Migalhas de Direito Privado Estrangeiro

Julgado da Suprema Corte da Holanda: Adaptação lato sensu da garantia flutuante aos sistema de direitos reais nacionais

Jurista Carlos E. Elias de Oliveira trata de julgado da Suprema Corte da Holanda adaptando a garantia flutuante (floating charge) a um direito real de garantia nacional compatível.

5/9/2023

Trataremos de interessante julgado da Suprema Corte da Holanda, cujo raciocínio poderia ser estendido ao sistema brasileiro, por conta da similaridade.

A Holanda, assim como o Brasil, não prevê a garantia flutuante (floating charge) como direito real na sua lei. Isso acarreta problemas práticos no caso de execução dessa garantia flutuante pactuada em contrato celebrado no exterior, quando a garantia vier a recair sobre bem situado no país.

Trata-se de um problema conhecido no Direito Internacional Privado como adaptação lato sensu de direito estrangeiro, mais especificamente um problema de transposição. Deixaremos para outra oportunidade o aprofundamento desses conceitos.

Passamos, porém, a expor julgado holandês que enfrentou o problema acima e deu uma solução que poderia ser adotada pelas Cortes brasileiras, mutatis mutandi: entendemos que a transposição da garantia flutuante poderia ser feita para uma propriedade fiduciária em garantia por conta de sua maior força executiva do que o penhor, à luz da legislação brasileira.

Trata-se do que chamaremos de Caso do Banco da Tanzânia, formalmente conhecido como NBC Holding Corporation (Tanzania National Bank of Commerce) v. Societa Italiana Sisal e Afini Lavorata S.P.A., julgado pela Suprema Corte da Holanda (Hoge Raad der Nederlanden) em 23 de abril de 19991.

Nesse caso, a Suprema Corte holandesa (Hoge Raad) transpôs uma garantia flutuante (floating charge) instituída à luz da lei da Tanzânia em um penhor sem apossamento da lei holandesa2.

Esse caso convida aprofundamento por sua riqueza fática e pela sua utilidade para outros casos concretos envolvendo conflitos móveis envolvendo a técnica do Direito Internacional Privado de transposição (recognition, no direito norte-americano)3.

Os fatos podem ser resumidos da seguinte maneira.

Uma empresa chamada Codage tinha uma dívida de 2 milhões de dólares perante o banco da Tanzânia (NBC Holding Corporation4). E, em garantia dessa dívida, a Codage ofereceu um floating charge (uma garantia flutuante) sobre o patrimônio da sua atividade empresarial (como as mercadorias).

O floating charge não recai sobre um bem específico, mas sobre o patrimônio em si (a universalidade de bens), abrangendo bens presentes e futuros dessa universalidade. Desse modo, a empresa devedora tem liberdade para dispor dos seus bens na sua atividade empresarial, como mercadorias, recebíveis (créditos perante clientes) etc.

Quando o credor tiver de executar a garantia por conta de uma inadimplência, ele, então, especializará a garantia, fazendo-a incidir sobre um bem específico entre os que, naquele momento, estiver sob a titularidade do devedor. Cabe-lhe nomear um receptor por meio de um procedimento executivo previsto na lei da Tanzânia.

Nesse momento, o floating charge transformar-se em um fixed charge (garantia fixa). Em outras palavras, a floating charge é um ônus que fica flutuante dentro de uma universalidade de bens até, quando da execução, possa fixar em um bem específico. De modo metafórico, é um espírito que fica pairando em cima do patrimônio presente e futuro do devedor à espera de, no caso de inadimplência, encarnar-se em um bem específico.

Acontece que a empresa Codage tinha, na Holanda, um bem avaliado em 2,35 milhões de dólares5. A rigor, esse bem, por integrar o patrimônio da empresa, estava também onerado pela garantia flutuante da lei da Tanzânia.

A empresa Codage passou a desonrar suas dívidas não apenas perante o banco da Tanzânia, mas também perante um outro credor (a sociedade Sisal6).

A Codage não pagou a dívida de 1,95 milhões de dólares que detinha perante a sociedade Sisal7. Essa credora, então, ajuizou ação na Holanda e obteve a penhora do supracitado bem que a Codage tinha na Holanda.

O problema é que esse bem, a rigor, era objeto de uma garantia flutuante (floating charge) anteriormente instituída em favor do banco tanzaniano.

O banco da Tanzânia reagiu e, diante da inadimplência da Codage, executou o floating charge e especializou a garantia sobre esse mesmo bem situado na Holanda. Por consequência, o banco tanzaniano buscou onerar esse bem situado na Holanda com um fixed charge, fruto da execução sumária do floating charge.

O conflito entre esses dois credores (Sisal e banco tanzaniano) foi instalado. Quem teria prioridade na excussão da coisa: o banco tanzaniano por força de seu fixed charge ou a Codage por força de sua penhora?

O banco tanzaniano interveio no processo para reivindicar a prioridade na excussão da coisa com base no seu floating charge instituído à luz da lei da Tanzânia.

