Migalhas de Direito Privado Estrangeiro

Adaptação lato sensu de direitos estrangeiros com foco no Direito Privado - Parte I (noções gerais)

Jurista Carlos E. Elias de Oliveira trata de um problema clássico de direito privado internacional: a adaptação de Direito Estrangeiro.

19/9/2023

1. Esclarecimentos iniciais

Em artigo anterior, tratamos de um exemplo de adaptação lato sensu de direito estrangeiro (https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-direito-privado-estrangeiro/393052/julgado-da-suprema-corte-da-holanda). Naquele caso, a Suprema Corte Holandesa adaptou a garantia flutuante instituída segundo a legislação da Tanzânia para o penhor silencioso da legislação holandesa. Expusemos que esse caso poderia ser estendido ao Brasil, com eventual adaptação lato sensu da garantia flutuante para a propriedade fiduciária em garantia.

No presente artigo, passaremos a tratar um pouco mais desse que é um dos principais institutos de Direito Internacional Privado: a adaptação lato sensu. E, nesse ponto, registramos nossos elogiosos à produção de um dos principais internacionalistas brasileiros atuais que se dedicam ao tema: o Professor Gustavo Ferraz de Campos Mônaco.

Em um primeiro momento, exporemos o tema de modo mais superficial para facilitar a compreensão de leitores de primeira viagem nesse tema. Em artigos futuros, aprofundaremos o instituto.

2. Noções gerais

Em situações jurídico-transnacionais, é comum ocorrer o problema de um direito de um país (país de origem) não ser conhecido total ou parcialmente em outro (país de destino[1]).

Por desconhecimento total, designamos a situação de o ordenamento do país de destino não admitir o direito do país de origem.

Por desconhecimento parcial, batizamos a situação em que o ordenamento do país de destino admite o direito do país de origem com ressalvas. Essas ressalvas referem-se a diferenças de regime jurídico ou a diferenças de nomen iuris.

Em sucessões mortis causa envolvendo bens situados em diferentes países, é potencial o problema de a lei do lugar do bem (lex rei sitae ou lex situs) não conhecer total ou parcialmente o direito real que a lei sucessória outorgue a um herdeiro. Lembramos que, na maioria dos países, a lex situs é o elemento de conexão adotado para disciplinar direitos reais sobre bens, especialmente no caso de imóveis.

Se, por exemplo, uma lei sucessória ou um testamento defere um direito real de habitação a um herdeiro, indaga-se: o que se fará se a lex rei sitae não conhecer total ou parcialmente esse direito real dentro de sua legislação? Seria viável onerar o bem com um direito real totalmente desconhecido pela lex rei sitae (desconhecimento total)? E como ficaria essa questão na hipótese de o direito real ser apenas parcialmente conhecido pela lex rei sitae, como na situação em que o direito real é sujeito a um regime jurídico diferente (com, por exemplo regras de transmissão e de extinção diversas)?

Para situações como essa, discute-se se seria ou não cabível a adaptação lato sensu do direito estrangeiro para sua admissão no país de destino.

3. Conceituação geral

O tema da adaptação de direitos estrangeiros é tratado pela doutrina do direito internacional privado. Hans Lewald é tido como um dos pais desse instituto por ter implantado a discussão sobre essa figura no seu artigo Règles générales des conflits de lois, na Recueil des cours de 1939 (Lewald, 1939). Outros juristas cuidaram do assunto a partir dessas reflexões de Hans Lewald[2].

 No presente artigo, tratamos da adaptação lato sensu, assim entendido gênero do qual são espécies a adaptação stricto sensu, a transposição e a substituição. Deixaremos para aprofundar cada uma dessas espécies em outro artigo posteriormente. Assim, quando nos referirmos ao termo “adaptação”, estaremos fazendo alusão à adaptação lato sensu. A doutrina costuma seguir essa convenção taxonômica.

