Na coluna anterior, começamos a tratar da disseminação do movimento de codificação para outros continentes. Continuemos.
Na Ásia, a família do civil law deitou raízes, ainda que, em alguns casos, em mescla com outras famílias. Foi o caso, por exemplo, da Turquia, que, embora tenha mantido elementos do direito muçulmano, incorporou do civil law uma forma de modernização do seu direito, tudo a partir de 18391. A dinâmica plural do Império Otamano concorreu para essa configuração.
No século XIX, o Império Otomano introduziu elementos laicos no seu sistema jurídico, que, até então, era preponderamente muçulmano. A pluralidade de povos sob o domínio otomano colaborou para esse cenário. A ideia de um direito turco mais racional e justo ganhou força. Houve uma seculização do direito turco. É desse contexto que decorrem, por exemplo, o Código Comercial otomano (1850), o Código Marítimo otomano (1863) e as Regras de Processo Civil (1879). No século XIX, a ideia de um Código Civil em si sofreu resistência e, em seu lugar, houve publicação de partes da Sharia em 16 livros, os quais ficaram conhecidos como Mecelle (Mecelle-i ahkami adliye, em turco), também traduzida em outros países como Mejelle, Majalla, Megelle, Medjélié. O Mecelle, de qualquer forma, pode ser considerada uma espécie de Código Civil do Império Otomano2.
No século XX, especialmente entre 1926 e 1929, a Turquia – fundada em 1923 após o desmantelamento do Império Otomano – passou por mudanças estruturais rumo a formação de uma república parlamentar ocidentalizada, marcada por um maior secularismo e pela adoção de um modelo de Estado de Direito. Nesse contexto, o primeiro Código Civil turco nasceu em 1926 como fruto dessa conexão, com fortíssima inspiração do ZQB3 (Código Civil suíço). A escolha do ZQB como referência explica-se por vários motivos, como: (1) o fato de alguns juristas turcos terem estudado na Suíça francesa; (2) a maior familiaridade desses juristas com idioma francês; (3) o fato de o ZQB ser um dos mais recentes; (4) a extensão do ZQB ser consideravelmente inferior ao BGB4; (5) o uso de muitas cláusulas gerais colaborou para a recepção das regras do ZQB pela Turquia5. O antigo Código Civil turco foi substituído pelo atual, de 20026.
Os Estados árabes do Oriente Médio, a seu turno, não foram tão receptivos ao civil law. Mantiveram-se fiéis ao direito muçulmano, ao menos em relação aos cidadãos muçulmanos. A influência do civil law foi pequena na pensínsula da Arábia7.
Israel sofreu maior influência do common law por conta dos britânicos. Iraque e Jordânia também seguiram esse caminho em um primeiro momento, mas, posteriormente, regressaram à tradição romano-germânica8.
O civil law exerceu influência em alguns outros países asiáticos, como na China, no Vietnã, no Japão, na Coréia do Sul, na Coréia do Norte, na Tailândia, em Camboja, no Laos, Filipinas, Sri Lanka, Idonésia. Vários deles, porém, seguem um modelo misto por ter elementos de outras famílias9.
Mesmo dentro da família do civil law, há variações, como: (1) os direitos franceses (civil law francês); (2) os dos direitos germânicos (civil law germânico); (3) o dos direitos escandinavos (civil law escandinavo); e (4) os dos direitos da América Latina10.
O civil law francês é marcado não apenas pela estrutura do Código Civil napoleônico, mas também por uma valorização da cultura jurídica judicial. O Código foi uma sistematização e positivação dos costumes e da jurisprudência, além, obviamente, das teorizações do direito romano. Os profissionais do Direito, como advogados e, em alguns países – como na Espanha –, os notários, possuem notável relevância nesse sistema11.
O civil law francês espalhou-se na América Latina (com certas ressalvas em alguns países, como no Brasil e no Peru), na América do Norte (estado norte-americano de Luisiana e províncias canandeses de Quebec), nos países do Oriente Médio com forte influência francesa (Egito, Síria e Líbano) e nas antigas colônias francesas na África e na Ásia. Na Europa, a presença do civil law francês expressa-se nos Estados do Benelux (Bélgica, Países Baixos e Luxemburgo) e em parte dos Bálcãs (especialmente Romênia), além de inegável influência em praticamente todas as demais nações europeias12.
Já o civil law germânico refere-se especialmente às codificações das nações de língua germânica, como o Código Prussiano de 1794 (Allgemeines Landrecht für die Preußischen Staaten - ALR)13 e o Código Civil Austríaco de 1811 (Allgemeines bürgerliches Gesetzbuch – ABGB). Reporta-se também ao Código Civil Alemão de 1900 (Bürgerliches Gesetzbuch – BGB) e à segunda maior codificação pandectista: o Código Civil Suíço de 1907 (Zivilgesetzbuch – ZGB)14.
