Na coluna anterior, expusemos os países do mundo que se incluem na família do civil law. Hoje, passaremos a tratar do movimento de disseminação de Códigos Civis pelo mundo.
II. Códigos Civis no mundo
A família do civil law decorre de desenvolvimento dos estudos de direito romano realizados ao longo da história (com inclusão dos estudos dos glosadores e comentadores na Idade Média) até a deflagração dos movimentos de codificação.
Embora os costumes tenham importância, o civil law marcou-se por uma busca de um sistema jurídico mais racional, assentado em normas escritas, fruto dos fortes estudos acadêmicos do direito romano realizado desde a Baixa Idade Média1.
As codificações a partir do século XIX consolidaram esse modo mais racional de pensar, fundado em um direito escrito. A influência do direito romano subsistiu mesmo após as codificações, pois os fundamentos do civil law estão umbilicalmente ligados a ele2.
A expansão da codificação, iniciada com o Código Civil francês de 1804, ajudou para espalhar a família do civil law para dentro e fora da Europa3.
Na Europa, destacam-se, após o Código Civil napoleônico (1804), o Código Civil holandês em 1838 (Burgerlijk Wetboek – BW), o Código Civil português de 1867 (Código de Seabra4), o Código Civil espanhol de 1889 (Real Decreto de 24 de julio de 1889), o Código Civil alemão de 1900 (Bürgerliches Gesetzbuch – BGB), o Código Civil suíço de 1907 (Zivilgesetzbuch – ZGB).
Na América, o movimento da codificação disseminou-se5.
Na América do Norte, o estado norte-americano de Luisiana editou seu Código Civil em 1808.
Na América Central e do Sul, destacam-se os Códigos Civis do Haiti (1825), do estado mexicano de Oaxaca (1827-1829)6, da Bolívia (1830), da Costa Rica (1841), da República Dominicana (1845), do Peru (1852), do Chile (1855)7, do Estado Soberano de Magdalena (1857)8, do Equador (1856-1860), do Estado Soberano de Santander (1858)9, de El Salvador (1859), do Estado Soberano de Cauca (1859)10, do Estado Soberano de Cundinamarca (1859)11, do Estado Soberano do Panamá (1860), do Estado Soberano de Tolima (1861)12, do estado mexicano de Veracruz (1861), da Venezuela (1861, posteriormente substituído em 1873)13, do Estado Soberano de Bolívar (1862), do Estado Soberano de Boyacá (1863) e do Estado Soberano de Antioquia (1864), do Império Mexicano (1866), da Nicarágua (1867, posteriormente substituído em 1904) e do Uruguai (1868).
Em seguida a esses Códigos, sobrevieram os Códigos Civis da Argentina (1869)14, da Colômbia (1887), de Honduras (1898, posteriormente substituído em 1906) e do Brasil (1916)15.
Apesar de o primeiro Código Civil brasileiro só ter nascido em 1916, houve, ao longo do século XIX, diversos movimentos de codificação com a apresentação de projetos de códigos por diferentes juristas.
A primeira tentativa de codificação foi por meio do Esboço de Código Civil, de Teixeira de Freitas, publicado em três partes entre os anos de 1860 e 1865 (1983-A e 1983-B). Teixeira de Freitas já havia entregado a Consolidação das Leis Civis em 1858, organizando sistematicamente o caótico sistema jurídico privado da época. José de Alencar16 fez, publicamente, análise crítica do projeto de Teixeira de Freitas com esta afirmação: “‘o que uma vez se entregou à publicidade pertence-lhe, entra no seu domínio soberano: é julgado’ (CORREIO MERCANTIL, 1860)” (Paranhos, 2012). O Esboço de Teixeira de Freitas, todavia, não avançou por questões políticas.
Em 1872, o ministro da Justiça Duarte de Azevendo contratou José Tomás Nabuco de Araujo17 para a elaboração de um novo projeto de Código Civil. Nabuco de Araujo esforçou-se por manter o que fosse possível do Esboço e Teixeira de Freitas, mas não conseguiu concluir o trabalho por conta de sua morte em 187818.
O pai do Código Civil português, Visconde de Seabra, chegou a oferecer-se para elaborar um projeto de Código Civil para o Brasil.
