Em coluna anterior, em relação ao Direito Espanhol, apontamos a importância dos precedentes da antiga DGRN (Dirección General de los Registros y del Notariado – DGRN), atualmente designada Direccion General de Seguridad Jurídica y Fe Pública.
Hoje trataremos de caso interessante envolvendo a obrigatoriedade de consentimento de cônjuge para negócios envolvendo direitos reais à luz do direito espanhol.
Antes, lembramos que, no Brasil, essa exigência é feita para a hipótese de o cônjuge “alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis”, salvo regime da separação convencional de bens ou regime da participação final nos aquestos com previsão no pacto (arts. 1.647 e 1.656, Código Civil brasileiro).
Vamos, porém, ao direito espanhol.
A pauta é o seguinte julgado: Resolución de 13 de junio de 2018, de la Dirección General de los Registros y del Notariado (DGRN)1.
Nele, discute-se se é ou não necessário consentimento do cônjuge para a constituição de uma servidão de passagem permanente sobre um terraço de um imóvel.
O oficial de registro de imóveis (registrador de la propriedade) da cidade espanhola de San Cristóbal de la Laguna qualificou negativamente o título. O título era uma escritura pública lavrada pelo notário dessa cidade espanhola, constituindo uma servidão de passagem permanente (servidumbre de paso permanente) sobre um terraço de um imóvel.
Irresignado, o notário da cidade de San Cristóbal de la Laguna interpôs recurso administrativo para a DGRN.
A discussão foi em torno do artigo 1320 do Código Civil espanhol, que exige a autorização conjugal para a alienação da moradia habitual e dos móveis de uso ordinário da família. Confira-se o referido preceito:
Artículo 1320
Para disponer de los derechos sobre la vivienda habitual y los muebles de uso ordinario de la familia, aunque tales derechos pertenezcan a uno solo de los cónyuges, se requerirá el consentimiento de ambos o, en su caso, autorización judicial.
La manifestación errónea o falsa del disponente sobre el carácter de la vivienda no perjudicará al adquirente de buena fe.
A DGRN entendeu que esse dispositivo refere-se apenas aos casos de alienação envolvendo o lar comum (vivienda familiar habitual) do casal, à vista do artigo 70 e do artigo 1406.4º do Código Civil espanhol, os quais referem-se ao domicílio conjugal que é fixado pelo casal. Veja os retrocitados dispositivos:
Artículo 70
Los cónyuges fijarán de común acuerdo el domicilio conyugal y, en caso de discrepancia, resolverá el Juez, teniendo en cuenta el interés de la familia.
Artículo 1406
Cada cónyuge tendrá derecho a que se incluyan con preferencia en su haber, hasta donde éste alcance:
1.° Los bienes de uso personal no incluidos en el número 7 del artículo 1.346.
2.° La explotación económica que gestione efectivamente.
3.° El local donde hubiese venido ejerciendo su profesión.
4.° En caso de muerte del otro cónyuge, la vivienda donde tuviese la residencia habitual.
Segundo a DGRN, o casal costuma fixar um lar comum, fruto de comunhão de vida (comunidad de vida) associada a uma comunhão de lar (comunidad de lar). É a regra geral. Trata-se do local de residência familiar. É o local onde se vive a maior parte do ano. E, ainda que haja mais de um imóvel com esse requisito, não se considera, para tal efeito, a segunda residência da família utilizada para recreio ou férias.
Se houver, porém, justo motivo (ex.: razões profissionais), cada consorte pode ter lar diferente (comunidad de vida sem comunidad de vivenda).
A lei protege o lar comum (vivenda familiar habitual). Uma das proteções é o artigo 1.320 do Código Civil espanhol, que exige o consentimento do cônjuge para a disposição do imóvel que serve ao lar comum ou dos móveis de uso ordinário da família, ainda que esses bens sejam de propriedade exclusiva de apenas um dos consortes. Essa exigência de outorga conjugal é apenas se o casal tem um lar comum, fruto de uma coabitação (comunidad de vivienda).
A razão de ser da norma é conceder mecanismos de controle para evitar arbitrariedades individuais do outro cônjuge, conforme realçou o Tribunal Supremo de España2.
Para a DGRN, não se aplica a exigência de anuência conjugal se cada cônjuge tiver um lar próprio, fruto de uma hipótese em que o casal mantém uma comunhão de vida sem uma coabitação (comunidad de vida sem comunidade de vivenda), o que pode ocorrer de modo excepcional. O objetivo do art. 1.320 do Código Civil espanhol é proteger o lar comum (vivienda familiar habitual).