A Codage, porém, contra-atacou. Afirmou que, para reger direitos reais sobre a coisa, há de aplicar-se a lei da sua localização (lex rei sitae), que, no caso, é a lei holandesa. E, à luz da lei holandesa, que adota a tipologia de numerus clausus de direitos reais, o floating charge não é admitido. Logo, o banco tanziano não teria nenhuma prioridade creditória.

O Judiciário holandês, então, teve de decidir quem teria direito. E, para tanto, imergiu em debates de transposição: o floating charge tanzaniano, com seu alto enforcement garantido por um rito de execução sumária, poderia ou não ser transposto para algum direito real similar admitido na Holanda?

Esse foi o cerne dos debates no supracitado acórdão.

A discussão é se a garantia flutuante (floating charge) tanzaniana poderia ou não ser objeto de transposição para o direito real holandês mais próximo: o penhor silencioso (stil pandrecht, em holandês), também chamado de penhor não possessório (bezitloos pandrecht) ou penhor sem punho (vuistloos pandrecht)8.

O penhor silencioso holandês é um penhor sem tradição: o devedor pignoratício não entrega a coisa9. Recai sobre um bem presente e específico.

A Sisal defendeu que não cabia a transposição, entre outros motivos, pelo fato de o penhor silencioso neerlandês recair sobre um bem presente e específico, ao contrário da garantia flutuante tanzaniana (que recai sobre uma universalidade de bens).

Invoca, também, outro motivo processual: o de que o penhor silencioso neerlandês enseja um procedimento de execução sumário, o qual não existiria para a garantia flutuante tanzaniana. O grau de enforcement dos direitos cotejados seria diferente.

O Hoge Raad (Supremo Tribunal da Holanda) rejeitou esses argumentos da Sisal. Admitiu, pois, a transposição da garantia flutuante (floating charge) tanzaniana para o penhor silencioso holandês.

O fato de a garantia flutuante recair sobre uma coisa futura não seria obstáculo para a transposição. O que importa é a proximidade das figuras e o fato de que, no caso concreto, o banco tanzaniano pleiteia a especialização da garantia flutuante sobre um bem específico. São esclarecedoras estas palavras do acórdão do Tribunal de Recurso de Amsterdã – que foi secundado pelo Hoge Haad nesse ponto:

4.20. a avaliação da possibilidade de assimilação não se trata de identificar pontos de divergência, mas de saber se a lei estrangeira em questão apresenta tal grau de concordância com a lei holandesa que se pode concluir que a lei estrangeira persegue o mesmo objetivo. Se a lei holandesa e em circunstâncias comparáveis ??levarem ao mesmo resultado. A avaliação disso deve ocorrer no momento em que a lei relevante se manifesta no sistema jurídico holandês.10

 

Além disso, para efeito da transposição, o rito executivo do floating charge tanzaniano, consistente na nomeação de um receptor, é equivalente à execução sumária do penhor silencioso holandês. Os meios executivos são similares. Os graus de enforcement são parecidos.

A doutrina também acena para a equivalência do floating charge para o penhor, inclusive o penhor silencioso holandês (stil pandrecht). O Procurador-Geral oficiante perante o Hoge Haad no caso concreto sublinhou11:

12. Na literatura, o floating charge é considerado equiparável ao penhor (silencioso holandês). Veja, por exemplo, R.J. Botter, Nn 1992, pp. 239/240; A.A. van Velten, NJB 1996, pp. 1041-1046; U. Drobnig, Security Rights in Movables, in: Towards a European Civil Code, 2ª ed. (1998), pp. 511-524 (ver em particular pp. 517 e 523); T.H.D. Struycken, AA 1998, pp. 417-436.

Tanto a garantia flutuante (floating charge) tanzaniana quanto o penhor silecioso holandês (stil pandrecht) possuem o mesmo objetivo: servir de uma garantia real que não inviabilize as atividades do devedor pelo fato de deixar este com a posse direta sobre o bem onerado. Ambas as garantias não subtraem a posse da coisa pelo devedor.

A principal diferença entre esses dois direitos reais de garantia é que, no penhor silencioso holandês (stil pandrecht), só os bens expressamente listados podem ser onerados. Não recai, portanto, sobre bens futuros e eventuais, como futuros créditos, ao contrário do floating charge.

No penhor silencioso holandês (stil pandrecht), a lista de bens oneradas tem de ser levada a registro no competente órgão registral. A lista pode ser periodicamente atualizada por um mero procedimento eletrônico simplificado. O próprio registro segue um procedimento bem simplificado.

Diante das fortes semelhanças entre o penhor silencioso holandês (stil pandrecht) com a garantia flutuante (floating charge) tanziano, as pequenas diferenças são irrisórias e não substanciais. Na essência, as figuras equivalem-se.