Após as duas tentativas (a de Teixeira de Freitas e a de Nabuco Araujo), Joaquim Felício dos Santos19, após obter a permissão do Conselheiro Lafayette (então Ministro da Justiça) em 1872, elaborou um projeto de Código Civil em 1882 (Felício dos Santos, 1891).
Também foi o caso do Projeto de Código Civil de Antônio Coelho Rodrigues após ter sido contratado em 1890 para tal tarefa pelo Ministério da Justiça (Quintela, 2017; Coelho Rodrigues, 1893; Costa Filho, 2014).
Os projetos de Joaquim Felício dos Santos e de Antônio Coelho Rodrigues não vingaram por questões políticas e por conta da rivalidade existente entre os juristas da época “por escrever o próprio nome na história do Direito Brasileiro” (Tomasevicius Filho, 2016, p. 88).
Foi Clóvis Beviláqua, jurista ligado à Escola de Recife (liderada por Tobias Barreto), que se sagrou vitorioso sob essa ótica. Foi do seu anteprojeto que, com ajustes ocorridos ao longo da tramitação legislativa, gerou o Código Civil de 1916. Inspirou-se na experiência alemã, além dos trabalhos dos juristas brasileiros anteriores20.
Na próxima coluna, prosseguiremos cuidando da disseminação do movimento de codificação para outros continentes.
__________
1 Com enfoque no direito francês, ver: DAVID, René. O Direito Inglês. Tradução: Eduardo Brandão; revisão técnica da tradução: Isabella Soares Micali. São Paulo: Martins Fontes, 2000, pp. 1-2.
2 A ênfase do direito romano era no direito privado. E desse desenvolvimento privatista dos romanos que descende a essência da família do civil law. O direito público romano, apesar de sua importância, foi um espelhamento do desenvolvimento do desenvolvimento do direito privado. René David (O Direito Inglês. Tradução: Eduardo Brandão; revisão técnica da tradução: Isabella Soares Micali. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 2) destaca, in verbis: ... Nossa concepção do direito permanece bastante marcada pela ciência dos romanistas. O direito por excelência continua a ser, para nós, o direito privado, que rege as relações entre os particulares; o direito público, pelo qual os juristas romanos não se interessam, só se afirma com certa dificuldade quando modelado à imagem do direito privado. Nossos conceitos e nossas categorias jurídicas permanecem essencialmente os conceitos ensinados nas Universidades, tendo por base o direito romano.
3 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 67.
4 O epíteto é uma homenagem a António Luís de Seabra e Sousa, o 1º Visconde de Seabra, considerado pai do primeiro Código Civil português. Esse Código foi revogado com o advento do novo Código Civil português de 1966.
5 Guzmán Brito, 1999-2000.
6 Ut GUZMÁN, BRITO, Alejandro. La influencia del Código Civil de Vélez Sarsfield em las codificaciones de iberoamérica hasta princípios del siglo XX. In: Revista Chilena de Historia del Derecho, n. 18, 1999-2000, pp. 263-273; BARNEY, Óscar Cruz. La Codificación Civil em México: aspectos generales. Disponível aqui. Acesso em 20 de março de 2022; BARNEY, Óscar Cruz. La Codificacion Civil em Mexico. In: Iurisdictio, n. 1, 2020, pp. 92-123.
7 Andrés Bello é tido como pai do Código Civil chileno.
8 O Estado Soberano da Magdalena foi um dos estados da atual Colômbia. Ut Mayorga Garcia, 1991.
9 Correspondia a parte da área da atual Colômbia.
10 Correspondia a parte da área da atual Colômbia.
11 Correspondia a parte da área da atual Colômbia.
12 Correspondia a parte da área da atual Colômbia.
13 GALITO, Einstein Alejandro Morales. Evolución Histórica del Código Civil Venezolano. Publicado em 24 de março de 2020 (Disponível aqui. Acesso em 31 de março de 2022).
