: passando além da simples função “constatadora” de normas de conduta dadas, o juiz avançará no sentido de uma conformação concreta das relações jurídicas através da sua decisão, no uso de uma faculdade quase-legislativa. É caso para dizer-se que ele atua não só secundum legem mas também de legibus. Essa atividade requer, por parte do juiz, um bom conhecimento do direito estrangeiro a adaptar, e o interesse da segurança jurídica pede que se limite ao mínimo a alteração introduzida no conteúdo da lei estrangeira.
Tratemos das contradições e das incompatibilidades.
A rigor, contradição lógica e contradição teológica são diferentes, nas palavras de Antônio Marques dos Santos11, que se apoia em G. Kegel. Contradição lógica dizem respeito a casos “assim não pode ser”. Contradição teleológica já aludem a casos “assim não deve ser”. Apesar de ser didático pensar assim, temos por mais didático tratá-las em globo dentro do termo “contradições”, pois o resultado de ambas é o mesmo: a utilização da técnica da adaptação stricto sensu.
Quanto às contradições lógicas ou teleológicas (também chamadas de contrassentidos lógicos ou teleológicos), elas ocorrem quando a aplicação das duas leis competentes para disciplinar o caso gera um resultado incompatível com a finalidade de ambas as leis. Dá-se quando a aplicação pura das regras tradicionais de conflito internacional de normas cria uma contradição teleológica: colide com a ratio de ambos os ordenamentos jurídicos envolvidos.
O exemplo clássico da doutrina é do pai biológico português em conflito com o pai adotivo marroquino12.
Suponha que A (português residente em Portugal) tenha um filho biológico C.
Suponha que C tenha sido adotado por B (marroquino residente em Marrocos) à luz da lei marroquina. A adoção em países muçulmanos não corresponde propriamente à adoção comum nos países ocidentais. É chamada de kafâla e acarreta consequências jurídicas diferentes13.
C, portanto, é filho biológico do português e filho adotivo de B.
A lei portuguesa exclui o filho biológico que foi adotado por outrem da herança do pai biológico. Pressupõe que o filho biológico, ao ser adotado por terceiro, participará da herança deste último. No caso acima, à luz da lei lusitana, se o pai português (A) morresse, o seu filho biológico (C) não seria seu herdeiro, pois já foi adotado por outrem.
Acontece que a lei marroquina parte de lógica diferente. Ela exclui o filho adotivo da herança do pai adotivo. Escora-se na premissa de que o filho adotivo se beneficiará da herança do pai biológico. Na hipótese em pauta, à luz da lei marroquina, se o pai marroquino (B) morrer, o seu filho adotivo (C) não lhe será herdeiro.
Pelas regras tradicionais de solução de conflito (especificamente a de elementos de conexão), a lei portuguesa disciplinará a sucessão mortis causa do pai português, e a lei marroquina, a do pai marroquino. É que, nesses casos, o elemento de conexão é a lex domicilli: aplica-se a lei do domicílio do falecido para disciplinar sua sucessão mortis causa.
Dado esse cenário, suponha que ambos os pais faleçam. Nessa hipótese, se aplicarmos isoladamente cada uma das leis em tela, C não receberá herança alguma: nem do pai português, nem do pai marroquino. Trata-se de uma contradição teleológica: a finalidade de cada uma das leis em conflito está sendo frustrada. Cada uma das leis colimava que o filho recebesse uma herança. Mas, na espécie, C não receberá herança alguma se aplicarmos as duas leis isoladamente.
No exemplo acima, percebe-se que a aplicação dos métodos tradicionais de solução de conflitos de normas estrangeiras desaguará em um resultado inadmissível diante da contradição teleológica.
A adaptação stricto sensu é a técnica de direito internacional privado destinada a dissolver essa contradição lógica.
Deixaremos para a próxima coluna o tratamento das hipóteses de incompatibilidades materiais.
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1 Empregamos as expressões “país de origem” e “país de destino” para facilitar a compreensão.
2 Há autores, como Luis de Lima Pinheiro, que adotam nomenclatura diferente: no lugar de “adaptação lato sensu” e “adaptação stricto sensu”, emprega respectivamente os termos “adaptação-problema” e “adaptação-solução” (Lima Pinheiro, 2019, pp. 540-545; Patrão, 2016, p. 139). No mais, admitem os termos substituição e transposição. Preferimos, porém, as expressões mais tradicionais para evitar dispersões taxonômicas que mais confundem do que esclarecem. Melhor, portanto, é referir-se à adaptação stricto sensu. Embora não se encontre na doutrina a expressão adaptação lato sensu, utilizamo-la aqui por entendermos estar implícita na escolha da doutrina em empregar o termo “adaptação” como um grande gênero dentro do qual a “adaptação stricto sensu” é uma espécie (Monaco, 2019, p. 153). Há, ainda, autores, como Giorgio Cansacchi, que deram sentido muito mais amplo ao conceito de adaptação, mas é adequadamente criticado por misturar o tema com problemas diferentes de direito internacional privado, como qualificação e reenvio (PATRÃO, Afonso. A “adaptação” dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 92, 2016, p. 140).
3 PATRÃO, Afonso. A “adaptação” dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 92, 2016, pp. 126 e 146.
4 Quando utilizarmos o termo “adaptação”, a referência é ao sentido amplo (lato sensu).
5 PATRÃO, Afonso. A “adaptação” dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 92, 2016, p. 140.
6 ROZAS, José Carlos Fernández. “Coordinación de ordenamientos jurídicos estatales y problemas de adaptación”. In: Revista Mexicana de Derecho Internacional Privado y Comparado, nº 25, 2009, p. 11.
7 PATRÃO, Afonso. A “adaptação” dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 92, 2016, pp. 140-142.
8 Expressão de João Baptista Machado (MACHADO, João Baptista. Problemas na aplicação do direito estrangeiro – adaptação e substituição. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 36, 1960, p. 338).
9 MACHADO, João Baptista. Problemas na aplicação do direito estrangeiro – adaptação e substituição. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 36, 1960, p. 330.
10 MACHADO, João Baptista. Problemas na aplicação do direito estrangeiro – adaptação e substituição. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 36, 1960, pp. 330-331.
11 MARQUES DOS SANTOS, António. Breves considerações sobre a adaptação em direito internacional privado. In: Estudos em Memória do Professor Doutor Paulo Cunha. Lisboa/Portugal: Faculdade de Direito de Lisboa, 1989, P. 570.
12 PATRÃO, Afonso. A “adaptação” dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 92, 2016, p. 141.
13 Considerar a Kafâla como uma adoção nos países ocidentais é fruto de uma espécie de adaptação lato sensu: a substituição.