__________

1 DE RECHTSPRAAK. ECLI:NL:PHR:2001:AD4933 – Societa Italiana Sisal E Afini Lavorata S.P.A. tegen NBC Holding Corporation (voorheen Tanzania National Bank of Commerce): De Procureur-Generaal. Datum publicatie: 17-12-2001-A (Disponível aqui. Acesso em 2 de fevereiro de 2022); DE RECHTSPRAAK. ECLI:NL:PHR:2001:AD4933 – Societa Italiana Sisal E Afini Lavorata S.P.A. tegen NBC Holding Corporation (voorheen Tanzania National Bank of Commerce): De Hoge Haad. Datum publicatie: 17-12-2001-B (Disponível aqui. Acesso em 2 de fevereiro de 2022). AKKERMANS, Bram; RAMAEKERS, Eveline. Free Movements of Goods and Property Law. In: Maastricht European Private Law Institute (M-EPLI) Working Paper 26/2011, European Law Journal, Forthcoming, May 28, 2011. (Disponível aqui. Acesso em 2 de fevereiro de 2022)

2 Ulrich Drobnig problematiza várias outras situações decorrentes de direitos reais de garantias sobre imóveis (DROBNIG, Ulrich. Security Rights in Movables. Data: 15 de janeiro de 2010 (Disponível aqui. Acesso em 30 de janeiro de 2022). _____________. Unified Rules on Proprietary Security – in the World and in Europe. In: BFD, n. 85, 2009, pp. 667-678).

3 Bram Akkermans e Eveline Ramaerkers tratam do tema com olhos nos conflitos móveis entre os Estados norte-americanos (AKKERMANS, Bram; RAMAEKERS, Eveline. Free Movements of Goods and Property Law. In: Maastricht European Private Law Institute (M-EPLI) Working Paper 26/2011, European Law Journal, Forthcoming, May 28, 2011).

4 O NBC Holding Corporation é um dos bancos mais antigos da Tanzânia (site oficial).

5 O bem eram recebíveis que estavam sob a custódia de um banco holandês por terem sido integrados a uma carta de crédito. Os recebíveis eram créditos de 2,35 milhões de dólares que a empresa Codage tinha perante clientes canandenses.

6 Societa Italiana Sisal e Afini Lavorata S.P.A.

7 A empresa Sisal havia reivindicado 2,5 milhões de dólares como crédito, mas os tribunais holandeses só reconheceram 1,95 milhões de dólares

8 Está previsto no livro 3, art. 239 do Código Civil holandês (3:329 BW).O Código Civil holandês (Burgerlijk Wetboek em holandês e abreviado como BW) está disponível neste site.

9 O penhor com tradição é chamado de penhor de punho (vuistpand vestigen, em holandês) e está no livro 3, art. 236 do Código Civil holandês (3:226 BW).

10 Tradução livre deste excerto (DE RECHTSPRAAK. ECLI:NL:PHR:2001:AD4933 – Societa Italiana Sisal E Afini Lavorata S.P.A. tegen NBC Holding Corporation (voorheen Tanzania National Bank of Commerce): De Procureur-Generaal. Datum publicatie: 17-12-2001-A (Disponível aqui. Acesso em 2 de fevereiro de 2022); DE RECHTSPRAAK. ECLI:NL:PHR:2001:AD4933 – Societa Italiana Sisal E Afini Lavorata S.P.A. tegen NBC Holding Corporation (voorheen Tanzania National Bank of Commerce): De Hoge Haad. Datum publicatie: 17-12-2001-B (Disponível aqui. Acesso em 2 de fevereiro de 2022):

4.20 Het gaat bij beoordeling van de mogelijkheid van assimilatie immers niet om het signaleren van verschilpunten, maar om de vraag of het desbetreffende buitenlandse recht een zodanige mate van overeenstemming vertoont met een Nederlands recht, dat geconcludeerd kan worden dat het buitenlandse recht hetzelfde doel nastreeft als het Nederlandse recht en in vergelijkbare omstandigheden tot hetzelfde resultaat leidt. De beoordeling van een en ander dient te geschieden op het tijdstip dat het desbetreffende recht zich in het Nederlandse rechtssysteem manifesteert.

11 Tradução livre deste excerto (DE RECHTSPRAAK. ECLI:NL:PHR:2001:AD4933 – Societa Italiana Sisal E Afini Lavorata S.P.A. tegen NBC Holding Corporation (voorheen Tanzania National Bank of Commerce): De Procureur-Generaal. Datum publicatie: 17-12-2001-A (Disponível aqui. Acesso em 2 de fevereiro de 2022)12. In de literatuur wordt de floating charge vergelijkbaar geacht met het (Nederlandse stille) pandrecht. Zie bijv. R.J. Botter, Bb 1992, blz. 239/240; A.A. van Velten, NJB 1996, blz. 1041-1046; U. Drobnig, Security Rights in Movables, in: Towards a European Civil Code, 2d ed. (1998), blz. 511-524 (zie met name blz. 517 en 523); T.H.D. Struycken, AA 1998, blz. 417-436.

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Colunista

Carlos E. Elias de Oliveira é membro da Comissão de Reforma do Código Civil (Senado Federal, 2023/2024). Pós-Doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). 1º lugar em Direito no vestibular 1º/2002 da UnB. Ex-advogado da AGU. Ex-assessor de ministro STJ. Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e Registral. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário (único aprovado no concurso de 2012). Advogado, parecerista e árbitro. Instagram: @profcarloselias e @direitoprivadoestrangeiro.