Apesar da proximidade, o BGB e o ZGB possuem diferenças estruturais. O ZGB, por exemplo, não é tão favorável a cláusulas gerais nem possui uma Parte Geral por conta de sua maior perspectiva próxima da realidade, ao contrário do BGB15. A preocupação com uma redação legislativa mais clara, expressiva e acessível é mais intensa no ZGB, que, por vezes, vale-se de expressões que, embora não sejam técnicas juridicamente, são mais bem compreendidas (a exemplo da frase “o casamento emancipa”). O ZGB é marcado por uma maior participação do próprio cidadão, o que foi obtido pela menor intensidade na cientificação da consciência jurídica popular16.
O civil law germânico foi marcado pela influência da versão científica da pandectística, pela influência dos costumes germânicos. Destacam-se, como característica do civil law germânico, uma sistemática rigorosa e uma preocupação perfeccionista com conceitos jurídicos17.
Na Alemanha, a classe jurídica é mais técnica e menos política, tudo sob uma busca por neutralidade científica oriunda do positivismo científico e legalista. Profissionais do Direito, como advogados e juízes, raramente alçam-se a posições e a posturas políticas. Difere, nesse ponto, das demais famílias jurídicas18.
O civil law germânico, além de estar presente nos países europeus de língua germânica, alcançou outras nações. Embora haja certa indeterminação para definir o alcance fora da Europa, é certo que o BGB influenciou fortemente o Japão e, em certa medida, a Tailândia. O ZGB, a se turno, influi intensamente na Turquia de Mustafá Kemal Ataturk19 (1927), além de ter inspirado a Hungria (especialmente até a segunda guerra mundial), a Iugoslávia, a Polônia (especialmente o Código de Direito das Obrigações de 1933) e a Grécia.
A influência do civil law germânico (ora por conta do BGB, ora em razão do ZGB, ora graças a ambos) teve influência (importante, mas menos intensa) em outras nações, como nos Estados bálticos (Estônia, Letônia e Lituânia), na América Latina (notadamente Brasil – 1916 –; México – 1928 –; e Peru – 1936), no Líbano (1933), no Código Civil da União Soviética de 192320, na Albânia, na Bulgária, China pré-comunista e na Tailândia.
O civil law escandinavo reporta-se aos cinco países nórdicos: Suécia, Dinamarca, Noruega, Islândia e Finlândia. Foi influenciado pelo civil law francês e pelo civil law germânico, mas mantém particularidades que permitem uma categorização apartada. Sua principal marca decorre da menor intensidade da influência de uma concepção científica e fria do direito. A consciência escandinava do direito é forte, o que torna o sistema jurídico mais maleável para adaptar-se a novos problemas sociais e morais. O direito é mais hospitaleiro a soluções jurídicas de índole progressiva e social21.
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1 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, pp. 79-80.
2 Atamer, 2012.
3 Sigla de Zivilgesetzbuch, em alemão.
4 O BGB continha 2.385 artigos. O Código Civil Suíço (ZGB) e o Código das Obrigações Suíço (Obligationenrecht – OR) continham, juntos, 1.528 artigos. O Código das Obrigações suíço (OR) é a quinta parte do Código Civil Suíço (ZGB), apesar de contar com uma numeração própria (Siehr, 2012).
5 ATAMER, Yesim M. Turkish Civil Code and the Turkish Code of Obligations. Publicado em 2009 (Disponível aqui. Acesso em 2 de abril de 2022).
6 TUSEV. Turkish Civil Code. Disponível aqui. Acesso em 2 de abril de 2022; MAX-EUP. Turkish Civil Code and the Turkish Code of Obligations. Publicado em 2012 (Disponível aqui. Acesso em 2 de abril de 2022).
7 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 80.
8 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 80
9 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, pp. 80-81.
10 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 34; WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, pp. 561-589.
11 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, pp. 575.
12 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, pp. 575.
13 Os mais de 1.900 artigos do ALR abrangiam regras não apenas de Direito Civil, mas também de Direito Penal, de Direito Constitucional, de Direito Canônico etc. (Ricken, 2022).
14 Sobre as particularidades históricas da Suíça, as quais lhes outorgam traços que o distinguem da Alemanha, reportamo-nos a Franz Wieacker (WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, pp. 561-570). O ZGB foi fruto do trabalho de sistematização de Eugen Huger, que atentou para as particularidades jurídicas de cada cantão (alguns dos quais já tinham códigos de direito privado, a exemplo do Código de Direito Privado de Zurique – Zürcher Privatrechtliches Gesetzbuch).
15 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, p. 564.
16 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, pp. 565-566.
17 Franz Wieacker aponta que essas características do civil law alemão, notadamente sob a influência do BGB, pode, por vezes, descambar para perfeccionismos vazios e limitados. E há aspectos positivos e negativos nessas características, as quais realçadas no direito hipotecário e no sistema cadastral (WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, p. 578).
18 (WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, p. 579.
19 A Turquia de 1927 era mais europeizada e laicizada (WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, p. 578, p. 568).
20 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, pp. 578 e 568-569.
21 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, pp. 581 e 568-569.