De um modo simples, mas bem impressivo, a adaptação de direito estrangeiro pode ser vista como uma tradução, nas palavras de Gustavo Ferraz de Campos Monaco[3].

Nas palavras de Afonso Patrão, é o “conjunto de mecanismos aptos a solucionar os problemas derivados da aplicação parcial de várias leis”[4]. É um expediente técnico para que o julgador possa resolver esses problemas.

Esses problemas ocorrem quando estamos diante de situações jurídicas plurilocalizadas, ou seja, de situações jurídicas transnacionais. Nesses casos, a adaptação é a técnica do direito internacional privado destinada a lidar com questões claramente sujeitas a distintas leis e a distintas normas de conflito[5].

A necessidade de resolver esses problemas por meio da técnica da adaptação decorre da ideia de unidade do sistema jurídico.

No plano internacional privado, há um vínculo natural entre as diversas regras jurídicas. Por vezes, esse vínculo natural pode ser abalado “no jogo das normas em conflito”[6]. Para dissolver esse abalo ao vínculo internacional das normas, pode ser necessário ajustar a própria solução material das leis em conflito[7].

A doutrina majoritária do direito internacional privado admite a figura, embora ainda esteja tateando na sua aplicação nos casos concretos.

Não há muitas normas chancelando expressamente a figura. As principais são em caso de adaptação de direitos reais. É o caso, por exemplo, do art. 31º do Regulamento Europeu das Sucessões[8] e também do art. 15 da Convenção de Haia de 1985 sobre a lei aplicável ao Trust e ao seu reconhecimento[9]. Este último estabelece a necessidade de o trust ser adaptado em outro direito admitido pelo ordenamento local com efeitos similares[10].

Mesmo sem previsão normativa expressa, entendemos que a adaptação pode ser admitida no Brasil com base nos princípios gerais de Direito Internacional Privado.

Em artigo posterior, aprofundaremos as espécies de adaptação lato sensu.

 



[1] Empregamos as expressões “país de origem” e “país de destino” para facilitar a compreensão.

[2] Entre outros, citamos: ROZAS, José Carlos Fernández. “Coordinación de ordenamientos jurídicos estatales y problemas de adaptación”. In: Revista Mexicana de Derecho Internacional Privado y Comparado, nº 25, 2009, pp. 9-44; PATRÃO, Afonso. A “adaptação” dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016; PATRÃO, Afonso. Reflexões sobre o reconhecimento de Trusts voluntários sobre imóveis situados em Portugal. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  87, 2011; MARQUES DOS SANTOS, António. Breves considerações sobre a adaptação em direito internacional privado. In: Estudos em Memória do Professor Doutor Paulo Cunha. Lisboa/Portugal: Faculdade de Direito de Lisboa, 1989, pp. 521-606; MACHADO, João Baptista. Problemas na aplicação do direito estrangeiro – adaptação e substituição. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 36, 1960, pp. 327-351; MACHADO, João Baptista. Contributo da escola de Coimbra para a teoria do direito internacional privado. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 61, pp. 159-176, 1985; MONACO, Gustavo Ferraz de Campos. Conflitos de leis no espaço e lacunas (inter)sistêmicas. São Paulo: Quartier Latin, 2019, pp. 121-160; FERRER CORREIA, Antonio. Considerações sorbe o método do direito internacional privado. In: Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J. J. Teixeira Ribeiro (Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, número especial). Coimbra/Portugal, 1983, pp. 1-92; FERRER CORREIA, Antonio. Considerações sorbe o método do direito internacional privado. In: Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J. J. Teixeira Ribeiro (Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, número especial). Coimbra/Portugal, 1983, pp. 1-92; ANCEL, Bertrand. Regards critiques sur l’érosion du paradigme conflictual. Disponível em: https://www.ehu.eus/documents/10067636/10730148/2005-bertrand-ancel.pdf. Acesso em 2 de fevereiro de 2022. Destaca-se também o jurista francês Henri Batiffol (1905-1989), que dominou a doutrina francesa de direito internacional privado e que é multicitado pelos demais internacionalistas privados também em matéria de adaptação de direitos estrangeiros (SOCIÉTÉ FRANÇAISE POUR LE DROIT INTERNATIONAL. Henri Batiffol. Disponível em: https://www.sfdi.org/internationalistes/batiffol/. Acesso em 4 de abril de 2022). Entre as diversas contribuições dele, destaca-se artigo sobre as contribuições das regras norte-americanas de soluções de conflitos para o direito francês (LEWALD, Hans. Règles générales des conflits de lois. In: Recueil des cours, Tome 69, III, 1939, pp. 48-74).