Cabe a cada disponente declarar ao terceiro se o lar é ou não comum para tal efeito. Mentiras dele não prejudicará terceiros de boa-fé, conforme previsão expressa do art. 1.320 do Código Civil espanhol.
É irrelevante se os filhos se opuserem: a exigência legal é de anuência conjugal, e não filial.
Não importa sequer o regime de bens (regímen económico matrimonial de bienes): em qualquer deles, aplica-se o art. 1.320 do Código Civil espanhol.
A regra do art. 1.320 do Código Civil espanhol é reproduzida, com algumas variações, nos direitos civis forais de algumas comunidades autônomas da Espanha, como no art. 231-9 do Código Civil da Cataluña e no art. 190 do Código del Derecho Foral de Aragón. Não se trata, portanto, de uma regra específica do direito civil comum espanhol.
Cabe um aparte para esclarecimento sobre a situação do direito civil espanhol. Não há uma legislação civil única para toda a Espanha.
Há, de um lado, o chamado derecho civil común, que é representado pelo Código Civil espanhol e pela legislação extravagante.
E há, de outro lado, o derecho civil foral de algumas comunidades autônomas espanholas (regiões político-administrativa que reúnem diversas cidades), especificamente de Aragón, Cataluña, Baleares, Galicia, Navarra e País Vasco.
Também se pode falar, ainda que parcialmente, em direito foral na Comunidad Valenciana apenas para regime de bens do casamento (régimen económico del matrimonio) para casamentos em determinado período3.
Há ainda direito foral no chamado Fuero de Baylión, que é uma região dentro da comunidade autônoma de Extremadura e que abrange alguns povos limítrofes com Portugal.
Neste mapa abaixo, pode-se ver, em cor verde, os locais em que vigora o direito foral da respectiva comunidade autônoma, e não o direito comum espanhol. Em verde claro, estão as comunidades em que esse direito foral é parcial (Comunidad Valenciana e Extremadura)4:
A exigência de outorga conjugal prevista no artigo 1.320 do Código Civil espanhol precisa ser fiscalizada pelo registrador na sua qualificação registral, conforme art. 91 do Reglamento Hipotecario espanhol.
A obrigatoriedade da autorização conjugal no Código Civil espanhol abrange não apenas atos de natureza real, mas também pessoal. Por exemplo, para renunciar a locação (arrendamento) ou a sua renovação em relação à moradia (vivienda familiar), é necessário também o consentimento do outro consorte. Trata-se de um ato de “disposição” para efeito do art. 1.320 do Código Civil espanhol e do art. 91 do Reglamento Hipotecario espanhol.
Sob essa ótica, o art. 1.320 do Código Civil espanhol abrange também constituição de um direito real de servidão de passagem, como é o caso em pauta.
No caso concreto, porém, a servidão recai sobre uma área externa à moradia familiar: o terraço, ao qual o aceso dá-se de forma independente, a partir da rua. Não atinge, pois, a morada familiar por se tratar de área externa. Além disso, não haverá uso exclusivo do terraço: os proprietários do prédio serviente também poderão utilizá-lo. Por esse motivo, não há necessidade de consentimento conjugal para a instituição de direito real de servidão de passagem sobre o terraço nesse caso concreto, tendo em vista uma interpretação teleológica do art. 1.320 do Código Civil espanhol. Esse dispositivo só se refere a atos de disposição relacionados à moradia familiar (vivenda familiar habitual).
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1 Disponível aqui.
2 Sentencia del Tribunal Supremo de 8 de octubre de 2010: SSTS de 3 de enero de 1990 y 31 de diciembre de 1994, citado no julgamento em pauta da DGRN.
3 Na Comunidad Valenciana (ou País Valenciano), foi editada lei específica para disciplinar regime de bens. Ela, porém, foi declarada inconstitucional pela Sentença do Tribunal Constitucional da Espanha (STC) de 28 de abril de 2016. Em consequência, casamentos celebrados entre 30 de junho de 2007 e 21 de dezembro de 2007 bem como entre 1º de julho de 2008 e 31 de maio de 2016, terão o regime da separação de bens (régimen econômico matrimonial de separación de bienes) como o regime subsidiário (régimen econômico matrimonial supletório).
4 Disponível aqui.