14 Dalmacio Vélez Sarsfield é considerado o pai do Código Civil argentino. Foi influenciado pelos trabalhos de Teixeira de Freitas: o Esboço de Código Civil e a Consolidação das Leis Civis (FERREIRA, Waldermar. Teixeira de Freitas e o Código Civil argentino. In: Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, v. 25, 1929, pp. 181-186; NOCCHI, Carolina Penna. A influência de Augusto Teixeira de Freitas na elaboração do Código Civil argentino. In: Revista do CAAP, número especial: I Jornada de Estudos Jurídicos da UFMG, jul./dez., 2010, pp. 37-48; LOPES DA SILVA, Joseane Suzart. Teixeira de Freitas, o jurista que sedimentou o Direto Privado em prol da sociedade. Publicado em 23 de outubro de 2017. Acesso em 31 de março de 2022); CARVALHO, Felipe Quintella Machado de. Joaquim Felicio dos Santos e a Codificação do Direito Civil Brasileiro. In: Revista de Direito Civil – RBDCivil. Belo Horizonte, v. 19, jan./mar. 2019, pp. 63-96). A influência dos trabalhos de Teixeira de Freitas alcançou também o Uruguai, o Paraguai, a Venezuela, o Chile e a Nicarágua. Sobre a notável reputação jurídica de Teixeira de Freitas no Brasil, Joseane Suzart Lopes da Silva averba: Reconheceu Clóvis Beviláqua que Teixeira de Freitas sedimentou “um edifício de grandes proporções e de extraordinária solidez”. Rui Barbosa referiu-se a ele como “o maior civilista morto” e segundo Orlando Gomes, “pagou pela audácia de ter sido original e autêntico ao passar à frente do seu tempo, e, por isso, não foi esquecido. Nem será” (LOPES DA SILVA, Joseane Suzart. Teixeira de Freitas, o jurista que sedimentou o Direto Privado em prol da sociedade. Publicado em 23 de outubro de 2017. Acesso em 31 de março de 2022)
15 Ut Costa, 2004. Venceslau Tavares Costa Filho desenvolveu tese de doutorado problematizando o processo histórico da codificação civil no Brasil (COSTA FILHO, Venceslau Tavares. Um Código “social” e “impopular”: uma história do processo de codificação civil no Brasil (1822-1916). Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito do Recife. Orientador: Prof. Dr. Torquato da Silva Castro Junior. 2013 (Disponível aqui. Acesso em 30 de novembro de 2021). Eduardo Tomasevicius Filho destaca o legado que o Código Civil de 1916 deixou para o direito brasileiro, abordando, entre outros aspectos, o histórico de sua formação (TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. O Legado do Código Civil de 1916. In: Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, v. 111, jan./dez. 2016, pp. 85-100).
16 José de Alencar, além de grande romancista brasileiro, foi juristas e Ministro dos Negócios da Justiça (CARVALHO, Felipe Quintella Machado de. Joaquim Felicio dos Santos e a Codificação do Direito Civil Brasileiro. In: Revista de Direito Civil – RBDCivil. Belo Horizonte, v. 19, jan./mar. 2019, p. 69).
17 Nabuco de Araújo fora quem, na condição de Ministro dos Negócios da Justiça, havia convidado seu ex-colega de graduação e seu amigo Augusto Teixeira de Freitas para elaborar a Consolidação das Leis Civis e o projeto de Código Civil (CARVALHO, Felipe Quintella Machado de. Joaquim Felicio dos Santos e a Codificação do Direito Civil Brasileiro. In: Revista de Direito Civil – RBDCivil. Belo Horizonte, v. 19, jan./mar. 2019).
18 Havia, porém, quem sustentasse que os trabalhos haviam sido concluídos (CARVALHO, Felipe Quintella Machado de. Joaquim Felicio dos Santos e a Codificação do Direito Civil Brasileiro. In: Revista de Direito Civil – RBDCivil. Belo Horizonte, v. 19, jan./mar. 2019, pp. 70-71). Sobre a morte de Nabuco Araujo, o Jornal do Commercio publicou: "se não bastassem os regulamentos dos tribunais de comércio, o regimento de custas, a lei hipotecária e o seu regulamento, o projeto de lei de locação de serviços, e tantas outras provas do seu alto mérito, lega ele à família e ao país, para eternizar o seu nome, o projeto de Código Civil, que felizmente completara e que, na opinião dos entendidos e insuspeitos, será um monumento para a jurisprudência pátria" (MIGALHAS. Há 200 anos nascia José Tomás Nabuco de Araújo. Disponível aqui. Publicado em 14 de agosto de 2013 (Acesso em 31 de março de 2013).
19 Joaquim Felício dos Santos era senador.
20 TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. O Legado do Código Civil de 1916. In: Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, v. 111, jan./dez. 2016, p. 89.