[3] MONACO, Gustavo Ferraz de Campos. Conflitos de leis no espaço e lacunas (inter)sistêmicas. São Paulo: Quartier Latin, 2019, pp. 121-159.

[4] PATRÃO, Afonso. A “adaptação” dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 140.

[5] PATRÃO, Afonso. A “adaptação” dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, pp. 139-140.

[6] MACHADO, João Baptista. Problemas na aplicação do direito estrangeiro – adaptação e substituição. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 36, 1960, p. 330.

[7] LIMA PINHEIRO, Luís de. Direito Internacional Privado, volume I: introdução e direito de conflitos – Parte Geral. Lisboa/Portugal: AAFDL, 2019, p. 541.

[8] Regulamento (UE) nº 650/2012 (Eur-lex, 2012-A). Confira-se o teor do dispositivo:

 

Artigo 31.º

Adaptac¸a~o dos direitos reais

 

No caso de uma pessoa invocar um direito real sobre um bem a que tenha direito ao abrigo da lei aplica'vel a` sucessa~o e a legislac¸a~o do Estado-Membro em que o direito e' invocado na~o reconhecer o direito real em causa, esse direito deve, se necessa'rio e na medida do possi'vel, ser adaptado ao direito real equivalente mais pro'ximo que esteja previsto na legislac¸a~o desse Estado, tendo em conta os objetivos e os interesses do direito real em questa~o e os efeitos que lhe esta~o associados.

[9] HCCH, 30: Convenção sobre a lei aplicável ao trust e a seu reconhecimento. Data: 1 de julho de 1985 (Disponível: https://www.hcch.net/pt/instruments/conventions/full-text/?cid=59#:~:text=para%20os%20prop%c3%b3sitos%20desta%20conven%c3%a7%c3%a3o,ou%20para%20alguma%20finalidade%20espec%c3%adfica. Acesso em 3 de fevereiro de 2022).

[10] Confira-se o dispositivo o art. 15 da Convenção de Haia de 1985:

 

Artigo 15

A Convenção não prevê a aplicação de disposições de direito designadas pelas regras de conflitos do foro, na medida que estas disposições não possam ser derrogadas por ato voluntário, relacionado em particular às matérias que seguem:

 

a) a proteção de menores e partes incapazes;

b) os efeitos pessoais e de propriedade do casamento;

c) direitos de sucessão, testamentária e não testamentária, especialmente a reserva a cônjuges e parentes;

d) a transferência do título de propriedade e garantias reais;

e) a proteção dos credores em questões de insolvência;

f) a proteção de terceiros de boa-fé.

 

Caso o reconhecimento do trust seja impossível pela aplicação do parágrafo precedente, a corte buscará dar efeitos aos objetivos do trust por outros meios jurídicos.

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Colunista

Carlos E. Elias de Oliveira é membro da Comissão de Reforma do Código Civil (Senado Federal, 2023/2024). Pós-Doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). 1º lugar em Direito no vestibular 1º/2002 da UnB. Ex-advogado da AGU. Ex-assessor de ministro STJ. Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e Registral. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário (único aprovado no concurso de 2012). Advogado, parecerista e árbitro. Instagram: @profcarloselias e @direitoprivadoestrangeiro.